Cada um no seu quadrado
“Como eu não me importei com ninguém/ Ninguém se importa comigo” (Bertolt Brecht).
Quando eu era pequeno, minha mãe dizia: “menino, tem que se importar com as pessoas”. Minha tia ensinava que, “na vida, a gente tem que se colocar no lugar dos outros”. Na escola, a professora dizia: “tem que querer bem ao coleguinha”. Na igreja, o padre dizia “para não fazer ao outro o que não gostaria que fizessem comigo”. Pronto, aprendi o significado da palavra empatia.
Fui crescendo e fui vendo o mundo cada vez menos colorido. Apareceram os absurdos. Descobri as injustiças. Martelava na minha cabeça “se coloque no lugar do outro”, “se coloque no lugar do outro”… Se coloque. Comecei a gritar contra o que eu achava ser injustiça.
Primeiro, veio o grito contra os que não acreditavam na juventude. E eu, jovem. Depois, veio o grito contra o racismo. E eu, negro. Passou um tempo, e me assumi gay. Grito contra a homofobia. Grito contra a desigualdade social. E eu, pobre.
Com o tempo, comecei a gritar pelas bandeiras dos outros. Empatia, lembra? Gritei contra a transfobia, e eu, cisgênero. Gritei contra o machismo, e eu, macho. Fui para a rua em apoio ao movimento Passe Livre em São Paulo, eu, mineiro de Cataguases. Grito contra a proposta do Governo Dilma de aumentar a idade de aposentadoria das mulheres, eu, homem, e a presidente, uma mulher. Grito por causas que não me atingem diretamente. Grito porque aprendi o significado da empatia.
Um dia, em uma reunião de estudantes da Universidade Federal de Juiz de Fora, eu fiquei assustado. Mulheres diziam: “homens não podem falar de machismo”; negros falavam: “sai para lá, branco”; pobres diziam que não queriam conversar com “os burguesinhos”; os gays não ouviam o que os heteros tinham a dizer. Observei bem aquela situação. Interessante.
As mulheres eram burguesas. Os negros eram homens. Os pobres eram brancos. Os gays, classe média. Nessa história toda, tinha mulher homofóbica, negro misógino, pobre racista. E ninguém podia falar nada. Todo mundo falava de tudo. Um tentava calar o outro. O outro, ao perceber, apontava os privilégios de um terceiro. E assim é o convívio de tamanho “respeito” às diferenças.
Eu cheguei a colocar em dúvida as frases que ouvia na infância. Empatia para que se serei massacrado pelos grupos do qual não sou integrante? Cheguei à conclusão de que discursos sectários é a maior demonstração de escassez de solidariedade. Para os sectários, é cada um no seu quadrado. Cada um levantando a sua bandeira. E só. O outro oprimido não deve ser ajudado por pessoas que não vivenciam sua opressão, ele tem que cuidar do próprio umbigo, e você, do seu. E se o outro falar do meu umbigo, vamos calá-lo. Só eu posso falar.
Preocupa-me ter que ser gay pra falar de homofobia, negro para falar de racismo, pobre para falar de desigualdade econômico-social. Preocupa-me. A individualidade não é uma demonstração de força. Ela mostra a fraqueza que há nos movimentos. Sou a favor de que, nos movimentos, o protagonismo seja daqueles que são atingidos diretamente pela opressão que buscam superar. A questão aqui não é quem será o capitão, mas quem serão os soldados. Na luta contra as opressões, a gente precisa de todo mundo.
Fico pensando: que mundo teríamos se só judeu falasse do holocausto. Só escravo falasse da escravidão. Só as vítimas de 1964 falassem da ditadura… Que mundo teríamos? Que falta fazem a empatia e a solidariedade em um mundo de quadrados múltiplos.
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