Do silêncio como direito (e dever) de todos


Por Flávia Martins Iasbeck Farany, advogada

07/02/2017 às 03h00- Atualizada 07/02/2017 às 09h51

Numa de minhas primeiras lições na Faculdade de Direito, li na Constituição Federal uma frase que nunca me saiu da memória: “A casa é o asilo inviolável do indivíduo”. O objetivo literal da norma é nos proteger contra o ingresso de pessoas estranhas e indesejadas no recinto onde temos nosso teto e nosso conforto, nossa família e nossas referências simbólicas, espaço de abrigo e de recolhimento, onde, livres das pressões sociais externas, podemos dar vazão à livre expressão de nossa personalidade.

É em casa, ainda, que desempenhamos atividades essenciais à renovação de nossa saúde física, psíquica e espiritual, tais como dormir, descansar, meditar, estudar, ler um livro, rezar. Tarefas que requerem um ambiente tranquilo, reservado e, tanto quanto possível, silencioso.

Estar em paz na nossa própria casa é um direito que assiste a todos nós. É um valor tão caro ao nosso ordenamento jurídico que o legislador pátrio cuidou de nos proteger não só da violação corpórea de nosso domicílio mas, também, da intromissão indevida de pessoas por meio de ruídos que extrapolem o uso normal do ambiente. A ninguém é devido adentrar a residência alheia pela via sonora, forçando o vizinho a ouvir suas conversas, sua música, o jogo de futebol ou o programa de TV que escolheu assistir, sob pena de responder cível e criminalmente pelos prejuízos causados. E engana-se quem supõe que, fora dos limites da famosa “lei do silêncio”, todo abuso seria permitido: a proteção contra a perturbação do sossego não se restringe a horários predeterminados nem a limites de decibéis, bastando apenas, para configuração da contravenção penal, que alguém, por meio de ação ou omissão, dolosa ou culposa, invada o espaço de privacidade alheio causando-lhe incômodo, desconforto e transtornos afins.

É necessário, contudo, associar esse vasto acervo de direitos aos usos e costumes de nossa cultura, a fim de interpretarmos a lei à luz da nossa realidade fática, sob pena de atribuirmos ao direito um caráter opressor que ele não tem. Nesse contexto, é natural que todos sejamos perturbados, em algum nível, por ruídos normais do dia a dia urbano: pelo tráfego de veículos, pelo ruído de eletrodomésticos, obras, choro de crianças, latidos de cães, entre outros. Trata-se de incômodos que, em limitada medida, somos obrigados a tolerar em razão de sua natureza inevitável: crianças choram, alarmes de carros podem disparar, cães eventualmente latem, e não existe reforma de imóvel sem quebra de materiais, atividade impossível de ser realizada de modo inaudível.

Muito diferente é a situação de uma música alta: qualquer que seja a ocasião, é possível e desejável que o alcance do som esteja circunscrito aos limites do ambiente que se quer sonorizar. Ninguém pode ser forçado a ouvir rock enquanto estuda para uma prova. A participar de uma festa de arromba quando está vestindo o pijama para ir dormir. A escutar, em todos os cômodos da própria casa, o grupo de pagode que se formou no botequim da esquina.

Mas bem, todo mundo tem o direito de dar festas, não? E de pular carnaval, de gritar gol, de cantar alto e se divertir. Como apurar, então, o delicado limite entre o exercício regular de um direito e o uso abusivo dessas mesmas garantias legais?

Penso que um parâmetro ideal de apreciação seria a avaliação sensata do binômio necessidade/evitabilidade do incômodo, aliado à periodicidade com que o evento sonoro é realizado e sua razoável duração. Quanto mais inevitável, esporádico e breve o barulho, mais justificada a poluição sonora, e maiores devem ser os nossos esforços para tolerá-la. Quanto mais evitável, frequente e prolongada a perturbação, menor é a nossa obrigação de suportá-la e mais legitimados estamos a utilizar todos os meios disponíveis para a restauração da ordem jurídica violada.

Penso, também – aliás, tenho certeza -, que toda ação humana baseada na solidariedade, na justa ponderação de interesses e no respeito aos direitos fundamentais do outro só poderá trazer, como consequência, a tão sonhada paz social. Que é a razão de ser do próprio Direito.

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