Período pós-pandemia aumenta desafio para reestruturar educação
Necessidade de concurso público e de mudança no plano de cargos e salários do magistério também exigirá atuação urgente de novo gestor
O novo prefeito ou prefeita encontrará pela frente um cenário de pandemia e pós-pandemia da Covid-19, o que significa que terá que dispensar sua atenção a ações de mitigação das consequências advindas do período de enfrentamento do coronavírus, liquidar possíveis perdas no processo de aprendizagem dos estudantes, minimizar a evasão escolar e ainda saber aproveitar experiências positivas vivenciadas ao longo da adoção da modalidade de ensino remoto. Além dessas questões, outras de caráter mais estrutural também deverão ser enfrentadas, como a necessidade de realização de concurso público no magistério, capacidade de diálogo com os servidores da educação e, em especial, com as comunidades escolares, para reorganização do setor a partir de um planejamento democrático; e o debate sobre plano de cargos e salários dos trabalhadores, de forma a adequá-lo à realidade da Prefeitura, respeitando direitos adquiridos.
Esses são os desafios que se colocam à frente da pessoa que irá assumir a cadeira do Executivo, de Juiz de Fora, a partir de janeiro de 2021. Ao menos esta é a avaliação feita por especialistas, representantes da categoria e do atual prefeito da cidade, Antônio Almas (PSDB). A rede municipal de Juiz de Fora é hoje formada por 4.817 servidores entre professores e coordenadores e cerca de 2.780 secretários escolares. Todos eles alocados em uma estrutura de 101 escolas da rede municipal, quatro Centros de Atendimento Educacional Especializados (CAEEs), 46 creches e 1.726 creches conveniadas. No total, são assistidos 41.267 alunos.
Em entrevista coletiva concedida à imprensa, em 1º de outubro, Antônio Almas, ao responder questionamentos da Tribuna, considerou que as perdas na educação são evidentes, uma vez que o ano de 2020 se esgotou sem que os estudantes tivessem acesso à sala de aula de forma presencial, apesar de todas as investidas empregadas pela Secretaria de Educação. “O nível de chegada das ações por meio de tecnologia nem sempre atingiu a todos. Para aqueles que não tiveram acesso à educação por meio da tecnologia, muito houve de esforço das escolas de Juiz de Fora e da Secretaria de Educação municipal para que se fizesse chegar a informação on-line. As próprias escolas disponibilizaram atividades entregues no papel para tentar compensar, mas isso é muito pouco frente às possibilidades que cada aluno desenvolve durante o ano. Então, essas perdas trarão consequências para uma geração inteira”, pontuou.
Além das pautas relativas à pandemia, Almas ressaltou que grande desafio de Juiz de Fora no que tange a educação é uma discussão, que ele mesmo considerou que não é simples e significa muitos embates. “É a questão do plano de cargos e salários não só na Prefeitura, mas de modo geral no magistério, para que a gente possa adequá-lo à realidade do Município, sempre respeitando os direitos adquiridos. Encaminhamos um projeto, com uma nova discussão, com novos tempos de carga horária de contrato, para a Câmara e, até o final de meu mandato, ainda pode ser discutido. Mas é uma discussão muito dura, porque implica em mudanças dessa ordem na vida das pessoas, na vida dos profissionais. Então, além dos desafios pontuais em relação ao enfrentamento da Covid-19 na educação, temos esses desafios que já são de longo prazo. Acho que o próximo prefeito precisa conhecer essa situação”, disse, afirmando que ele e a Prefeitura estão abertos para todos os candidatos que se interessarem em conhecer a atual situação.
Um passo atrás para compreender cenário
Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora e doutor em Educação, André Martins, ponderou que, para a compreensão da situação da educação durante a pandemia e pós-pandemia é preciso dar um passo atrás e entender o cenário anterior. Ele assinalou que é de suma importância para a nova Administração ter a compreensão dos motivos que levaram Juiz de Fora a ficar cerca de 12 anos sem promover concurso público para o quadro do magistério.
“Vale lembrar que em torno de 60% do quadro do magistério municipal é composto por docentes com contratos temporários, um mecanismo que dificulta a criação de vínculos duradouros com o processo educativo. Veja um exemplo: não é raro que uma professora participe das reuniões de planejamento em uma escola durante a vigência de seu contrato em um ano, mas, no ano seguinte, é designada para outra unidade escolar em um novo contrato.
Representante do magistério municipal, Roberto Jorge Abou Kalam, atual diretor de Finanças do Sindicato dos Professores de Juiz de Fora (Sinpro), também coloca como prioridade a realização de concurso público. “Já passamos de dez anos sem a realização de concurso, com contratos temporários e que hoje chegam próximo da metade de nossa categoria. São contratos precarizados, esvaziados de direitos e de uma intensificação do trabalho que não é justa”, ressaltou, acrescentando que o concurso se faz emergencial, posto que a reforma administrativa pode deixar de lado direitos fundamentais dos trabalhadores.
“Pelo que podemos ver há uma expectativa de que o Congresso possa concluir isso até o final do primeiro semestre de 2021. Então, é urgente que o concurso seja pauta primeira dessa administração que está terminando, dando um pontapé no processo, e a próxima gestão deverá dar continuidade célere para, inclusive, garantir a efetivação dos aprovados.”
Garantia de democracia
Roberto Kalam traz para a discussão a questão da garantia de democracia entre as demandas desafiadoras para a próxima Administração municipal. “Nossa categoria tem participado de vários momentos de discussão, passando por conferências municipais, como foi a questão da confecção do Plano Municipal de Educação. Todavia, quando esse processo chegou à Câmara, ficou um ano engavetado na prefeitura e, de volta à Câmara, foi deturpado e aprovado feito um Frankenstein. Então, nós precisamos que se respeite a voz da categoria”, asseverou.
A mesma questão é apontada pelo professor André Martins. Ele considerou que, depois de entender os motivos da falta de concurso, o Executivo da cidade precisa trazer à tona os critérios que expliquem o porquê de o Plano Municipal de Educação ter sido deixado de lado. E ele vai além, apontando que é preciso mostrar como e por que se avançou naquilo que ele classifica como privatização velada da educação municipal. “Juiz de Fora merece ter um sistema de educação forte e democrático. Os novos passos exigem superar a autocracia e o modelo gerencialista em favor da administração pública democrática; isso passa, por exemplo, por tratar a educação como tema da e para a sociedade e não de um governo”, advertiu.
Ainda na visão do professor da Faculdade de Educação, a pandemia tornou mais visível os efeitos das desigualdades sociais na educação. “Trata-se da projeção de problemas sociais e educacionais complexos que foram gerados ao longo da história brasileira. Diante disso, considero que a nova prefeita ou o novo prefeito terá que ter grande capacidade de diálogo com o magistério, em especial, e com as comunidades escolares, de modo mais amplo, para reorganizar a educação municipal a partir de um planejamento democrático de Estado e não de governo. Esse plano deverá tratar, entre outros aspectos, de temas pedagógicos, administrativos e de financiamento”, pontuou, lembrando que, especificamente, sobre o financiamento, o novo governo municipal enfrentará os efeitos perversos da Emenda Constitucional nº 95, que congelou os investimentos públicos nas áreas sociais até 2036. “Se o governante optar por um modelo autocrático de gestão, os problemas que observamos hoje, sobretudo os de ordem pedagógica, poderão ser agravados”.
Perdas, desigualdade educacional e evasão
A pandemia impôs aos estudantes – crianças, adolescentes e jovens – um longo período sem aula, que foram retomadas de forma on-line. É um contexto em que as perdas no processo de aprendizado, que têm potencial para aumentar ainda mais a desigualdade educacional, não pode ser ignorado. O atual prefeito de Juiz de Fora, Antônio Almas, avaliou que as perdas serão inevitáveis. Todavia, André Martins enxerga a questão sob outro prisma. “É preciso reconhecer que o processo de desenvolvimento humano é dinâmico, isto é, não linear e cumulativo. Isso significa que os aspectos que não foram consolidados em 2020 poderão ser retomados assim que houver condições sanitárias e de biossegurança nas escolas”.
Para tanto, o professor ressaltou que, se o planejamento pedagógico for feito de modo consistente, orientará diagnósticos e, consequentemente, o trabalho educativo para assegurar a consolidação da aprendizagem sem grandes problemas. “As professoras, os professores e as coordenações pedagógicas, que estão na ponta desse processo, deverão ter participação efetiva no planejamento; do contrário, a perversa desigualdade educacional poderá aumentar. Sabemos que pessoas que perdem a vida não podem ensinar e aprender. Portanto, precisamos assegurar que docentes e estudantes estejam vivos para que possam retomar os processos de ensino-aprendizagem. Isso é o mais importante no momento”.
O representante do Sinpro, Roberto Kalam, assinalou que, em relação ao ensino remoto, faltou sensibilidade para entender que o público das escolas da rede pública é carente de recurso para ter o acompanhamento de uma aula remota. “Tudo isso faz um tempero que só mostra como há insensibilidade nos atos da educação pública. E essa próxima Administração deverá ter essa sensibilidade para tratar esses assuntos de como se recuperar, de como criar condições efetivas, para que o processo pedagógico se materialize de forma plena e que possa atender todas as necessidades da comunidade escolar”, avaliou.
Kalam concorda que, sem dúvidas, a suspensão das atividades nas escolas irá trazer consequências e serão necessárias formas alternativas de compensar as perdas. “Por exemplo, aqui na rede municipal, o sindicato discutiu muito com a categoria a distinção de aula remota, que é uma aula conteudista, que se retrata como uma aula que é feita tradicionalmente de forma presencial, de trabalhos remotos. Nossa comunidade escolar, aqui no município, é por natureza de alunos que saem da escola cedo para garantir uma remuneração complementar familiar, já que essas famílias têm condições muito modestas. Então, a primeira preocupação é não permitir que os alunos tenham esse distanciamento da escola e que ela seja um ente para garantir ao aluno o conhecimento da importância do ensino na vida dele. Quando voltarmos à escola de modo presencial, precisaremos fazer essa discussão com os alunos e seus pais, para que possamos reconstruir essa relação, tanto afetiva quanto dialógica e pedagógica, para que possamos, coletivamente, resgatar todo o processo com a menor perda possível.”
O professor André Martins destacou que a crise econômica em curso, agravada pela pandemia, poderá empurrar famílias inteiras para o trabalho precário, inclusive as crianças, algo aceito até mesmo por ocupantes de cargos eletivos. Assim, na visão dele, para se evitar a evasão escolar, será necessária uma forte política pública de mobilização social, executada pelo Poder Público e apoiada pela imprensa e por entidades da sociedade civil. “Em tempos em que formulações absurdas ecoam na sociedade, precisamos reafirmar o óbvio: crianças e adolescentes precisam estar na escola, estudando, e não no trabalho. Se ainda assim for verificado algum índice de evasão, o poder público deverá realizar a busca ativa, um mecanismo previsto na legislação educacional. Diante das fragilidades da democracia brasileira e da crise social e econômica, reverter esse quadro será um desafio.”
Ensino pela televisão
A Secretaria de Educação de Juiz de Fora, como ressaltou o prefeito Antônio Almas, têm desenvolvido ações a fim de mitigar os impactos provocados pela pandemia, principalmente, para que a educação chegue aos alunos que estão na periferia da cidade. “Muitas vezes falamos que basta fazer aula on-line que isso irá resolver o problema. Existe uma falsa ilusão de que o acesso ao telefone celular e o acesso à internet são coisas universais, mas não é. Podemos até ter uma quantidade de celulares hoje, na cidade, que demonstra essa facilidade, mas existe outro detalhe, que é como essas pessoas têm acesso à internet. Então, não é a mesma coisa. E muitos de nossos alunos que estão na periferia não estão tendo acesso sequer ao aparelho, a um computador, ou quando têm acesso ao computador, o pai ou a mãe estão no trabalho remoto e precisa dividir, o que não é simples. Agora, estamos em uma parceria com a Câmara, para ver a possibilidade de que a TV Câmara desenvolva um programa no sentido de atingir mais e mais alunos. Através da televisão, podemos ter um facilitador. Então nós, com certeza, buscamos mitigar isso com várias ações”, afirmou durante sua live.
Experiências adquiridas que vieram para ficar
Com a pandemia, surgiram histórias de trabalho acumulado por professores e cobrança por conteúdos on-line, pais e mães estressados e despreparados para lidar com o processo, e crianças nervosas com o volume de atividades. Neste contexto, a pergunta que se faz é se restará algo de positivo dessa experiência de ensino remoto permeado por ferramentas tecnológicas e que deverão ser adotadas pós-pandemia. De acordo com o professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora e doutor em Educação, André Martins, só a história será capaz responder. “A sociedade fará esse balanço futuramente sobre o que aprendemos com essa dolorosa experiência. No tempo presente, temos somente algumas pistas. O que já estava comprovado nas pesquisas educacionais foi reafirmado na prática concreta para a sociedade: ensino-aprendizado é um processo relacional entre seres humanos, que se desenvolve pela mediação pedagógica, exigindo, portanto, o diálogo entre quem ensina e quem aprende. Ficou comprovado que as professoras e os professores não podem ser substituídos por ferramentas digitais ou por familiares, que não têm formação para a docência, e que, majoritariamente, estudantes preferem estar na escola real, interagindo diretamente com seus colegas e com seus professores”, considerou.
Conforme ele, “será preciso avaliar se após usarmos essas ferramentas digitais não passaremos a ser usados por elas, como vêm alertando alguns especialistas que se dedicam aos estudos que investigam a manipulação de dados pessoais através de redes sociais e de plataformas digitais. Esse balanço será uma tarefa para o futuro e não para o presente”.
Já o representante do Sinpro, Roberto Kalam, estimou que vários instrumentos estão sendo usados para o ensino remoto por questão de necessidade plena. “Muitos professores não conheciam porque tinham a sua disposição todo um arcabouço presencial que lhes permitiam desenvolver o seu trabalho. A pandemia trouxe uma exigência para essa totalidade de profissional e fez que ele tomasse consciência de vários outros instrumentos para poder complementar sua atuação que já era boa e que será otimizada”, concluiu, afirmando que esse tipo de avaliação também ficará para a próxima prefeitura.