Cabo de guerra entre empresa e consumidor
Na teoria, o consumidor tem tudo para fazer valer seus direitos. Criado de forma genérica para proteger todas as relações de consumo, o Código de Defesa do Consumidor já tem 22 anos de estrada. Na prática, o que se vê é uma tensão crescente entre compradores e vendedores, com desrespeito às leis e altos índices de insatisfação. Este ano, a Agência de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon/JF) deve fechar dezembro com cerca de 30 mil denúncias. Até 30 de novembro, foram formalizadas 25.403 queixas na cidade. O número é 22,7% maior do que o apurado no mesmo período do ano passado (20.706) e já supera o total de 2011 (22.432).
A lei diz que o consumidor não pode esperar mais de 15 minutos na fila do banco, precisa encontrar o valor do parcelamento na vitrine e ter o defeito do produto sanado em 30 dias, antes de optar por ressarcimento, abatimento ou troca. Pode desistir da compra eletrônica em até sete dias, não deve ser vítima da conhecida "venda casada" e tem o direito de falar com um atendente sempre que recorrer à central de atendimento (ver quadro). Entretanto, a cada hora, três juiz-foranos procuram o Procon/JF para denunciar violação a estas e outras normas.
Para a advogada do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Mariana Alves, o problema não é a lacuna legal. "Apesar de já ter mais de 20 anos, o código é uma lei moderna, genérica e principiológica, muito elogiada em outros países, que atinge toda e qualquer relação de consumo." Esta, no entanto, não é a opinião da advogada do Movimento das Donas de Casa e Consumidores de Minas Gerais (MDC-MG), Gabriela Vieira. Ela, que também é professora de direito do consumidor, concorda que as cláusulas abrangentes do código facilitam a solução de vários casos. Pondera, no entanto, que a norma está deficitária em demandas atuais, como o comércio eletrônico e o superendividamento, exigindo reforma.
As duas concordam sobre a necessidade de mudança de postura por parte do consumidor. Para a advogada do Idec, talvez falte tempo para o cliente tentar resolver o problema administrativamente. "O consumidor tem que procurar o Procon ou o Juizado Especial, mas a morosidade no trâmite acaba o desestimulando. Quando tenta resolver junto ao fornecedor, não tem sucesso." Na sua opinião, a decisão de não levar a queixa adiante motiva o desrespeito ao direito. "Tem leis que não pegam, como a da fila do banco, mas é preciso reclamar."
Para Gabriela, a passividade é um problema grave e estimula a impunidade e a ineficiência do sistema. "Os Procons são muito atuantes. Os consumidores poderiam pleitear os seus direitos, mas, por descrença no sistema, preguiça ou comodismo, não fazem nada." O desconhecimento da legislação não é justificativa, nem de um lado, nem do outro, avalia. Segundo a advogada, para cada dez consumidores lesados, três ou quatro lutam pelo cumprimento da lei. Na outra ponta, a advogada do MDC-MG também condena a banalização da busca de indenização por dano moral em qualquer caso. "O consumidor tem a sua responsabilidade."
Lei burlada
Já o coordenador do Serviço de Defesa do Consumidor (Sedecon), Nilson Ferreira Neto, discorda. Para ele, o consumidor, cada vez mais, busca o direito, mesmo mediante pequenos problemas. "Ele não negligencia." Prova disso, na sua opinião, são as cerca de 350 a 400 reclamações recebidas por mês no órgão, em funcionamento na Câmara Municipal.
Nilson não acredita no desconhecimento da lei pelos fornecedores. Se existe, avalia, é uma situação rara e restrita aos pequenos. "A grande maioria insiste em burlar a lei."
Para ele, as empresas não suportam a demanda que criam. "As leis e as penalidades são claras, mas o fornecedor parece não se importar de ser multado." Para o coordenador, a situação já foi pior. "Havia um desrespeito generalizado. Era uma área selvagem, não havia regra nenhuma." Hoje, com os Procons fortalecidos, avalia, houve melhoria nas relações, mesmo ainda longe do ideal.
Clientes acham que faltam
fiscalização e multas mais pesadas
A representante comercial Fernanda Venâncio Gonçalves, 28 anos, está nas estatísticas dos que enfrentam problemas. Ela desistiu do serviço de internet porque a velocidade oferecida não atendia às suas necessidades. Na loja física, foi orientada a acionar a central de atendimento. Por 15 dias consecutivos, Fernanda tentou cancelar o produto por telefone, sem sucesso. "Liguei mais de dez vezes. Sempre me transferiam e, quando eu falava o motivo do contato, a ligação caia." Fernanda só conseguiu suspender o serviço esta semana, com a ajuda do Serviço de Defesa do Consumidor (Sedecon). "É um absurdo. Nós, consumidores, merecemos respeito. Cancelar um serviço é um direito meu. Estas empresas deveriam ser melhor fiscalizadas."
O celular do advogado Filipe Antônio de Oliveira Lima, 24, apresentou defeito oito meses após a compra. Ele encaminhou o aparelho para a assistência técnica quatro vezes. Em três delas, o celular foi devolvido, mas continuava inoperante. Na última tentativa, sequer teve o telefone de volta. Cansado, decidiu recorrer à Justiça. Filipe optou pelos tribunais em busca de "uma resposta imediata". Fez acordo com a empresa e, agora, aguarda a execução da sentença, favorável em primeira instância. Na sua opinião, faltam à Justiça e aos órgão de defesa do consumidor uma postura mais "enérgica", com multas e indenizações altas, visando a penalizar os maus fornecedores.
O chefe do Departamento de Atendimento do Procon/JF, Oscar Furtado, considera alto o número de queixas. Para ele, a facilidade de crédito é o principal problema hoje. "O consumo aumentou desproporcionalmente à capacidade dos fornecedores." Oscar identifica a aquisição por impulso, o comprometimento de renda sem planejamento, a dificuldade de arcar com as despesas e a busca pelas entidades de defesa do consumidor para equacionar este problema. Embora reconheça falhas nas relações de consumo, destaca a importância da regulamentação e não acredita em má-fé por parte dos fornecedores. Na sua opinião, a maioria dos prestadores de serviço está empenhada em solucionar os casos. Destacando o perfil conciliador do órgão, Oscar explica que a prioridade do Procon não é a autuação, embora a aplicação seja adotada quando preciso. Em outubro, foram arrecadados quase R$ 130 mil em multas na cidade.