‘Só quem encheu a laje vai poder tomar sol’


Por MARISA LOURES

27/08/2016 às 07h00

Renan Inquérito lança o livro

Renan Inquérito lança o livro “Poesia pra encher a laje”, durante o projeto “Agosto negro” em Juiz de Fora

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Renan Inquérito é dono de um discurso ácido e crítico do ponto de vista social. Por meio do rap que canta e da poesia que escreve, grita para o mundo seu inconformismo com o presente. “Minha poesia é irônica e sarcástica. Até quando fala de amor tem esse quê. Tem uma, por exemplo, que fala que “Se o mundo nasceu de uma explosão, nós também, porque todo orgasmo é um big bang”, dispara o músico, que solta sua voz e lança o livro “Poesia pra encher a laje” (Editora LiteraRUA, 96 páginas) em Juiz de Fora, neste sábado, durante o “Agosto negro”, projeto que, na edição de 2016, se debruça sobre o tema “Hip-hop a voz da periferia, os fundamentos e as diretrizes da cultura”. Para a cidade que vive a triste realidade de ter ultrapassado os cem homicídios em oito meses, a maioria dos casos envolvendo jovens de periferia, o também educador, com formação em geografia, planeja trazer a “Parada poética”, encontro que tem rendido frutos positivos desde 2013, quando nasceu levando arte para uma Estação Ferroviária de Nova Odessa (SP).

A ideia desse projeto em que “a palavra falada rompe o silêncio costumeiro das bibliotecas e livrarias”, é fazer a poesia de maneira bem descontraída e popular, desmitificando o tradicional sarau como algo distante da população. O lema é “mautratá a gramáthika e jogar a culpa na lissenssa poéthika”. “Não há regras. De repente, a gente abre a roda e o microfone para quem estiver ali se manifestar”, conta o lider da Banda Inquérito, que descobriu, através dos “Pinos poéticos” que carrega na bagagem uma maneira acessível de distribuir fragmentos de poesias. Os tubos coloridos são fabricados utilizando cápsulas do tipo eppendorf, fabricadas para utilização em áreas como química e bioquímica e comumente usadas por traficantes de drogas como cocaína. “O que me instiga a escrever é o mesmo que me instigou a querer fazer Geografia, é o mesmo que me instiga a dar aula. É desvendar o mundo, compartilhar conhecimentos e extravasar minhas indignações.”

Tribuna – Que poesia é essa “pra encher a laje”?

Renan Inquérito – É um livro de poesias concretas, visuais. No caso da poesia, significa brincar com o formato das palavras, e, pra se encher a laje, nós precisamos de concreto. Essa é a primeira ponte que existe entre o nome do livro e a poesia. A segunda é que encher a laje é quando a comunidade se junta num ato de mutirão, o que geralmente acontece num final de semana, quando todo mundo está de folga e se dispõe a ajudar o vizinho, o primo, o parente. É o melhor estilo “a união faz a força”. Depois que se enche a laje, rola uma comemoração, um churrasco, uma feijoada. Depois, a laje acaba virando um teto de quem mora embaixo, acaba virando um chão de quem mora em cima e também acaba virando um mirante. Falo no livro que “A laje é o mirante na quebrada”. A laje é um lugar de encontro também, porque rola sarau na laje, samba na laje, rap na laje. Já vi algumas comunidades que têm até culto evangélico na laje. Lá é onde as roupas e as pessoas se estendem, tomam sol. Por isso esse lugar é muito simbólico. Tem uma poesia que fala assim: “Só quem encheu a laje vai poder tomar sol”, no melhor sentido de que “Pô, só quem trabalhou, só quem lutou é que vai poder gozar disso aí depois.”

– O lema do ” Parada poética” é “mautratá a gramáthika e jogar a culpa na lissenssa poéthika”. Brincadeira ou crítica?

– Primeiro, é uma brincadeira pelo fato de ser um rapper fazendo poesia, porque muita gente não considera o rap como poesia, não considera sequer como música. Já que a licença poética nos permite brincar com a língua, a gente vai maltratar, e quando alguém disser que a gente não pode, a gente joga culpa na licença poética. É uma brincadeira e não deixa de ser uma crítica, porque a gente acredita que a poesia não pode seguir formas. Ela já seguiu muitas formas, muitos tamanhos pré-estabelecidos, e hoje a gente acredita que não, que a poesia pode ser livre também. Muito respeito aos clássicos, a esses grandes escritores, mas queremos, também, falar dos autores vivos, autores do nosso tempo, da poesia do nosso tempo.

– Quando você começou o trabalho na Fundação Casa, foi proibido de fazer uma oficina de rap por acreditar que o gênero faz apologia ao crime. Então, você fez um rap com uma poesia do Mário Quintana. A literatura marginal é uma ponte para os clássicos?

– Independentemente do adjetivo que a gente usar para classificar essa literatura – seja ela periférica, marginal, divergente, literatura do oprimido – independentemente de todos esses adjetivos, acho que ela tem uma coisa em comum: é feita por pessoas que não fazem parte da classe dominante. Ela tem um recorte social muito claro, é produzida por pessoas que vêm da periferia, vêm do movimento negro, vêm do hip-hop. Ela já é feita na contramão da literatura tradicional. É um caminho, talvez, muito mais atrativo, muito mais sedutor, para que alguns jovens que não se identificam com a poesia possam se encontrar. No caso do Mário Quintana, o que eu fiz foi cantar em forma de rap uma poesia dele sem falar que isso era uma poesia dele. Quando eu cantei, os jovens acharam que era um rap, então eles se identificaram. Por isso acredito que a maneira como se apresenta vai influenciar na aceitação ou não dessa poesia.

– O rap, hoje, parece ter conseguido ultrapassar a periferia, chegando à mídia e a outros públicos, mas ainda é cercado por muito preconceito. Em algum momento isso te faz desistir da luta?

– O rap está na mídia, ok. É um fato. Dizer que ele é aceito, acho que é um outro passo. Talvez essa seja uma afirmação perigosa. Alguns raps são aceitos, outros, não, até porque o rap se propõe a ser uma música de protesto. É claro que eu já me desanimei várias vezes quando encontrei alguns obstáculos que me fizeram refletir se eu estava no caminho certo ou não. Acho que isso é natural de qualquer trajetória. Quando você ouve uma expressão assim: “nossa, que inteligente, nem parece que é rap”, só aí está embutido um preconceito. É muito difícil dizer que o rap é poesia quando você quer comparar o rap com Camões (Luiz Vaz de Camões), porque Camões viveu numa época diferente. Se eu tiver que falar de poesia para um moleque na quebrada através de Camões, vai ser muito mais difícil chegar nele.

– Sua poesia já foi tema de questão de vestibular. Isso é sinal de que o Brasil está se abrindo para as vozes da periferia?

– Além de ser usado no vestibular da Unicamp, foi usado no vestibular da Universidade Federal de Juiz de Fora. Senti muito orgulho porque a letra da minha música foi usada junto de um poema de Drummond, chamado “A morte do leiteiro”, junto de um outro poema clássico de Castro Alves, chamado “Navio negreiro”. Eles conseguiram contextualizar três brasis diferentes em termos históricos e temporais, porém os três poemas falam a mesma coisa. Problemas raciais, problemas sociais e que perduram desde a época de Castro Alves até os dias atuais no rap do Inquérito. Dá para a gente refletir aí que mudam-se os nomes, as nomenclaturas, os contextos, mas, no fim, o problema continua acontecendo no Brasil.

– Sua vinda a Juiz de Fora para o “Agosto negro” coincide com a marca de mais de cem homicídios registrados, número que nos traz um alerta, principalmente, pelo fato de a maioria das vítimas ser jovens de periferia e negros. De que forma a cultura pode contribuir para mudar esse quadro?

– Infelizmente, sabemos que morrem mais jovens e, sobretudo, os negros moradores de periferia. Acredito no hip-hop, na arte, na cultura e no esporte como uma das maneiras de combater a violência, assim como a educação. Eu me considero salvo pelo hip-hop.

AGOSTO NEGRO

27 de agosto

Escola Municipal Santa Cândida (Bairro Santa Cândida).

Das 14h às 16h – Renan Inquérito

19h – Discotecagem com DJ Camarão

28 de agosto

Clube Tupynambas

13h – Batalha de Breaking – Pocket Show Graffiti – DJ Camarão

SALA DE LEITURA

Sábado, às 10h30. Reprise às segundas, às 14h30

Rádio CBN Juiz de Fora (AM 1010)

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