Filha do fundador da Cinédia, Alice Gonzaga faz palestra em Juiz de Fora
A primeira cena: a logomarca da Cinédia. Logo em seguida: surge o texto, “Adhemar Gonzaga apresenta”, depois “Gilda Abreu dirigindo” e, passado um novo corte, aparece o título “O ébrio”. À medida em que o nome vai esmorecendo na tela, um portão começa a se abrir. Sobre ele, o texto “com Vicente Celestino”. Andando, ao longe, está o ator, em seu célebre personagem. Considerado um marco no país, o filme demarcava o projeto de industrialização do cinema brasileiro, o que o diretor e produtor Adhemar Gonzaga perseguia com sua Cinédia. “Meu pai sempre disse que nunca pretendeu fazer uma Hollywood, mas precisava ter um modelo de cinema bom e benfeito. Na época, esse exemplo era Hollywood, mas poderia ter sido o cinema alemão, inglês ou francês”, conta Alice Gonzaga, que faz, nesta quarta, às 19h, no Museu de Arte Murilo Mendes, a palestra “Cinédia: da produção cinematográfica à preservação da memória”. O evento integra a programação do projeto “Cinema em foco”, do grupo de pesquisa CPCine do Programa de Pós-graduação em Artes, Cultura e Linguagens do Instituto de Artes e Design da UFJF.
Segundo a pesquisadora, o que mais lhe chama atenção no vasto acervo da produtora é o luxo com que suas obras eram feitas. “Tudo era benfeito, os artistas trabalhavam bem, os cenários de estúdio eram grandiosos, o guarda-roupa era muito caprichado. Não eram filmes feitos de qualquer jeito”, diz. “A Cinédia era muito mais profissional do que atualmente. Hoje o cinema é feito na casa dos outros, na rua, tudo é emprestado. Todo mundo que trabalhava nos filmes da Cinédia recebiam, até quem fazia uma ponta; não era essa de levar os amigos para fazer figuração”, compara, pontuando que os trabalhos jamais tiveram qualquer participação do governo.
Prestes a veicular “O ébrio” na televisão, Alice se mostra uma resistente no resgate da memória de seu pai e da arte de seu país. E como todo exercício de resistir, ela enfrenta a burocracia dos dias atuais e o desprestígio do passado. “Fico aborrecida de ter que pagar um bendito Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional). A gente restaura um filme a duras penas e, depois, quando vai exibir para a televisão, que é uma coisa que ninguém quer porque o filme é em preto e branco, ainda tem que pagar?! O governo, na época, nunca ajudou, pelo contrário, tirava muito dinheiro, com multa e tudo mais”, afirma.
A força do arquivo
Na década de 1970, quando o pai – um exímio diretor, com diferentes títulos no currículo – adoeceu, Alice Gonzaga começou a se envolver com a empresa que tinha um estúdio próprio e o respeito do público. “Ele reclamava de dores de cabeça e no peito. Eu e minha filha Maria Eugênia fomos aonde ele estava. Quando chegamos, ele estava deitado e decidimos levá-lo à Clínica Sorocaba. Chegando lá, o médico disse: ‘Ele hoje não teve um infarto, mas está com muita dor, e o eletro acusa que ele já teve dois. Por isso, é melhor ele ficar aqui’. Meu pai disse: ‘Na clínica não fico de jeito nenhum, porque meu mal é falta de circulação monetária. Com dinheiro, saio bonzinho daqui, e minha dor vai passar na hora'”, recorda-se. “Naquele momento, eu decidi que iria agir direto na Cinédia, trabalhar mesmo, porque até aí eu só ajudava, sempre trabalhei no arquivo por achar que era um trabalho de mulher. Entrei de cabeça e gostei.”
Atualmente o acervo da produtora, que mantém um casarão no Rio de Janeiro, está quase totalmente digitalizado. “Não quero mais saber de homenagem. O que nós queremos é dinheiro em caixa, uma doação para nossa ONG para poder acabar de digitalizar esses filmes. Não aguento mais encher papel, estou cansada de provar que existo”, brada a mulher, aos 80 anos. De acordo com ela, o espaço tem, hoje, outras finalidades, como cursos, pesquisas e visita ao arquivo. “Preservar tudo o que a gente tem seria meu sonho, além de as minhas filhas continuarem o trabalho”, emociona-se. “Fico muito surpresa. Meu pai jamais poderia esperar que chegássemos aos 85 anos. Me entusiasmei com o trabalho e acho que foi muito bom para mim, porque me deu saúde e jovialidade. Hoje eu seria uma mulher muito chata se eu não tivesse esse objetivo”, comenta ela, lembrando de obras como “Alô alô carnaval”, que lançou Carmen Miranda. A película da Cinédia é forte, firme e resiste ao tempo.
CINÉDIA: DA PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA À PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA
Palestra com Alice Gonzaga
Nesta quarta, às 19h
Museu de Arte Murilo Mendes
(Rua Benjamin Constant 790)