O que mudou no futebol brasileiro desde o 7 a 1 para a Alemanha?
Após uma década da derrota histórica, Seleção segue sem romper jejum em copas
O 7 a 1 sofrido pela Seleção Brasileira frente à Alemanha há dez anos, no Mineirão, deixou uma ferida aberta no futebol brasileiro e trouxe questionamentos sobre o que houve de errado. Tamanho vexame não se repetiu, mas a Seleção teve outras frustrações nas duas edições seguintes da Copa do Mundo, mesmo com a novidade de apostar em um trabalho longevo concedido a Tite, no início praticamente unanimidade, louvado por suas ideias táticas e responsável pelo último título mundial de um clube do Brasil.
De 2014 para cá, muito se debateu sobre as razões de o país ter perdido o protagonismo que tivera outrora. Nossos técnicos estavam ultrapassados? As últimas gerações de jogadores não foram das melhores e perderam a identificação com a equipe nacional? A demora na construção de gestões profissionais nos clubes e o histórico de corrupção na CBF atrapalharam a evolução da modalidade no mesmo compasso do desenvolvimento ocorrido na Europa?
Enquanto tudo isso era discutido, ao longo da última década, mudanças ocorreram no futebol nacional. Se elas foram consequências da goleada traumática não é fácil precisar, ao mesmo tempo em que não chega ser incoerente traçar algumas correlações.
Sem título há cinco Copas, o Brasil igualou o jejum vivido depois da Copa do Mundo de 1970, o maior de sua história, quebrado apenas em 1994. A conquista de 70 foi o último Mundial disputado por Pelé. Em 1974, a Seleção, já sem o Rei, teve poucos remanescentes do tricampeonato. Tostão havia se aposentado e nomes como Clodoaldo, Gérson e Carlos Alberto foram cortados por lesão.
Aquela Copa que marcaria o início dos 24 anos de espera por um novo título fez muitos questionarem se o Brasil estava ficando para trás em relação ao futebol europeu. “Já não dá para armar jogo como Didi e Gérson. É preciso que todos joguem mais juntos, que os toques sejam de primeira, na base da velocidade. A gente teve de se adaptar a um novo estilo, um futebol que eu ainda não conhecia”, disse Rivellino após empate com a Escócia na segunda rodada.
Presente na Alemanha para assistir aos jogos, o então técnico do Palmeiras, Oswaldo Brandão, observou, também após o empate no segundo jogo, que os iugoslavos – adversários da primeira rodada – e os escoceses “marcavam perfeitamente” os craques brasileiros “Todo mundo faz isso na Europa”, disse. O fato de o técnico Zagallo ter subestimado o inovador “Carrossel Holandês” antes da derrota por 2 a 0 na semifinal, dizendo que já estava pensando na final contra a Alemanha, ajudou a conceber essa percepção de atraso.
Depois de 1970, vieram novas frustrações, a principal delas talvez em 1982, mas nesse caso pela alta expectativa causada em torno do belíssimo futebol jogado pela Seleção de Telê Santana, o que já não dava margem para alimentar a tese de atraso brasileiro em relação aos europeus. No atual jejum, a situação é diferente, muito em razão da mancha do 7 a 1 e da crescente disparidade do futebol de clubes entre os continentes.
O campeão do mundo Clodoaldo, que não teve a oportunidade de defender a Seleção no período do primeiro jejum, acha difícil mensurar o impacto da goleada de 2014 e defende que a participação nas duas últimas Copas, ambas com eliminações nas quartas de final, não foram traumáticas. Para ele, a mística da camisa canarinho é inabalável. “O Brasil segue sua trajetória, tem um futebol respeitado, teve oportunidades de rever sua situação. O 7 a 1 fica para sempre, mas não serve de modelo para planejamento da Seleção, nem tira o favoritismo do futebol brasileiro perante o resto do mundo”, diz ao Estadão.
As novas ondas de treinadores
O 7 a 1 sofrido sob o comando de Luiz Felipe Scolari, um dos treinadores mais vitoriosos da história do futebol nacional, intensificou questionamentos que já vinham sendo construídos. Havia um abismo entre as ideias de jogo do Brasil e da Alemanha? Para Clodoaldo, a principal lição tirada dali foi parecida àquela que Zagallo aprendeu em 1974, porém de forma muito mais aguda.
“Talvez o 7 a 1 tenha influenciado a classe de técnicos em relação à preocupação de se resguardar. O Brasil é favorito, mas não é porque tem uma história que não existem adversários que podem apresentar um grande futebol. E vejo que temos bons técnicos no futebol brasileiro. Acho que isso não tem influenciado em termos de organização tática. Houve um descuido, que favoreceu a Alemanha, e uma desorganização de momento”, avalia.
As dúvidas referentes à involução do jogo brasileiro recaíram sobre os técnicos mais experientes, que tiveram um momento de desprestígio, mas não chegaram a sumir do cenário. O próprio Felipão se reergueu e até campeão brasileiro foi com o Palmeiras, em 2018, embora outros tenham tido mais dificuldades para repetir o sucesso do passado, como Vanderlei Luxemburgo. Surgiram treinadores mais jovens, e muitos não vingaram, em movimento que antecedeu a atual febre por comandantes estrangeiros, especialmente portugueses.
No universo da Seleção, o primeiro passo após o vexame foi trazer Dunga de volta, em passagem que durou até 2016, quando a imagem de Tite surgiu resplandecente como a opção mais sensata, afinal era o então campeão brasileiro e já havia dado um Mundial e uma Libertadores ao Corinthians. Foram seis anos de trabalho, um ciclo jamais concedido pela CBF a um treinador.
Dar continuidade ao trabalho após a eliminação para a Bélgica na Copa de 2018 era uma espécie de flerte com o jeito de pensar dos carrascos alemães, que tiveram apenas 12 treinadores em sua história e quando foram campeões no Brasil tinham Joachim Löw no comando há oito anos, que se tornaram quase 14, já que ele só deixou o cargo em 2021.
Sem a paciência alemã, a CBF encerrou o ciclo de Tite após a queda para a Croácia nas quartas de final da Copa de 2022. O presidente Ednaldo Rodrigues sonhou com a contratação de Carlo Ancelotti, do Real Madrid, seguindo a corrente de que a solução para o futebol brasileiro é imitar a Europa. Antes de apostar em Fernando Diniz e substituí-lo por Dorival Júnior, o dirigente chegou até a anunciar um acordo com o treinador italiano, que renovou com o clube merengue.
O complexo de vira-latas no futebol brasileiro
O caminho percorrido desde o vexame de 2014, que levou à busca por soluções estrangeiras, pode estar ligado a um sentimento mais profundo e enraizado no Brasil, conforme explica Flávio de Campos, professor de história da USP e coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS).
“Não só o futebol, mas a sociedade brasileira tem o que o Nelson Rodrigues chamou de complexo de vira-lata. Essa oscilação: ou nós somos os melhores do mundo ou não prestamos. Ou nós somos os superiores, não há quem possa, ou o futebol brasileiro é o melhor do mundo, é genial, ou somos horríveis. Quanto ao 7 a 1, acho que ele aciona um pouco esse sentimento, essa inferioridade civilizacional que se expressa por meio do futebol”, afirma Campos ao Estadão.
O conceito de “complexo de vira-lata” foi cunhado por Nelson Rodrigues após outra frustração futebolística nacional, a derrota para o Uruguai na final da Copa de 1950, episódio conhecido como Maracanazo, e é usado até hoje. Para Campos, outro exemplo deste sentimento e da dificuldade que o Brasil vem tendo de ser reerguer no futebol mundial é a debandada dos talentos nacionais para a Europa, a exemplo das negociações dos palmeirenses Estêvão, Luís Guilherme e Endrick, celebradas por parte dos torcedores como êxito do clube, em razão da recompensa financeira.
“A gente acha exitoso que nossos jovens, como os chamados crias do Palmeiras, sejam transferidos para equipes de primeira expressão na Europa. Isso é expressão de viralatismo. Imagina Pelé e Garrincha, em 1958, sendo transferidos para o Real Madrid, para a Juventus, e a gente ficasse feliz. Esse viralatismo existe, e é acionado pelo 7 a 1. Antes, a gente ainda preservava o mercado brasileiro e os atletas. O 7 a 1 não é culpa do David Luiz, do Felipão. Não adianta a gente procurar ‘fulanizar’ a responsabilidade e não olhar para as questões estruturais da sociedade e do futebol brasileiro”, diz.
O “profissionalismo alemão” chegou ao Brasil?
Da mesma forma que a CBF, em paralelo aos contínuos escândalos de corrupção em seus bastidores, repensou alguns de seus processos depois da derrota humilhante em Belo Horizonte, muitos clubes brasileiros sentiram a necessidade de dar passos em direção ao que vem sendo chamado de “profissionalização”. Flamengo e Palmeiras são exemplos do sucesso desse movimento ainda dentro do formato mais tradicional de clubes, antes da febre das Sociedades Anônimas de Futebol (SAF).
Alessandro Barcellos, presidente em segundo mandato no Internacional e que bateu na tecla da profissionalização desde a campanha para sua primeira eleição, em 2021, acredita que o 7 a 1 tem, sim, um papel na mudança de pensamento dentro dos clubes, embora não veja como algo determinante para isso.
“Não acho que seja exclusivamente o 7 a 1 que tenha mudado a forma de organização ou o início de uma mudança na forma de organização do futebol brasileiro. Eu acho que o novo futebol brasileiro partiu de vários outros fatores, na necessidade de competitividade maior, melhor organização, fez os clubes se atentarem a isso. É óbvio que o 7 a 1 faz parte deste contexto, mostra uma diferença gritante entre um futebol organizado, a mais tempo profissionalizado e outro que ainda estava no caminho. Então, acho que contribuiu, mas não decisivamente”, comenta.
No Fortaleza, o indício da influência do que se passou no Mineirão há dez anos é forte. O clube tem um modelo de SAF inspirado no gigante alemão Bayern de Munique, em que a maior fatia das ações permanece nas mãos da associação e o controle não é entregue a um grupo externo. Antes presidente e tornado CEO do time tricolor neste novo formato de gestão, Marcelo Paz vê a derrota para a Alemanha como um divisor de águas.
“Acho que o 7 a 1 foi um super aviso ao futebol brasileiro, um choque de realidade. O Brasil sempre se achou o melhor futebol do mundo e isso tem de ser comprovado dentro das quatro linhas. Para comprovar, tem gestão por trás, seja em clube ou seja em seleção. Não é por acaso que a Alemanha ganhou naquele período, depois foi estudado o trabalho feito na Federação Alemã”, diz ao Estadão. “Os clubes também entenderam que precisariam evoluir a nível estrutural, financeiro, respeitar remunerações, qualificar jogadores”, conclui.
Apesar das tentativas e experimentações à procura de um novo rumo, muitas das instituições do futebol brasileiro ainda carecem de credibilidade, perdida ao longo dos anos e principalmente no período pós-2014. É o caso da CBF e seus sucessivos escândalos, inclusive relacionados a irregularidades em contratos feitos para o país sediar o Mundial.
Ricardo Teixeira, Marco Polo Del Nero e José Maria Marin estão banidos do futebol por corrupção e o último ficou preso por cinco anos. Rogério Caboclo foi destituído após acusações de assédio, das quais se livrou recentemente, e o atual presidente Ednaldo Rodrigues chegou a ser retirado do cargo por supostas irregularidades na votação que o elegeu, mas retornou após decisão favorável do Supremo Tribunal Federal (STF).
“A organização do futebol brasileiro mudou muito pouco. Nós continuamos com uma CBF oligárquica, com federações oligárquicas. Temos experiências em clubes com uma cartolagem velha rançosa ou com uma saída mágica, que são as SAFs, essa ideia da profissionalização, achando que pela lógica do mercado a gente vai criar clubes mais fortes”, opina Flávio de Campos. “Soluções não passam apenas pela questão do capital e da SAF. Já tivemos experiências interessantes, como a Democracia Corintiana, uma mudança de ponto de vista e democratização da gestão, essa participação maior de atletas e de torcedores.”
O 7 a 1 fez a torcida se afastar da Seleção?
O torcedor brasileiro vive um ciclo de frustrações com a Seleção desde a decepcionante Copa de 2006, ano em que uma equipe cheia de astros não rendeu o esperado, e ter um resultado como o 7 a 1 neste período de jejum só aumenta a insatisfação. Soma-se a isso o fato de o Brasil ser representado por uma maioria de jogadores que atuaram pouco tempo no país e não construíram maior identificação nacional.
A sensação de um afastamento entre torcida e Seleção, contudo, é questionada por profissionais do mundo da bola, caso de Dunga, um dos responsáveis por interromper a seca pós-1970 como capitão do tetra em 1994 e treinador do Brasil eliminado nas quartas de final para a Holanda em 2010.
“Desde 94, se você fizer uma pesquisa, é sempre a mesma tecla, o público está distante da Seleção. ‘Ah, a Seleção não vende’. Mas se a Seleção é só para o torcedor, por que isso acontece? Se ninguém vai assistir, por que eles continuam passando o jogo na televisão?”, afirma Dunga ao Estadão. “O povo continua apaixonado pela Seleção, e o torcedor quer ver a Seleção ganhar, não é? Não tem outra forma. Então eu acho que há muita discussão para gerar polêmica, mas eu vejo o torcedor na rua, os caras continuam apaixonados pela Seleção Brasileira.”
Já Clodoaldo consegue enxergar um pouco da tão comentada desconexão dos torcedores, mas entende o comportamento como natural e acha que boa parte do público não consegue ficar longe da Seleção mesmo em estado de desânimo.
“Acho que existe um desinteresse, mas não é generalizado. Quando um time começa a jogar mal, perder, o torcedor se aborrece e não vai mais aos jogos. Com a Seleção Brasileira, é isso que tem acontecido também. O torcedor acha que não está jogando bem, se desinteressa um pouco, mas, quando começam as competições, mexe com a emoção e os torcedores ainda vibram e sofrem”, diz.