Outras ideias com Márcia Regina Cunha

Todo mundo arrumou suas coisas. Pelo portão lateral, que dá acesso à Rua Coronel Pacheco, em São Mateus, deixamos, por alguns minutos, a Escola Estadual Fernando Lobo para prestigiar aquela famosa equipe de vôlei que voltava de Atlanta, após ganhar a medalha de bronze nas Olimpíadas de 1996. Passados 20 anos, reencontro a juiz-forana que, na lembrança dos brasileiros e do mundo, ficou marcada pela bravura numa histórica briga entre Brasil e Cuba. Diante de mim, numa tarde chuvosa de janeiro, no Clube Dom Pedro II, Márcia Regina Cunha, nem a mulher das minhas recordações, nem a da memória nacional. Aos 46 anos, Fu – o apelido colocado pela irmã, pelo forte temperamento de Márcia – perdeu a força. Culpa de Gabriel.
Aos 3 anos, o filho mudou os dias da ex-atleta de 1,85m. Ele te amansou de alguma forma, Márcia? “Acho que sim. O amor nosso é tão grande que a gente pensa 50 vezes antes de xingar, 100 vezes antes de bater. Sou muito brava, mas ele consegue ser mais bravo que eu. Tem uma personalidade muito parecida com a minha. E por mais que seja enérgica com ele, sou extremamente carinhosa”, responde, aos risos, para logo enumerar as muitas qualidades do menino: “Ele gosta muito de nadar, é muito arteiro, muito bagunceiro, mas muito obediente, o que o torna mais maravilhoso ainda. Ele é uma criança muito dócil, muito educada.” Mãe leoa, que foi leoa nas quadras.
Tudo outra vez
Faria diferente?, pergunto à Márcia, longe do vôlei desde 2001, quando se despediu do esporte jogando pelo Vasco. “Acho que não”, ri. “Tudo o que fiz foi por amor. Não bati nas cubanas porque sou brava ou nervosa, mas porque elas pisaram no meu calo, e não tenho sangue de barata. Quando estamos jogando, não dá para ficar com pó no rosto, maquiagem. Estava defendendo meu país. Estava toda suada, com o joelho todo inchado, morta de cansaço, com meu braço quase caindo pela rede afora, e a mulher vem tirar onda com a minha cara. Só fiz o que qualquer brasileiro faria. Por isso gostam tanto de mim”, diz. Também não traçaria outro percurso, iniciado aos 13, quando a irmã Cida convidou-a para jogar no Sport Club. “Primeiramente agradeço a Deus, depois aos meus pais pela educação que tive e depois ao esporte, que me ensinou as regras da convivência, a ter objetivo, metas”, comenta ela, integrante, ainda jovem, da grande equipe paulista Sadia. “Fomos tricampeã paulista, tricampeã brasileira, tricampeã sulamericana e campeã mundial de clubes. Era praticamente a base da seleção brasileira”, lembra, citando Ana Moser, Fernanda Venturini e outras estrelas com as quais conquistou títulos históricos, incluindo o bronze de duas décadas atrás. “De 1996, lembro que fizemos um trabalho honroso, daquela geração que fez todos pararem para ver o vôlei, parecia Copa do Mundo. Foi uma época em que conseguimos encantar. Uma sintonia nossa com o povo.” A caçula de seis filhos, nascida entre o Santa Terezinha e o Eldorado só escolheria, se pudesse, não carregar no corpo as marcas das batalhas. “Tenho seis cirurgias no joelho, duas no ombro. Não pude mais jogar, justamente por causa dos impactos”, conta.
Atleta não aposenta
Ganhou muito dinheiro, Márcia? “Muito, não. Na minha época, não era esse absurdo. Abrimos as portas para as meninas, hoje, ganharem bem. Com o que ganhei, deu para ter minha casa, meu carro. Tenho uma vida confortável, mas não posso deixar de trabalhar. Não sou nenhum Romário da vida, nem Ronaldinho”, brinca. “Hoje em dia, estou em outra fase. Fiquei mais velha, fiz as cirurgias, tenho meu filho.” O tempo é outro e, hoje, Márcia recebe uma aposentadoria privada e a pensão do pai militar. “Sou mãe em tempo integral e vou te dizer: qualquer preparo físico que eu tenha na vida, não tem condição. Gabriel supera qualquer preparador físico”, ri ela, que há 12 anos vive junto do pai do menino, Fernando. Perguntada sobre a relação com as campeãs olímpicas de 1996, a juiz-forana fala com carinho de Fernanda e Aninha (Ana Moser), com as quais mantém contato. Faz, até, suspense sobre um possível e futuro projeto com uma delas. Depois de ter arriscado como empresária, trabalhado nas prefeituras de Juiz de Fora e de Campos, no Rio de Janeiro, não pensa em parar. “Gosto muito de trabalhar. Estar aposentada não é papo para mim. Atleta não consegue.”
Só se ele for
Planos para agosto deste ano? “Por ser uma jogadora olímpica, posso ir nos jogos, e devo ir, mas só se meu Gabriel puder, com conforto e sem problemas. Hoje em dia, minha prioridade não é nada disso mais. É meu filho. Vivo para ele. O que puder fazer para agradá-lo, faço. Quero educá-lo bem, para que seja um grande homem. Se for trabalhador e souber respeitar as pessoas, me dou por satisfeita”, responde Márcia, que mesmo aos 43 anos e convivendo com a endometriose, ficou grávida. “Engravidei porque Deus gosta muito de mim. Papai do céu é apaixonado por mim”, sorri a mulher que, a cada dez palavras, cinco são sobre o filho, tanto que a TV exibe muito mais “Patati e Patatá” que partidas de vôlei. Márcia Fu, aquela da voz grave e dos gestos muitos, transborda afetos. “É um amor inexplicável que sinto após ter sido mãe.”