Marília Garcia retorna a Juiz de Fora para encontro literário

Poeta participa da Jornada Literária da UFJF e revisita memórias e processos criativos


Por Fernanda Castilho

30/11/2025 às 06h26

marilia garcia cultura
Autora reflete sobre escrita, tradução e deslocamentos na construção de sua obra. Foto: Renato Parada

“A memória é uma ilha de edição”, escreveu o poeta Wally Salomão. A frase inspira o título de uma das mesas que reunirá a poeta Marília Garcia, 46, convidada da Jornada Literária da Faculdade de Letras da UFJF, a ser realizada na próxima segunda-feira (1º). A partir do encontro, Marília revisita lembranças de passagens anteriores por Juiz de Fora e o diálogo que mantém há anos com a poeta e tradutora Prisca Agustoni, com quem dividirá o palco para performances poéticas.

Ao preparar o retorno à cidade, ela precisa viajar, sair de São Paulo e pegar um avião. Então, ela se recorda do poema “Estrelas descem à terra: do que falamos quando falamos de uma hélice?”, incluído no livro “Câmera Lenta”. O texto foi escrito após uma visita a Juiz de Fora, quando participaria de um festival para ler o poema “Malaysia Airlines”. No aeroporto, ao ver pela primeira vez um avião com hélice, a narradora se pergunta sobre o sentido do deslocamento, especialmente no campo da linguagem.

A ideia de movimento atravessa a obra da poeta, marcada por experimentações, montagens e colagens.  No seu jogo com a linguagem, ela mistura imagens, citações, perambulações, memórias e montagem cinematográfica. “A minha escrita vem da leitura de poesia, mas também do contato com o cinema, a fotografia, as artes visuais e a música. A poesia pode abarcar outras formas de expressão. Ela é porosa, não tem um território fixo, vai se moldando e se contaminando por outras linguagens. Muitas vezes, se torna poesia justamente depois desse contato com outras artes.”

No seu caminho, Marília publicou diversos livros, entre eles um dedicado ao público infantil e outro com reflexões sobre a escrita poética. Antes de escrever, porém, o tornar-se escritora se deu em função de suas leituras. “Desde a escuta de música quando eu era criança, até alguns poetas que li na adolescência, como Manuel Bandeira e Carlos Drummond, até a poesia dos anos 1970, como a de Ana Cristina Cesar, que li por volta dos 20 anos.” Depois, por trabalhar na editora 7letras, especializada em poesia, teve contato com poetas contemporâneos, o que considera ter sido importante para começar a escrever.

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Livro da Coleção Errar melhor, publicado pela editora Editora Martins Fontes, em 2025 

Seu livro mais recente, “Pensar com as mãos” (2005), reúne ensaios poéticos que dialogam com diferentes referências. No texto de abertura, ela reflete sobre tudo aquilo que fazemos com as mãos, sobre a escrita como um processo de “pôr a mão na massa”. Ao costurar vozes e pensamentos, retoma autores como Michel de Montaigne e o cineasta Jean-Luc Godard.

Marília descreve o processo de criação como algo compartilhado entre o analógico e o digital. “Não tenho uma regra, gosto de ter vários cadernos, alguns que eu mesma faço. Corto o papel, dobro e costuro. Vou tomando notas ali, copiando poemas e ideias, registrando frases que ouço, às vezes anotando sonhos e coisas que aconteceram, num tom mais diário”, conta sobre a materialidade da sua escrita. Em seguida, parte do que escreveu é reescrita no computador, outra pode ser impressa, na qual mexe de novo repetidas vezes até perceber ter criado um poema. O movimento inverso também ocorre, em um “vaivém entre a tela e o papel”, como define.

No suporte analógico ou no digital, sua escrita passa pelo trabalho com as mãos, por este ato de fazer, de experimentar e de testar as ideias enquanto escreve. Todos seus movimentos, de ir de um ponto ao outro, de deslocar de um gênero e de uma arte a outra, dão um tom ensaístico ao seu universo poético. “O ensaio é interessante por seu caráter aberto, digressivo, em tom menor, que vai levando leitor e leitora por um caminho que muitas vezes não é evidente. Pelo contrário, às vezes temos a sensação de que o autor vai tateando e nós o seguimos nessa aventura.” Como explica, essa abertura e a fuga das regras permitem ao ensaio criar relações que não são óbvias e novas maneiras de dizer, formas poéticas, aproximando o gênero da poesia.

 

Entre línguas, a tradução

Além da produção poética, Marília traduz obras de autoras como Annie Ernaux e Sylvia Plath, além de escritores menos conhecidos. Ela compara o trabalho ao gesto de reescrever um texto que não seria originalmente produzido em determinada língua. “Ao traduzir, encontramos formas de dizer e abrimos possibilidades na nossa própria língua. Lemos um texto com lupa e fazemos interpretações, percebemos o funcionamento da linguagem e encontramos maneiras de fazer funcionar de forma semelhante na nossa língua.”

Por ouvir tão de perto essa outra linguagem, a tradutora fica mais íntima daquela voz, o tom, a “respiração”, as pausas, ressoando no que escreve, como se aquelas palavras tivessem “ficado coladas em seus dedos”, percebe a tradutora. Ela conta que gostaria de traduzir os poemas do autor norte-americano Kenneth Koch, o que faz ocasionalmente como um exercício de experimentação.

Marília observa, porém, que as condições de trabalho dos tradutores no Brasil ainda são frágeis. Mesmo com mudanças importantes no mercado de tradução brasileiro, ainda há muitos obstáculos para se manter uma editora. Para ela, a tradução literária envolve conhecimento das línguas de partida e de chegada, mas também um estudo minucioso do texto, um trabalho com muitas camadas e bastante exigente, que ainda não possui o devido reconhecimento.

Em muitos países, lembra ela, a tradução é considerada trabalho autoral, com pagamento de royalties, prática rara no Brasil – onde os tradutores costumam receber um valor fixo pelo serviço e ceder os direitos sobre o texto traduzido. “Se o livro traduzido faz uma venda extra para algum programa governamental, ou se, por algum motivo, o livro ganha outras tiragens e começa a vender muito mais do que o esperado (por exemplo, se o autor ganha um prêmio), então os tradutores não vão receber mais nada por aquele trabalho feito.”

Por defender mudanças no setor, Marília integra o coletivo “Quem traduziu”, voltado à valorização da área.

 

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