Tem Base! Pai de Bia Ferreira relembra dificuldades e conquistas da pugilista número 1 do mundo
No quarto episódio da série de minidocumentários, Sergipe recorda infância da filha na Bahia, vinda para JF e títulos da promessa olímpica brasileira
“Nós morávamos em Salvador, no Bairro Nova Brasília, um loteamento chamado Vila Mar. Eu estava lutando muito, e Bia sempre me acompanhava, desde pequenininha. Se fosse fazer o DNA de Bia, ia dar luva. Porque a menina já nasceu para aquilo. Descia pequena uma ladeirinha, arriscado de cair, e ela vinha (ver os treinos). Aí fui ajeitando, ela foi crescendo… botava uma manoplinha para ela, que batia certinho, melhor que os meus alunos, que eu treinava direito. Então a menina nasceu com o dom.”
Com os olhos brilhando durante os mais de 30 minutos de entrevista, Raimundo Oliveira, o popular Sergipe, não esconde a felicidade em ter, na filha, Beatriz Ferreira, a Bia, 27 anos, muito mais sonhos realizados do que já imaginou. E o treinador de boxe foi quem detalhou a trajetória da atleta radicada em Juiz de Fora há 16 anos, no quarto episódio da série de minidocumentários da Tribuna, o Tem Base!, gravado antes da pandemia do coronavírus.
“Fui um grande lutador e hoje sou treinador de vários atletas, como a Bia, que está no auge. Campeã pan-americana, campeã do mundo. Fico muito feliz com isso, de ela seguir a minha carreira. É muito importante ter uma filha brigando pelo lugar do pai. Era tudo o que eu queria. E não esperava que a Bia fosse melhor que eu. Está conseguindo oportunidades, graças a Deus”, ressalta o treinador, sempre encantado com o comportamento de Bia.
“Uma menina que começou a treinar com 4 anos. Eu estava no auge. Chegava no final de semana, eu corria no bairro, tinha uma garagem e passei a treinar os meninos lá. A gente morava em cima, e quando Bia ouvia o barulho, descia para treinar com a gente. Ficava até o final do treino. Aí foi pegando amor, fui ajeitando ela também. Foi uma coisa fora do normal. E hoje ela tá aí”, relata Sergipe, orgulhoso, rememorando, ainda, sua carreira como pugilista de sucesso na Bahia, multicampeão e, sparring, por exemplo, do ídolo nacional Popó.
Ainda da época na Bahia, Sergipe lamentou não ter oferecido as melhores condições para a filha durante seu crescimento. “Morar em Salvador, num lugar ruim, com dificuldade pra chegar num local para pegar condução. Na verdade, a gente não tinha nada. Tudo o que conseguimos hoje foi através do boxe, com murros na cara. E ela não teve um suporte, os brinquedos, nada. Era tudo mais casca grossa”, conta.
Vinda para JF e sonho na cidade
Há 16 anos, Sergipe conheceu Juiz de Fora. “Eu já estava encerrando a carreira, teve uma separação de Popó com os empresários, e eu era um dos sparrings dele, então passei a não receber mais. Aí dificultou. O (Luiz) Dórea, que o considero como meu treinador, um pai, recebeu uma proposta pra eu vir pra Juiz de Fora, fazer uma luta e ficar três meses. Vim, consegui lutar num evento, ganhei e dei show. O pessoal viu o que era boxe de verdade”, recorda o ex-pugilista.
A exibição de Sergipe fez com que o atleta atraísse alunos para uma academia em que deu aulas durante os três meses de estadia na cidade. Vencido o contrato, o lutador voltou para Salvador e para Bia. “Mas a academia desse cara (empresário) esvaziou e ele me fez outra proposta. Aí já voltei com Bia e tudo. E o trabalho continua até hoje. Não deu certo com o cara, infelizmente, tive que recomeçar algumas vezes em outros lugares, mas graças a Deus deu tudo certo.”
No período em que consolidou sua vida na cidade da Zona da Mata mineira, Sergipe alimentou um objetivo que busca, diariamente, conquistar. “São 16 anos em Juiz de Fora. Cidade boa, só falta valorizar mais o boxe, que está morto e enterrado. Bia é um talento de Juiz de Fora, e o apoio de Bia é de vocês (jornalistas), botando ela na mídia, porque não conseguimos um real de patrocínio praticamente. Meu sonho aqui é fazer atletas. Entrar no morro, independente de quem seja, para fazer um campeão, que nem fiz Bia.”
Suspensão e volta por cima: ‘Enquanto descansa, carrega pedras’
Na nova casa, Bia seguiu nos treinamentos com o pai, aguardando oportunidades de competir. A gente chegou aqui, Bia tinha 12 anos, e em Minas, em Juiz de Fora, não tem competição”, recorda Sergipe. A promissora pugilista seguiu treinando com homens e se destacando.
“Era uma coisa linda quando uma pessoa chegava de fora, achava que sabia tudo, e eu botava a Bia para bater nele. Ele saía entendendo que não sabia nada. Ela treinou com Carlos Vitor, um cara de quase 2 metros, Diego Farnezi, forte danado. Foram os sparrings de Bia aqui. Coloquei ela para lutar um campeonato de MMA, foi estrear no boxe, e a menina (adversária) saiu chorando, de tanto apanhar. Eu já sabia que Bia ia explodir”, recorda Sergipe, sorrindo.
Neste caminho, contudo, um obstáculo inesperado surgiu na carreira da atleta, quando tinha 21 anos. Atrás de recursos financeiros para se manter, ela acabou realizando algumas lutas de muay thai. Quando foi disputar o Brasileiro de Boxe, uma das oponentes entrou com recurso pedindo a exclusão da baiana radicada em Juiz de Fora por conta de uma regra que proibiria as pugilistas de atuarem em outra modalidade.
“Puniram ela por dois anos. A imagem dela… queria parar, mas eu não deixei. Insisti, falei que ia chegar a hora dela. Foi muito difícil. Foram dois anos de atraso, muita coisa. A carreira dela está em dois anos, tudo o que ela conseguiu foram em dois anos. Mas já tá esquecido, morto e enterrado. Vamos aproveitar o presente e jogar duro pra tirar esse atraso. É o que estamos fazendo. Agora Tóquio 2020 (adiado para 2021, em função da pandemia), com fé em Deus vamos em busca de medalha. Ela está trabalhando para isso, está focada, e vou fazer igual o Zagallo: ‘Vai ter que nos engolir!”, afirma Sergipe.
Como o pai reiterou, o hiato sem competir apenas serviu de impulso para a atleta, ainda mais obstinada a vencer nos ringues de todo o mundo. A oportunidade, então, surgiu na Rio 2016. “Em uma vivência olímpica, foi ajudar a Adriana Araújo (pugilista), e o pessoal da seleção brasileira viu que ela tinha talento e segurou-a. Ficou um período sem receber, mas a gente fez de tudo pra manter ela lá porque eu sabia que explodiria.”
Bia levou para a vida, então, um dos ditados preferidos do pai. “Enquanto descansa, carrega pedras. Sempre aprendi isso. Antes eu cobrava ela para treinar, hoje é ela que me cobra. ‘Meu pai, tô de folga, de férias, mas você sabe que aqui não tem férias. Quero treinar sábado, domingo e feriados.’ Tá focada na parada, para ganhar tudo, como tem conseguido”, elogia Sergipe.
História no Pan e no Mundial
Integrando a seleção brasileira, Bia passou a colecionar pódios e medalhas em competições de todos os cantos do mundo pela categoria até 60kg. No ano passado viveu a melhor temporada de sua carreira, com importantes conquistas, como a prata no Mundial Militar e o título do 70º Strandja Tournament, evento na Bulgária, considerado um dos mais tradicionais do planeta.
Foram outras duas marcas, no entanto, que mais repercutiram Brasil afora. Em agosto, ela foi até Lima, no Peru, e conquistou o ouro no Pan-Americano, resultado inédito para o boxe feminino do país. “Eu estava na casa de um aluno meu, do lado de Carlos Chagas. Me chamou para assistir, levei minha esposa e minha filha pequena, a Maria. A emoção foi muito grande, chego a chorar. É outra coisa, não tem comparação. A gente gritando, vibrando, e o coração batendo a mil. Fico nervoso, prefiro mil vezes entrar no ringue e sair na porrada do que ela. Porque é complicado, filho a gente sente”, expõe Sergipe.
Dois meses depois, Bia estaria competindo no principal objetivo do ano: o Mundial na Rússia. O final seria o mesmo do último compromisso oficial, com um bônus. Não bastasse o título mais cobiçado, em cima da chinesa Cong Wang, a atleta radicada em JF ainda foi premiada como a melhor pugilista do evento.
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“No Mundial eu fui para Santa Rita, na casa da minha sogra assistir em uma televisão enorme. Já sabia que ela seria campeã desde quando passou pelos Estados Unidos (semifinal). Conheço ela só pelo olhar. Quando chegou no ringue batendo as luvinhas, olhei para o rosto dela e já disse que iam ter que engolir a menina. E foi uma das melhores lutas que ela fez. Jogou fechadinha, balançando o tronco, ‘indo pro pau’ na hora certa. A gente que treinou e foi campeão sabe. Vibrei pra caramba, não tem explicação. O coração batia tanto, em tempo de parar. Mas foi bom demais, só alegria”, recorda o pai.
‘Focados na Olimpíada’
Dentro e fora dos ringues, a pugilista número 1 do mundo em sua categoria exala personalidade, confiança e coragem. “Quando falam que a Bia vai lutar com alguma menina grande da Europa, eu digo: ‘Bia gosta de bater nas grandes mesmo. Vai batendo que ela vai ficar menor do que Bia!’, brinca Sergipe, emocionado pela caminhada da filha.
“A menina hoje explode. Não tô nem chegando do lado dela! Já passou por cima de mim igual um trator! E se Deus quiser vamos conseguir mais coisas porque estamos lutando por isso. Focados na Olimpíada. Com fé em Deus vamos trazer esse ouro para a equipe ‘Sergipe contra o resto do mundo’ e para o Brasil”, projeta.
Durante os primeiros meses de pandemia, Bia treinou em casa com Sergipe. Desde julho, se reuniu à seleção brasileira para intensificar as atividades pensando no futuro retorno das competições, como o Pré-Olímpico, passaporte da atleta para Tóquio 2021. Independentemente do que as próximas páginas de sua história reservarem, Sergipe já se mostra integralmente realizado como pessoa, pai, treinador e fã número 1 da filha.
“Tenho toda a felicidade do mundo. A gente bota um filho no mundo para que ele fique melhor que a gente. E quero ver minhas filhas sempre no topo. Quero o melhor para Bia, para que ela possa ajudar a irmã, a mãe. Se tiver condições, me ajudar também. Mas estou muito feliz. Sei que ela vai dar, já está dando retorno. É só alegria, não tem explicação.”