Olhar sensível para o humano


Por MARISA LOURES

28/08/2013 às 07h00

Já idoso e sofrendo os efeitos de longos anos como fumante, o patriarca da família Fellet, Hamleto, parecia preconizar o que se anunciava. "É a minha última foto. São meus dias que estão se consumindo", disse o médico num distante mês de julho, de 1976. A imagem, que retrata seu velho amigo padre Arbex diante de uma vela que se esmorecia, recebeu o título de "Confirmação". "O médico tendo diante de si a realidade, a vela aos poucos foi se apagando, apagando…", escreveu a esposa Yolanda Pacelli Fellet, após o falecimento do marido. "Conhecer a produção fotográfica do Dr. Hamleto Fellet e as histórias e memórias que a acompanham foi agir com a precisão de um arqueólogo, que segue uma pista (dada pelo Zé Kodak), para descoberta de uma peça solta desse grande quebra-cabeça, memorial a contar com a sorte de um iniciante ao encontrar uma pedra rara já lapidada e moldada", afirma o superintendente da Funalfa, Toninho Dutra.

Homem dos números, o engenheiro e arquiteto Arthur Arcuri, que em 2013 completaria 100 anos, teve na fotografia o caminho para se chegar às outras artes. O mesmo domínio de jogos de luz e enquadramentos presentes em seus projetos arquitetônicos é visto em seus registros. Assim como Fellet, para além da profissão, tinha um olhar particular para o homem. "Suas belas propostas arquitetônicas se espalham pela cidade e sugerem um roteiro de especial interesse no espaço urbano. Mas aqui trazemos outro aspecto de sua produção: a fotografia", sentenciou Toninho. Os dois fotógrafos são os homenageados do projeto "Foto 13", que apresenta um recorte de suas obras nas exposições "Confirmação" e "Arthur Arcuri, simples e genial", em cartaz até 13 de setembro no CCBM. "Eles tentavam captar o humano", destaca Alice Arcuri, filha do arquiteto.

 

 

Domínio técnico, mas sem recursos

O olhar triste de padre Arbex, clicado por Fellet para "Confirmação", a despeito dos recursos de montagem, provoca, no espectador, enternecimento que só se tem diante da morte que se faz próxima. A obra derradeira, revelada em tamanho acima dos padrões, chama atenção de quem passa pela Galeria Celina Bracher , que ganhou paredes cinzas e pretas. "Ele tinha 73 anos, trabalhou até as 18h e teve um AVC. Para nós, o aviso de que seria a última foto soou como um desenlace", conta o filho, também médico, Aloysio Fellet, que não conseguiu evitar sentimentos nostálgicos ao se deparar com as reproduções do pai conjugadas ao texto da mãe, que era pintora. Trechos da carta de Yolanda acompanham as imagens. Logo na entrada, uma foto do casal abre a mostra. "Foi uma emoção chegar e ver os dois. Isso me fez voltar no tempo e me ensinou mais do que aprendi nestes anos todos", emociona-se Aloysio.

Fotógrafo amador, o gastroenterologista, aos 15 anos de idade, intercalava seus estudos no Colégio Granbery com o manuseio de sua máquina Kodak. Seus primeiros trabalhos fotográficos eram documentais. Se no início da década de 1940 tinha na documentação dos pacientes a matéria-prima para seu hobby, aos poucos, começou a fazer fotografia artística. Seus personagens passaram a ser constituídos por familiares, vizinhos e amigos. Aloysio, por exemplo, posou para "O medo", já as irmãs Maria Tereza e Maria de Lourdes foram modelos de trabalhos, como o que compõe a série "Fiandeiras". Os temas percorriam dramas, como miséria, pobreza e fome. "Quando fui pesquisar o autor, descobri um médico simples e dedicado às pessoas", comenta o fotógrafo Sérgio Neumann, responsável pela curadoria de "Confirmação", ao lado de Toninho Dutra.

De acordo com Neumann, o objetivo não era propor ao visitante um roteiro pronto de leitura, mas levá-lo a conhecer a parte humana de seu criador. Obras como "O preço", "Amparo", "Mão branca", "Fé", "O tempo", "Ameaça" e "Súplica", todas em preto e branco e emolduradas, denunciam dramas e amarguras captadas pelas lentes de Fellet. Para mostrar uma outra verve do artista, também foram agrupados alguns experimentos de luz e composição fotográfica. "É um grupo de trabalho que se destaca por nos passar essa importante visão de montagem e ilusão. Ali tem fotos em que ele aplica toda a técnica de composição. São obras perfeitas", avalia Neumann.

A preocupação com o rigor técnico é perceptível, conforme aponta Neumamm, o que o coloca à frente de seu tempo, considerando-se que as imagens foram feitas numa época em que ainda não existiam os inúmeros recursos tecnológicos de hoje. Em "Sonho", Fellet inverte a posição da luz para ilustrar, na parte inferior da fotografia, uma menina pobre com uma boneca simples nas mãos, imaginando outra garota, no plano superior, empunhando uma rica boneca.

Despretensiosamente e sem intenção de largar a medicina, Hamleto Fellet começou a ganhar status de profissional. Suas criações deixaram as fronteiras de Juiz de Fora e figuraram em exposições pelos quatro cantos do mundo. A primeira repercussão chegou através de trabalho que foi interpretado como sendo o de uma garota judia que estava sofrendo ameaça de uma cruz. A foto foi exposta na Sociedade Fluminense de fotografia e, de lá, estampou a capa de uma revista americana. Foram centenas de prêmios nacionais e internacionais. Também estão expostas anotações datilografadas ou manuscritas por Fellet, originais de algumas fotografias e revistas de mostras internacionais, mencionando o trabalho do artista.

 

Simples, mas genial

"Um sábio. Comedido nos gestos e na fala, calmo e tranquilo." Os predicados apontados por Alice Arcuri revelam a personalidade do pai, Arthur Arcuri, e são refletidos no trabalho do engenheiro, arquiteto, professor, artista. Segundo ela, as qualidades foram decisivas para que sua mãe se apaixonasse e construísse, com ele, 60 anos de convivência. "Cristão e profundamente humano, escutava a todos, indistintamente, e os ajudava sempre do seu jeito simples de ser", escreveu Alice para a mostra "Arthur Arcuri, simples e genial." A exposição vem engrossar a lista comemorativa ao centenário, completado em 25 de fevereiro deste ano.

A estreita ligação do juiz-forano com as artes teve início ainda no curso de engenharia, após trocar os corredores da faculdade de Belo Horizonte pela do Rio de Janeiro. Lá passou a frequentar a biblioteca da Escola de Belas Artes, onde se aproximou da arquitetura. "Ele entendeu que, por meio da fotografia, era possível compreender os planos, captar a luminosidade", afirma Alice. Os jardins ocupavam lugar de destaque em suas obras. O objetivo, de acordo com a filha, era priorizar o bem-estar. Arcuri deixou isso claro nas fotos do jardim da residência do irmão Romeu Arcuri, na Rua da Bahia, e da casa de João Villaça, na Rua Gilberto Alencar. "A beleza era menos importante. Ele queria que as pessoas vivessem felizes naqueles espaços", observa Alice.

Além de fotografar suas criações, o engenheiro se preocupava em eternizar momentos de intimidade. A impressão de quem vê é a de que, longe de pretender expressar a técnica de um profissional, Arcuri quis brindar o espectador com um álbum de família, destes que imortalizam cenas de boas recordações. O natal de 1931 da Família Pantaleoni Arcuri é um dos exemplos. A irmã mais velha, Resolia Arcuri, a mãe, Christina Spinelli Arcuri, a esposa, Geralda Gonçalves Arcuri e o pai, Pantaleoni Arcuri, são alguns de seus modelos. Também estão sendo exibidas fotos em que Arcuri é o próprio protagonista.

Como um dos maiores nomes da arquitetura modernista de Juiz de Fora, não poderiam ficar de fora fotografias desta época. Abre a mostra uma foto em que ele posa em sua casa com o mural "Os músicos", de João Guimarães Vieira, o Guima, possivelmente clicada na década de 1970. O famoso encontro dele com o arquiteto Oscar Niemeyer, em março de 1950, também não ficou de fora. Segundo Alice, era Arthur quem revelava as fotos. Das exposições que participou, ela ressalta a que foi realizada no Foto Clube, no Rio de Janeiro. "A arte para ele era uma abertura para o mundo. É preciso ter essa abertura para entender e se emocionar", finaliza Alice.

 

"CONFIRMAÇÃO" E "ARTHUR ARCURI, SIMPLES E GENIAL"

 

De terça a sexta, das 9h às 21h, sábados e domingos, das 10h às 21h. Até 13 de setembro

 

Centro Cultural Bernardo Mascarenhas

(Av. Getúlio

Vargas 200)

 

 

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