A travessia e as procissões da vida
O novíssimo disco de Dudu Lima Trio, “Som de Minas”, carrega no nome e estampado na capa um sentimento que veste as montanhas
Em primeiro plano, estão seus instrumentos, um contrabaixo elétrico, um contrabaixo fretless – aqueles sem os trastes no decorrer do braço -, um acústico e, o mais diferente deles, um upright bass, ou baixo vertical. Logo atrás, vem o verde, a mata, as reservas florestais que nos são privilégio. No horizonte, aparecem as montanhas, que na geografia são chamadas de Mares de Morro. Ali, na fusão da montanha e do azul do céu, o verde e o celeste se misturam. Todo bom mineiro, que está lendo esse texto, já criou em sua mente a imagem deste encontro: é a história da montanha beijando o céu, e vice-versa. Essa é a capa do novo disco do Dudu Lima Trio, chamado docemente de “Som de Minas”, um título pouco ousado, simples, mas coerente com a linguagem visual e sonora do trabalho. O lançamento do disco físico, em formato de CD, acontece neste domingo, 2, durante o projeto Sessão Instrumental, que ocorre na Praça Armando Toschi (Bairro Jardim Glória), com show previsto para as 15h.
O trio de música instrumental é o encontro sonoro de Dudu Lima nos contrabaixos, a bateria e a percussão de Leandro Scio e Ricardo Itaborahy nos teclados e vocais sutis que sopram as músicas. Os músicos Caetano Brasil e Hermanes Abreu também subirão ao palco para tocarem junto ao trio as faixas que gravaram no álbum: Caetano tocou clarinete em “Suíte do Anjo Negro – Parte II – O vôo do Anjo” e “Cabo Frio”, e também sax na última e décima faixa do disco, “Uirapuru”. Já Hermanes fez os vocais da belíssima música de introdução “Filho Amado/Nascimento”, em forma musical pout-pourri.
Dudu Lima se apresentou em maio na Virada Cultural de São Paulo e tem uma trajetória marcada por nomes de peso da música brasileira e internacional, como o guitarrista norte-americano Stanley Jordan. Seus dedos, mais rapidamente que nossos olhos, conseguem acompanhar as cordas e os acordes. O grave sai. É a base de toda sonoridade. Parece carregar ali a estrutura que dá suporte aos outros sons que se encaixam. Baixo é aquilo que dá o pulsar harmônico da música. A linha tênue da passagem de uma frequência grave. E a oscilação das frequências se tornam ritmo.
Ele tem feito shows gratuitos do álbum “Som de Minas” em cidades mineiras; essa é uma contrapartida do projeto do disco que foi viabilizado pela Lei Estadual de Incentivo à Cultura. Em seu show em Juiz de Fora, Dudu pretende abrir apresentando sua “Suíte Bituca”, em homenagem a Milton Nascimento, que, além de ter lançado o disco “Tamarear” (2015) junto ao Dudu Lima Trio, diz que quase caiu duro ao ver Dudu tocando contrabaixo. Agora que Milton vive nesta cidade, será que poderemos encontrá-lo tomando um sol na praça domingo à tarde, enquanto acompanha o show? Uma pergunta que de certo não me faço é se Dudu Lima estará trajando roupas claras e óculos escuros, essa é definitivamente sua marca.
‘De tudo se faz canção’
Mas o que deve ser esse “Som de Minas”? A sonoplastia que me vem à cabeça é pura sinestesia. O som quase imperceptível do repartir de um pão ou broa caseiros e tão quentinhos que faz escapar a fumaça, arrematada pelo ruído de um bom café sendo coado, na hora, com coador de pano. O barulhinho das canecas esmaltadas sendo postas à mesa e do vento lá fora soprando em final de tarde. O cachorro latindo no quintal com as folhas das árvores chacoalhando, aqueles sons agudos da voz das crianças na rua e bem ao fundo uma viola sendo bem tocada. A água de uma cachoeira ou um rio que corre, e também de um trem que ainda corta a cidade ao meio. E talvez isso se resuma e seja enxugado pelos primeiros acordes da música “Clube da Esquina nº 2”.
Toda obra do Clube da Esquina é referência para o novo disco de Dudu Lima Trio, bem como as canções de tradição mineira, como as festas de folias de reis que acontecem em Minas, congado e também as procissões religiosas. A música “Filho amado / Nascimento” remete a duas canções, uma que fez em homenagem ao seu filho quando nasceu, que hoje tem 8 anos, e a outra em forma de agradecimento ao convite de Milton Nascimento para trabalharem juntos no “Tamarear”. Nessa faixa, escutamos palmas, cantorias, tudo com a intenção de representar as procissões, Dudu pensou na cantoria dos violeiros, no anúncio da chega da imagem santa e deu vida a essas composições de forma diferente ao que já havia sido feito. “‘Filho amado’ é como a procissão da vida”, resume o músico.
Dudu Lima não lembra exatamente a primeira vez que ouviu alguma música do Clube da Esquina, mas lembra com precisão a primeira vez que entendeu as melodias e harmonias. Estava indo passar o carnaval em Santuário, para onde ia todo ano com a família, e começou a tocar no carro do seu primo uma composição do Milton Nascimento.Quando ouviu, ficou extasiado. Nessa mesma época, o Bituca fez um show em Juiz de Fora no campo dos Tupinambás, quando Dudu tinha entre seus 12, 13 anos. Uma lembrança muito consciente dessa descoberta que tem vestígio em seu trabalho autoral até hoje. Uma outra forma de contato marcante foi quando ouviu a versão de “Travessia” sendo cantada pela Sarah Vaughan ao lado de Milton Nascimento.
Take 1, valendo
“Som de Minas” foi gravado no estúdio Versão Acústica em São João Nepomuceno, é o terceiro disco de Dudu que ele escolhe gravar neste lugar, no interior de Minas Gerais. Inclusive a foto da capa é um registro do Pedro Salgado feita da visão que os músicos tinham ao amanhecer durante os dias de gravação. “O lugar tem a ver com o som, fica no alto das montanhas, transmite a energia de onde foi gravado, há uma afinidade grande com esse trabalho que é muito influenciado pela música mineira associada ao jazz universal”, define Dudu.
Esse lance jazzístico de liberdade de improvisação é totalmente real nas músicas do novo disco. Dudu Lima contou que o que os músicos criam na hora é gravado e se torna a faixa do disco. É a mais pura vivência da improvisação. “É como se estivéssemos lendo um discurso em folhas de papel em branco”, explica ele. Existe um tema central, a composição, mas o que será feito a partir daquilo vem na hora.
O contrabaixista, além de compositor e arranjador, faz parte da produção musical, inclusive da escolha do repertório. Mas tem a preocupação de entender o trio, pensando em “três como um todo e três individualmente”, e busca estar com o ouvido aberto para receber o que vem de Ricardo Itaborahy e Leandro Scio. Essas referências lhe interessam muito e completam todo o resultado final das músicas.
A escolha dos contrabaixos que irá utilizar vem na intuição de quando começa a criar a música, normalmente o instrumento que usa para compor é usado para gravar e tocar. Neste álbum, ele usou os baixos elétricos, baixolão e também o baixo vertical, que, após algum tempo de resistência, o surpreendeu com o som. Seu encontro com esse instrumento, que hoje é um dos seus preferidos, começou em um festival de jazz em Penedo, quando houve um acidente com seu baixo acústico, e o braço quebrou. Ele já tinha um baixo vertical, mas não usava, só que nesta mesma semana tinha uma gravação com um músico internacional, não havia como remarcar. Ele conta que ficou olhando o baixo vertical, encarou a tentativa e passou dois dias inteiros tocando e entendendo tudo o que podia tirar de som e as peculiaridades daquele tipo de contrabaixo, que se aproxima muito do som de um acústico, porém sem a caixa. “Ele tem uma personalidade definida, seus graves e harmônicos são profundos por conta do braço semelhante ao de um contrabaixo acústico”. Dessa forma, uma das músicas do álbum, “Canção para Vera Lúcia”, acabou se tornando uma peça perfeita para baixo vertical.
Sessão Instrumental
Com Quinteto Vento Bravo, Dudu Lima Trio e DJ Pedro Paiva. Neste domingo, a partir das 12h, na Praça do Jardim Glória