Ombreiras, pochetes e baladas à meia-luz
Atire a primeira pedra quem nunca sofreu por amor ouvindo música de dor de cotovelo e se viu com roupas e cortes de cabelo duvidosos em fotos do passado. Considerado por muitos como brega, o estilo musical romântico popular, bem como roupas e acessórios normalmente exagerados ou ultrapassados , tem relevância histórica na cultura brasileira, além de influenciar o que se ouve e veste na contemporaneidade – doa a quem doer.
Para libertar o lado cafona dos juiz-foranos, o bloco Parangolé Valvulado leva às ruas o frevo-enredo "Todo mundo é brega sim". Munidos de lantejoulas, pochetes, ombreiras e outros acessórios clássicos do brega, os integrantes desfilam neste domingo, com concentração, às 14h, no Largo do Riachuelo, animando os foliões com "medleys" de hinos do gênero, como "Não se vá", "Como uma deusa" e "Fogo e paixão", e referências a ícones como Sidney Magal, Cauby Peixoto e mesmo Roberto Carlos, provando que nem a realeza escapa da breguice.
"A letra fala do amor exagerado, desmedido, da necessidade de assumir o brega para uma união em prol do bem maior. Inserimos versão e desdobramento de refrão e expressões que marcaram o brega. A melodia é de fácil assimilação, e toda a cadência da harmonia foi pensada na estética do gênero", explica o músico e integrante do bloco Fred Fonseca.
Segundo Edson Leão, também músico e participante do bloco, o Parangolé, que tem influências do Tropicalismo, sempre teve a proposta de misturar linguagens e universos culturais, inclusive dialogando com a cultura pop (como no enredo sobre Mussum e o que versava sobre o fim do mundo). "E era uma proposta do tropicalismo também quebrar com as fronteiras rígidas dos padrões de bom gosto, reconhecendo a música, na época chamada de cafona (e que depois seria chamada de brega), como um aspecto da cultura brasileira a ser levado em conta. Além disso, pelo próprio caráter lúdico do bloco, é uma forma de brincar com o imaginário popular e com referências que muitos de nós negamos ter, mas que estão na formação de todo mundo", diz o artista. "Tanto que um dos momentos em que todo mundo canta junto nos ensaios é o ‘esquenta’ desse ano, um apanhado de trechos de clássicos de alguns cantores bregas falecidos. Até os mais intelectualizados cantam junto, comprovando que ‘todo mundo é brega sim’", garante Edson.
Ao brincar com referências estéticas, musicais e comportamentais que ilustram o brega, o Parangolé acaba chamando atenção para sua importância na composição da identidade cultural brasileira, manifestada não apenas no passado, mas presente em diversas expressões artísticas da atualidade. A Tribuna conversou com artistas e especialistas, que discutem a importância, a subjetividade e o alcance do brega na cultura nacional.
‘Expressão do amor desmedido’
Segundo a pesquisadora Silvia Cardoso, autora do trabalho "Cafona, brega e de mau gosto: música e crítica nos anos 1970", na música, o brega se restringe a um único estilo musical – pode ser um bolero, uma balada, uma valsa, um samba -, e a definição de quem se enquadra ou não como tal não é fácil, pois envolve aspectos complexos, subjetivos muitas vezes contraditórios. No hall dos artistas que são considerados representantes do brega nacional – ainda que nem todos se reconheçam assim -, Vicente Celestino é tido como um dos pioneiros com suas canções sobre desilusões amorosas curadas com bebedeira, como "O ébrio".
Seguindo a linhagem em outra geração, estão os recém-finados Reginaldo Rossi e Nelson Ned, seguidos por Waldik Soriano, Paulo Sérgio, Agnaldo Timóteo, Evaldo Braga, Lindomar Castilho, Fernando Mendes, Wando, José Augusto, Diana, Cláudia Barroso, Perla, entre outros. Nos anos 1980, destacam-se Sidney Magal, Amado Batista, Agepê, Peninha, Gilliard, Carlos Alexandre, Jane & Herondy, Adriana, Rosana e Kátia (a cantora cega). "O aspecto que parece aproximar esses artistas – e que talvez melhor caracterize a música brega – é a forte carga emocional na temática de suas letras, que falam sobre desilusões amorosas, traição, rejeição, encontros, separações, solidão e sentimentos provocados por uma paixão ou um amor arrebatador.", explica a pesquisadora.
"As performances singulares dos intérpretes dão à música romântica um forte sabor melodramático e, por isso, são muitas vezes apontadas como exageradas e excessivas pelos setores legitimadores de critérios e padrões de gosto", acrescenta Silvia. O músico juiz-forano Fred Fonseca simplifica: "O brega na música brasileira é a verdadeira expressão do amor desmedido repleto de uma atmosfera com cheiro de alfazema, uma meia-luz azul e uma música triste, porém dançante na vitrola."
Na moda, o conceito normalmente é aplicado a algo deselegante, sem refinamento ou tendente ao ridículo. "Mas há gosto e desgosto para tudo, e para mim o brega pode soar como algo divertido na maneira de vestir, não necessariamente cafona e deselegante, porque a moda mistura vários estilos que já estiveram em voga em tempos diferentes. Eu costumo associaá-la à personalidade de quem veste", destaca o mestre em moda, cultura e artes Ricardo Bessa.
Contestação e crítica social
Para o historiador Paulo César de Araújo, autor do livro "Eu não sou cachorro, não – Música popular cafona e ditadura militar" (e da tão discutida biografia de Roberto Carlos), o termo "brega" não deveria ser usado como adjetivo, mas como substantivo. "A palavra surgiu para designar algo ruim, malfeito, de mau gosto, mas quando se fala da música que é classificada como brega, nenhum destes adjetivos é aplicável. Acho que o termo deveria designar um gênero, assim como bossa-nova era um adjetivo e, com o tempo, passou a se referir a um estilo musical específico."
Segundo o historiador, esta conotação negativa da palavra faz com que muitos dos artistas da geração dos anos de chumbo refutem o rótulo de brega, por considerá-lo pejorativo. "Eles sofreram muito preconceito e menosprezo dos críticos e mesmo de artistas da MPB, por isso é difícil para eles. Para a geração mais nova, que não sofreu isso na pele, é mais fácil assumir o rótulo, como a Gaby Amarantos com o tecnobrega, por exemplo."
O cantor e compositor cearense Falcão é um dos que não apenas veste -literalmente – a alcunha, mas faz uma caricatura de diversos elementos tidos como brega em suas letras, que também ironizam aqueles que se consideram "chiques". "Como sou bem-humorado, minhas músicas brincam com esse sofrimento, mas são muito mais exageradas, mais ‘cornas’ (risos). Mas faço também uma crítica a quem torce o nariz para estas músicas românticas, que são parte fundamental da identidade cultural brasileira. Quem se acha chique é que é, na realidade, brega – aí sim, no mau sentido", diz ele, ao telefone à Tribuna.
O músico Odair José, frequentemente lembrado na mídia como um dos representantes da música brega, recusa o título, que considera ofensivo. "Não gosto e não posso aceitar como uma coisa normal alguém querer que eu concorde com esse conceito desinformado e carregado de um preconceito no mínimo ultrapassado, que é o de insistir em classificar o meu trabalho de forma menor. Para mim vem de um total desconhecimento musical", diz o artista em entrevista à Tribuna. "Sobre a censura, só quem viveu e escreveu sabe o quanto era difícil se expressar naquela época. O meu trabalho era de crônicas sobre o dia a dia, falar de coisas que ficavam debaixo dos tapetes, pequenas reportagens, cujo o veiculo era a música, e isso incomodava", acrescenta Odair.
De fato, Odair foi um dos artistas mais censurados no período militar, conforme aponta o pesquisador Paulo César de Araújo. "O regime não censurava apenas letras de contestação ao governo, mas qualquer coisa que ameaçasse os valores que eles defendiam, como família, moral e tradicionalismo. Então uma música como ‘Vou morar com ela’, do Odair era um absurdo, não podia morar, tinha que casar! Romance com uma prostituta, como em "Eu vou tirar você desse lugar", inaceitável! Além disso, versos como ‘Eu sei que seu quarto fica lá no fundo’, falando sobre a dependência de empregadas, eram uma denúncia da desigualdade social, uma crítica à elite", defende o historiador.
‘Todo mundo é brega sim’
Há quem diga que, enrustidos ou não, todos somos bregas em alguma medida. "Entre os diversos elementos incorporados aos estilos, temos o hippie, as calças pantalonas e boca de sino, sapatos plataformas, roupas brilhosas de lurex, bordados, franjas, cintos largos, miçangas, bijuterias exageradas, roupas de crochê, estampas florais, entre tantas outras. Além disso, o brega é um lado comum na cultura latino-americana, e isso pode ser visto nas ruas todos os dias, seja no exagero das cores e comprimentos das roupas, seja nos decotes e combinações que fogem aos padrões", opina o especialista em moda Ricardo Bessa.
O músico Edson Leão destaca que os artistas que já foram considerados bregas estão sendo redescobertos e ganhando a aura de "cult". "É o caso do próprio Roberto Carlos, que para muitos era cafona, mas tanto o período Jovem Guarda dele quanto alguns flertes que ele fez nos anos 70 com arranjos influenciados pela black music despertam o interesse de um público mais antenado. Assim a obra dele e de outros está sendo revalorizada, como a fase psicodélica do cantor Ronnie Von, mais conhecido pelo seu trabalho romântico."
A pesquisadora Silvia Cardoso acrescenta que a noção de brega, quando pejorativa, é flexível, podendo ser alterada e redefinida. "Muitas composições de artistas românticos foram regravadas mais recentemente por cantores da MPB, como Caetano Veloso, Maria Bethânia, Lenine, Zeca Baleiro. A canção "Você não me ensinou a te esquecer", de Fernando Mendes, por exemplo, foi regravada por Caetano e fez grande sucesso, chegando a ser indicada ao prêmio de canção do ano no Grammy Latino de 2004. Essas regravações são também consideradas de mau gosto? Ou passam a ser legitimadas? Esses artistas se rebaixam ao gravar essas canções?", questiona.
Na visão do historiador Paulo César de Araújo, o preconceito em relação ao brega na música vem diminuindo gradativamente, e a tendência é que as canções e os artistas tenham o devido reconhecimento na cultura brasileira. "Foi o que aconteceu com o baião de Luiz Gonzaga, tachado de ‘música de cangaceiro’, e o próprio samba, antes ‘música de malandro’. No cinema, Sergio Leone foi ridicularizado por fazer faroeste, um gênero americano, na Itália, e hoje é uma das referências." Por último, vale destacar que o dicionário Houaiss define brega como "de mau gosto, sem refinamento", mas frisa: "segundo o ponto de vista de quem julga".