Precisamos parar de escamotear
País de contrastes, o Brasil reafirma sua tradição ao ocupar um dos primeiros lugares na lista mundial de países que oferecem melhor acolhida aos imigrantes refugiados, o que muito nos engrandece. Mas, ao mesmo tempo, continua mantendo uma das divisões sociais mais injustas, o que muito nos envergonha e entristece.
A desigualdade social vigente no Brasil se mantém porque a estrutura de poder que se constituiu aqui se sustentou no trabalho escravo do índio e depois do negro, o que fez com que nossa escravidão fosse agravada com o estigma do racismo, da cor da pele. Daí nossos preconceitos serem tão profundos e, ao mesmo tempo, tão banalizados. Desde sempre nós nos acostumamos a identificar o diferente (de pele escura) com o que devia trabalhar, ser pobre, obedecer. Os brasileiros brancos apenas reproduzem o padrão que lhes é passado pelo poder dominante, cuja atuação ignora as áreas ocupadas pelas maiorias hoje constituídas por pobres e negros.
As favelas, agora denominadas comunidades, se referem aos aglomerados humanos onde falta tudo: planejamento urbano, rede de esgoto, água encanada, sistema elétrico, saúde, segurança, educação, rede de transporte; e onde o Estado só se faz sentir através da presença do soldado armado de metralhadora, invadindo domicílios em busca de algum bandido, ou de helicópteros das forças de segurança, que, em voos rasantes, derramam a esmo balas de fuzis contra a população desesperada, desprotegida e marcada para morrer.
Neste ambiente de total brutalidade, consequente do abandono em que estas populações são deixadas pelo Poder Público, as ações afirmativas às vezes ocorrem, como aconteceu em Salvador, na Bahia, com o trabalho missionário de Irmã Dulce, que dedicou toda a sua vida a assistir, resgatar e salvar os mais desvalidos, aqueles que não tinham nem ao bispo para recorrer, porque ele mora sempre muito longe.
Franzina, muito pequena, teve que lutar bravamente para proteger e acolher os mais necessitados, contra os entraves burocráticos e os obstáculos interpostos pelo Estado e também contra a rigidez das regras e estatutos de sua congregação, que a consideravam indisciplinada por nem sempre cumprir os horários preestabelecidos. Não percebiam que quem luta contra a fome, a morte ou a repressão não pode ter hora marcada para jantar ou fazer a oração noturna.
Às vezes, nessas horas, ela estava oferecendo uma sopa para uma criança desnutrida, a extrema-unção a um moribundo ou um esconderijo a um perseguido.
Lutando tenazmente, salvou vidas, mudou destinos, criou famílias, deixou um legado enorme e agora está sendo canonizada como nossa primeira santa genuinamente brasileira.
Que ela nos dê lucidez para escolhermos dirigentes comprometidos com o resgate de nossas injustiças sociais e com uma educação inclusiva que alcance todas as crianças brasileiras, para torná-las capazes de competir em igualdade de condições no mercado de trabalho e poder viver felizes na favela onde nasceram, se quiserem.
Quem sabe a comemoração do Dia das Crianças e a canonização de Irmã Dulce, juntas, não marcarão o início de um processo de superação de nossas amarras escravocratas, que resultará numa sociedade mais igualitária e justa para todos nós?