Galeria Pio X, a primeria de Minas, completa 100 anos como referência
No centenário da primeira galeria de Minas Gerais, saiba o que faz esse espaço importante e sua relevância artística para Juiz de Fora

Em 1923, a Galeria Pio X foi encomendada pelo empresário Arthur Vieira — ela abriria dois anos depois, de uma maneira bem diferente da que é hoje, 100 anos desde sua inauguração. Isso porque, naquela época, era a primeira do gênero em todo o estado e uma das únicas no país. Há quem lembre dela pelo apito do meio-dia, já tombado como patrimônio imaterial da cidade, pelo painel de Dnar Rocha ou pelo estilo arquitetônico art déco da fachada de Raphael Arcuri. Ou mesmo pelos comércios que já funcionaram e os que funcionam agora ali. Seja para quem as procura para fugir de um dia de chuva, para cortar caminho entre a Halfeld e a Marechal ou pelas esquinas que são multiplicadas por ela, todos sabem que essas galerias fazem parte do dia a dia dos juiz-foranos que, por influência dessa pioneira, passaram a ter uma multiplicidade de galerias no Centro que funcionam como um labirinto no meio da cidade. Como já disse Clarice Lispector, nas palavras finais do livro “A cidade sitiada”: “Perder-se também é caminho”. E foi contando com isso que esse espaço construiu sua trajetória como referência em Juiz de Fora.
Apesar de as lojas mudarem e se renovarem, há uma contribuição que parece ficar pela própria estrutura das galerias da cidade, que já somam mais de 50 no Centro. Entender como as galerias funcionam e sua permanência nas cidades foi o tema da pesquisa de mestrado do professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Francisco Braida, que fez uma análise de como esses espaços funcionam em Juiz de Fora e em Buenos Aires. Para ele, há dois aspectos que são chaves para entender essa importância: a vitalidade e a centralidade que trazem. “A atividade comercial funciona como ímã para atrair as pessoas durante o dia. Por serem pontos comerciais muito intensos, acabam chamando muitos pedestres e geram circulação de pessoas que contribui para a vitalidade do Centro. Isso reforça também a centralidade, porque não vemos, por exemplo, esse conjunto de galerias em outros bairros da cidade.” Ele ainda entende que o tipo de “espaços de refúgio e proteção” dentro do centro urbano também são aspectos importantes para garantir essa circulação.
Para uma galeria realmente se destacar, no entanto, ele entende que é preciso que tenha o “plus” que a Pio X também passou a ter na década de 1930. “A grande sacada é quando conectam duas ruas. Esse modelo de galerias deu muito certo em Juiz de Fora, dado o traçado do centro urbano. Temos uma quadra muito extensa, além do normal, que é, por exemplo, a distância da Batista com a Rio Branco. A Pio X funciona dentro desse esquema: facilita o acesso entre as ruas”, explica o arquiteto, que entende ainda que o padrão dessas galerias é de ter os comércios mais ligados a compras “de impulso” no primeiro andar e os especializados, como no caso de estéticos ou de saúde, no segundo. Foi naquele momento que ocorreu a participação do importante arquiteto ítalo-brasileiro Raphael Arcuri na obra.
Letícia Rabelo, que montou um projeto de museu de percurso sobre o arquiteto que inclui a galeria, conta que foi em 1934 que essa execução com passagem entre as ruas foi finalizada, apesar de já estar no projeto inicial. E acrescenta: “Ele faz isso e cria uma nova fachada voltada para Deodoro, agora com um estilo art déco que era um pouco mais moderno para a época, marcando esse novo momento da galeria”.
Isso garantiu uma diferença permanente entre as galerias e os shopping centers, por exemplo. Apesar de boatos e de receios de que as galerias teriam menos destaque com a chegada desses grandes ambientes na cidade, elas não perderam seu espaço. “A maioria dos shopping centers não tem aberturas para o lado de fora. A ideia é que, a partir do momento em que chegamos, seja tudo artificial: o ar condicionado, a distribuição das lojas, a praça de alimentação aberta o dia inteiro. A ideia é se perder no tempo para consumir. Mas nas galerias, não: elas não têm como política deliberada fazer com que as pessoas se percam para consumir”, explica o professor. O único risco, nesse caso, é se perder nos caminhos que elas oferecem e nas possibilidades encontradas ali, que por vezes desnorteiam os pedestres, que por vezes precisam recuar e tentar se lembrar para qual lado estavam indo.

Do apito ao ladrilho
Também em contraste com os shoppings, há galerias que buscam se diferenciar umas das outras a partir de aspectos comerciais, arquitetônicos e até artísticos que deem mais identidade a elas. É isso que percebe a artista plástica e arquiteta Tarsila Palmieri, que na comemoração do centenário da galeria também fez um projeto que a inclui, chamado de “Eu mandava ladrilhar”. Nessa iniciativa, os ladrilhos hidráulicos do local são eternizados a partir de peças de roupa — um interesse que surgiu justamente pela ligação pessoal com esses espaços do Centro, que ela considera criativos e inspiradores. O síndico do local, Paulo César Soares, também entende que o que a Pio X tem é diferente. Para ele, um dos exemplos mais chamativos é justamente o apito, que funciona na cobertura da galeria e é acionado diariamente faltando 30 segundos para meio-dia, e que hoje é reconhecido como uma marca cultural da cidade.
Sua história remonta à comemoração do centenário da Independência e serve para marcar o período de descanso. Mas ele mesmo já ouviu todo tipo de história sobre o assunto: “Já escutei que tocava quando tinha algum comunicado ou mesmo quando a Segunda Guerra Mundial acabou”. E também foi seguindo essa história que ele conta que a galeria se modernizou, nos anos 1990, com a adoção das escadas rolantes e, a partir de 2000, com a troca do sistema elétrico e a instalação de elevadores. “Buscamos aquecer o comércio e também partir para a vanguarda das galerias da cidade. Hoje, somos a mais atualizada e que atende melhor às locações.”
Uma caixinha de memórias
Com o projeto que busca valorizar os olhares para esses espaços históricos da cidade, Tarsila ainda percebeu uma lacuna no reconhecimento de toda essa história envolvendo a galeria. “Vejo um grande número de pessoas que não conhecem a história da galeria, que nunca subiram ao segundo andar para ver esse vitral e esses ladrilhos. As pessoas precisam ver essas belezas para se aproximarem e quererem preservar esse espaço.” Apesar de as galerias terem tomado força no Brasil justamente quando estavam em declínio na Europa, Frederico Braida também tende a ter um olhar positivo para o futuro delas, ainda mais considerando a importância que podem passar a ter em um contexto que, justamente onde são localizadas, está se formando um centro histórico. É o legado que a Pio X deixa para o futuro: seja de inspiração para as próximas galerias, que continuam surgindo, ou também como lugar permanente de apreciação.
Isso é também o que entende Letícia, que defende o local como uma “caixinha de memórias”, até pelo seu formato “meio retangular”. “Por lá, passaram uma série de personalidades muito importantes para a história artística da cidade. São vários elementos muito ricos reunidos.” Inclusive por isso, Paulo não tem medo desse futuro. “Já são 100 anos. Como se sustentou no início do século passado, a galeria continua agora. É um comércio que nunca vai parar, porque é para quem trabalha no Centro, para quem não tem tempo de ir ao shopping e que aglomera estabelecimentos e história com facilidade”, finaliza.
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