“Neymar da Penha”, não!


Por Ione Barbosa, Delegada titular da Quarta Distrital de Juiz de Fora, conselheira de mulheres, mestre em Ciências Sociais e professora de Direito Penal e Processo Penal da Faculdade Facsum

09/06/2019 às 06h09

Tudo aconteceu em Paris. E aconteceu em maio. Alguns jornais chegaram mesmo a falar numa reveladora “cronologia dos eventos de maio”. Calma, leitoras e leitores: lugar e mês, aqui, não passam de coincidências. Afinal, não vamos falar daqueles évèments de mai, ou seja, não nos ocuparemos aqui dos acontecimentos políticos e sociais que agitaram a capital da França no já longínquo ano de 1968, “o ano que não acabou”, na evocação emblemática de Zuenir Ventura.

O nosso maio é de 2019, mês passado. Diferentemente do Maio de 1968, o nosso é apenas maio, necessariamente minúsculo, porque destituído dos tons e do glamour do outro. É que nos eventos do nosso maio não houve protestos nem barricadas, tampouco se ouviram palavras de ordem contra o establischment ou se assistiu a embates em praça pública. Praça pública? Longe disso, ou melhor, longe dela: o nosso maio cabe, todinho, num quarto de hotel em Paris.

Na intimidade desse quarto, porém, o que se esperava que fosse “assunto somente do casal” – aspas para você, mamãe Dalva – saltou endiabrado pelas janelas sem fim da tecnologia, e se espalhou, e chegou aos olhos, aos ouvidos e à boca de todo mundo, mundo afora. É que ali estavam o jogador Neymar e a modelo Najila.

E ali estava também, a postos, uma câmera de celular, que registrou ações e sugeriu fatos e intenções sobre as quais não me cabe, aqui, formular qualquer juízo de valor. Ações, fatos e intenções que devem e estão sendo apurados, notadamente a acusação feita por Najila de que Neymar a teria estuprado.

Apesar do estrépito e do alvoroço que o affaire Neymar-Najila vem suscitando, notadamente entre aqueles e aquelas que se aprazem e se deliciam quando situações tais vêm a público, interessa-me aqui um tipo especial de desdobramento que o caso teve. Mais do que a cupidez do sensacionalismo, trata-se de um desdobramento evidentemente mais censurável e sabidamente mais deletério: a irresponsabilidade dos que fazem girar a roda da nossa institucionalidade jurídico-política.

É que na última quinta-feira, 6 de junho, o deputado federal Carlos Jordy (PSL-RJ) apresentou projeto de lei que agrava a pena das pessoas que fizerem denúncia falsa envolvendo crimes contra a dignidade sexual. Alega o parlamentar que, embora já tivesse a intenção de apresentar essa proposta, o caso envolvendo Neymar o fez dar prioridade a ela.

Dois problemas aqui: primeiro, insinua-se a percepção de o deputado, ao pretender agravar a pena do delito de denunciação caluniosa, age movido por um sentimento de repulsa e de censura à modelo Najila por esta acusar Neymar da prática de estupro.

Mas não é apenas isso: ao dar vazão à sua fúria punitiva, o deputado deixa de atentar-se para uma constatação conhecida, reconhecida e proclamada nacional e internacionalmente: a de que o só e mero ato de criminalizar uma conduta ou simplesmente agravar a pena a ela referente não tem o poder, por si só, de reprimir a prática desse delito.

Mas há algo pior nisso tudo: o deputado Carlos Jordy “batizou” o projeto com o nome de “Neymar da Penha”, querendo, talvez, fazer um contraponto, não se sabe por quais “razões”, à Lei Maria da Penha, que trata – e vem atuando com êxito – de combater o gravíssimo fenômeno da violência contra as mulheres no Brasil, conforme reconhecido pela própria Organização das Nações Unidas.

Aproximar o “caso Neymar” do emblema “Maria da Penha” é, no mínimo, desconhecer a trajetória dessa cearense notável e o impacto jurídico-institucional que o seu drama pessoal provocou nas estruturas da dominação masculina no Brasil.

“Neymar da Penha”, não! O Direito repudia, a História recusa, e o bom senso abomina.

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