Daniela Arbex lança livro sobre a tragédia de Brumadinho

“Arrastados”, quinto livro da autora juiz-forana, será lançado nesta terça-feira (25), dia em que o desastre completa 3 anos


Por Cecília Itaborahy, sob supervisão de Wendell Guiducci

23/01/2022 às 07h00

daniela
Daniela Arbex: “Durante quase dois anos eu não fiz mais nada da minha vida sem ter sido Brumadinho”  (Fotos: Fernando Priamo)

danielaUm sufoco. Lama nos olhos. Quase três anos depois e a tragédia de Brumadinho parece se estender para além daquela cidade. Contar histórias é provocar um teletransporte. Diálogos reais. Cenas da vida de qualquer pessoa. Tudo interrompido por lama. Mas o que se pensa na hora de morrer? E depois? Vale tudo mesmo? Daniela Arbex, ex-repórter da Tribuna, mergulha nos restos humanos e tira deles o amor que não esgota, mesmo afogado e soterrado, para que as emoções sejam perduradas. Contar as 96 horas anteriores à tragédia de Brumadinho foi preciso para que as 262 pessoas mortas naquele dia ressurgissem, reais. “Arrastados – Os bastidores do rompimento da barragem de Brumadinho, o maior desastre humanitário do Brasil”, seu novo livro, que será lançado na próxima terça-feira (25), dia em que o desastre completa 3 anos, é exaltação à memória. Daniela conhece cada personagem pelo nome. Foram dois anos de entrega; cinco meses de escrita contínua. Com o livro em mãos, o seu quinto, a emoção é escancarada em sua voz quando as relações familiares sobressaem na entrevista. Ela, com esse livro, entende todos os outros.

Tribuna: Você fala que teve necessidade de ir até Brumadinho. Por quê?
Daniela Arbex: Eu acho que todas as histórias que eu contei até hoje, com exceção do caso da Boate Kiss, são histórias de Minas Gerais, que se passam no meu estado. Eu sou uma jornalista que constrói a memória coletiva do Brasil. Não estar lá, estando muito perto, era impensável para mim. Eu precisava ver, porque eu acho que quando a gente vê de perto, a gente entende. Mas só que tem uma coisa interessante: quando eu cheguei lá, eu percebi que a gente tinha uma cidade completamente traumatizada, completamente em choque, e que não estava pronta para falar, porque, primeiro, eles não estavam dando conta de processar o que eles estavam vivendo, digerir tudo aquilo, que era brutal; e depois porque eles tinham medo da Vale. Naquele momento eu percebi que aquelas pessoas precisavam de um tempo, que eu teria mesmo que voltar. Mas a ideia desse livro nasceu quando eu estava no ônibus indo para Santa Maria, em Porto Alegre, quando eu recebi a primeira notícia, que foi também quando eu recebi uma mensagem nas redes sociais da família de uma engenheira da Vale, chamada Izabela Barroso Câmara Pinto, que está no livro, pedindo ajuda para localizá-la. Eu prometi para mim mesma que, se eu fosse contar essa história, a primeira família que eu ia procurar era a família da Izabela, e eu cumpri isso. O mais impressionante é que, quando a foto da Izabela chegou para mim, ela estava vestida de noiva. E eu fiquei pensando: “Cara, por que essa menina está assim, por que ela está vestida de noiva? Uma menina linda!”. Então eu precisava entender quem era aquela menina, qual era aquela história.

Como foi chegar lá e ver parte da destruição?
Eu fiquei perdida, porque foi a primeira vez que eu fui para um lugar que eu não tinha feito pré-produção nenhuma. Não tinha como fazer. Eu não tinha nem onde dormir, na verdade. E aí aconteceu uma coisa muito engraçada, porque quem conseguiu um quarto para mim foram dois pais da Boate Kiss que vieram, como voluntários, para dar apoio. Eles chegaram primeiro que eu. Então, ele acabou conseguindo o quarto mais caro da cidade, e era eu que estava bancando. Mas deu tudo certo, e eu queria estar lá, eu precisava estar lá.

‘Após ser prensada, esmagada e socada pela correnteza, que agora corria a 50 quilômetros por hora, Thalyta não conseguia se mexer. Onde foi jogada, paralisou. Além disso, tinha medo de ser arrastada de novo e de levar choque nos cabos de energia partidos. De longe, a irmã mais velha a identificou em meio à lama, mas, mortificada, entendeu que não teria como chegar até ela.
– Agarra em um tronco de árvore – berrou para Thalyta.
– Não tenho mais força – devolveu a menina, com muita dor, sem noção de que fraturara bacia e fêmur e que também por isso não se movia.’

 

E você conseguiu acompanhar de perto?
Em partes. Porque eu fiquei pouco tempo. Eu cheguei e, claro, estava um caos. Os helicópteros voavam o tempo todo. Era um inferno. A história do menino que estava com o fone de ouvido me marca muito, porque eu falo: “O que você está ouvindo?”, e ele responde que nada, era para não ouvir. Realmente era uma coisa muito forte. O tempo todo helicóptero, o dia inteiro. Aquilo era alucinante. Mas eu fui a Brumadinho dezenas de vezes, eu viajei a estados, fui a São Paulo onde tinham famílias, fui a vários lugares, e no meio da pandemia. No meio desse processo, eu perdi meu irmão por Covid-19. Foi outro momento muito difícil, e eu tinha que decidir: ou eu vou parar ou eu vou continuar. E eu decidi continuar.

Danaiela Arbex fernando priamo 2No posfácio, você fala que seu filho pediu que você se reconectasse com a sua família nesse processo todo.
Pois é, engraçado. Eu estava em casa. Diferente dos outros, que fiquei muito tempo longe, nesse eu estava escrevendo próxima dele. Esse eu escrevi na produtora do meu irmão, mas estava todas as noites em casa. Mas eu vi que emocionalmente eu não estava aqui. Era hora de voltar. E esse voltar para a casa é difícil. No caso de Brumadinho, tudo era em escala industrial: o tamanho da dor das pessoas, o tamanho da devastação ambiental. A gente está falando de um mercado, de um modelo de negócio bilionário, que movimenta a economia de um país, a economia mundial. Tudo é gigantesco. O livro tem mais de 200 personagens, eu entrevistei mais de 300 pessoas. Você vai contar uma história dessa, você vai mergulhar. Eu realmente faço um mergulho profundo. Me desconecto do resto, senão você não consegue concluir. Eu vou te falar que eu não vivi. Durante quase dois anos eu não fiz mais nada da minha vida sem ter sido Brumadinho.

Por que o nome “Arrastados”?
Eu acho que um dos capítulos mais importantes do livro é “A morte é avermelhada”, porque é ali que você vai entender o porquê de o livro se chamar “Arrastados”. Muito mais porque toda a vida dessas pessoas foi tirada do lugar, tudo saiu do lugar – inclusive o título do livro está fora do lugar – mas porque quando eu cheguei ao IML, eu acabei descobrindo que os primeiros corpos que chegaram lá tinham perdido a camada superficial da pele, ao serem arrastadas, e é essa camada superficial da pele que dá coloração aos corpos. E aí, ao perder a coloração da pele, eles ficaram todos iguais. Olha que simbolismo: em uma sociedade com um racismo estrutural absurdo, com uma cultura de preconceito imposto pela branquitude, essas pessoas serem iguais na morte simboliza tudo. Por isso eu coloquei “Arrastados”.

‘Uma imensa cratera se abriu e também o gado despencou dentro dela. Solta no ar, a perfuratriz ganhou impulso na direção de Lieuzo, que conseguiu saltar para a frente, mas afundou, sendo levado pela onda de rejeitos. “Morri”, pensou ele, antes de perder os sentidos.’

 

O livro tem muito diálogo, mais que narração. Isso acaba fazendo a gente se sentir realmente dentro do fato. E você reconstitui as 96 horas até a barragem, realmente, romper.
É quase que em tempo real. A gente revive aquilo em tempo real. E para conseguir fazer isso, eu comprei aqueles quadros brancos de caneta piloto, porque eu precisava reconstruir a linha do tempo, para tudo. E aí eu ia montando cada parte da história, com cada personagem, fotografando, para conseguir entender como eu ia costurar essa história.

E por que costurar a história narrando o que aconteceu antes?
Primeiro, eu precisava entender como eu ia abrir esse livro, e eu achei que o leitor precisava entrar nesse universo da mina. Porque uma mina como essa é outro planeta para a gente que não é deste mundo. É um território bilionário e desconhecido. Você tem que entender as coisas. Para mim era muito difícil isso. Se para mim era, era para o leitor também. Quando eu entrevistei o Gleison, o personagem que ia para trabalhar no ônibus, eu falei: “poxa, eu vou abrir o livro assim”. Mas eu precisei criar uma linha do tempo para entender se eu podia construir essas histórias e ir amarrando. E aí eu fui fazer um esqueleto primeiro.

Danaiela Arbex fernando priamo 3E como foi possível reconstituir os diálogos?
Para isso, a gente teve que entrevistar muita gente. Um confirmava o outro. No caso do Lieuzo, ele era a única testemunha, o único sobrevivente que estava em cima do maciço, todos os amigos morreram. Então, eu contei muito com a memória do Lieuzo. Eu acho muito legal reconstituir diálogos e pensar no que a pessoa pensou na hora. E isso tem muito a ver com o meu trabalho, que é um trabalho de resgatar e reconstruir cenários. Muito vai de perguntar mesmo o que ele pensou naquele momento, o que passou pela cabeça dele. Então, quando o Lieuzo cai na fenda e fala “Morri”, tudo o que eu queria saber é o que você pensa na hora que você está morrendo. E ele falou: “morri”. E eu falei: “nossa, vou terminar o capítulo com isso”. A potência da palavra, do jornalismo, é maravilhosa. Mas essa riqueza de detalhes é um trabalho muito árduo e é muito difícil você ficar quase dois anos com sua vida paralisada ali, vivendo essa história, com uma história muito grande para contar nas mãos, com tantos fios soltos, tanta coisa, porque, na verdade, não é a história dos jornais que você vai contar, é a história do que aconteceu. É diferente.

‘O irmão sentiu o peito doer de angústia. Apenas quatro anos mais velho que a engenheira, Gustavo e Bela, como ele a chamava, eram muito próximos. Cresceram juntos, já haviam se casado, mas continuavam se falando quase todos os dias, apesar da rotina puxada de ambos.’

 

Além dos fatos, você coloca muita luz nas relações entre as pessoas.
Engraçado que todos os meus livros, quando eu conto essas histórias de perdas, são sempre muito focados na mãe e no pai. Esse livro teve muita história de irmão. Muita. Eu falo que foi a primeira vez que eu entendi essa dor, eu vivi isso junto com eles de alguma forma. Perdi meu irmão muito querido. Não existe coincidência nem acaso, mas eu estava contando muito as histórias de irmãos que tinham essa relação. O Gustavo e a Izabela tinham uma relação umbilical, que é a mesma que eu tinha com meu irmão. E essa relação eu ouvi de muitos ali. Foi muito incrível. Eu entendi, pela primeira vez com esse livro, um pouco do processo de luto, um pouco do que os filhos que sobreviveram na Kiss contavam em relação a ter sobrevivido e o irmão não.

O caso aconteceu há 3 anos. Por que esse livro ainda é importante?
Esse livro é importante em qualquer época, ele é atemporal. Aliás, todas as histórias que eu conto são atemporais, elas não têm data. Porque se você esquece o passado, você está negando a história. Então, a gente precisa lembrar. E essa construção de memória é essencial para a gente entender não a história de um desastre, de uma tragédia anunciada, é entender a história do Brasil, para a gente se entender enquanto brasileiros. Eu acho que esse livro é isso. Não é a história de um rompimento, é a história de um país, e os valores que a gente traz: o poder econômico no lugar da vida humana. E, também, eu acho que esse livro é uma herança para as próximas gerações e para os órfãos de Brumadinho entenderem o que eles viveram, do que eles foram privados, quem eram os pais deles, para eles se entenderem também.

danielaEssas pessoas ainda perderam seu lugar.
A cena mais brutal do rompimento foi a desenraização. Você perder o seu lugar no mundo, a sensação de pertencimento. E quando você perde seu lugar porque você foi arrancado dele, você fica sem lugar no mundo. Não é o lugar que você escolheu para viver. Você acaba sendo um cidadão de lugar nenhum. E isso é destruidor. É brutal. A Vale fez a reparação, sim. Mas a morte, no caso, é irreparável. Não tem como mensurar o impacto que ela causou na vida das pessoas e a devastação que ela provocou na vida de 270 famílias.

E você segue acompanhando o caso?
A gente ainda está em risco. Se você pensar que há 122 barragens em estado crítico, em 23 estados brasileiros, a gente tem que entender que o que precisa mudar é esse modelo de negócio. Enquanto esse modelo de negócio priorizar o lucro no lugar da vida humana, a gente não vai conseguir ir a lugar nenhum. Minas é o estado brasileiro com o maior número de barragens. A gente tem mais de 20 mil barragens no Brasil, e 10% têm informações confiáveis. O resto não tem informações completas. É tão contraditório, porque a gente fala de um negócio que movimenta a economia de um país.

‘A pergunta central que nortearia o trabalho dos legistas dali para a frente não seria nada fácil de ser respondida. Quem eram aquelas vítimas? Ricardo e seus colegas sabiam que a recuperação da identidade devolveria à família, mesmo que minimamente, a dignidade do indivíduo. O resgate de cada nome garantiria que o ciclo do luto pudesse ser vivido pelos parentes.’

daniela

 

 

Os comentários nas postagens e os conteúdos dos colunistas não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir comentários que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.