Museu Casa Natal de Santos Dumont inicia campanha de financiamento coletivo para não fechar as portas
Ligada aos governos federal e municipal, instituição sobrevive graças à iniciativa particular. Como um museu que homenageia o mesmo inventor que dá nome a uma cidade e originou sua própria rodovia nacional assiste seu potencial atrativo ser pouco a pouco reduzido?
Sensibilizado pelas próprias memórias, Alberto Santos Dumont, na década de 1920, regressou à Fazenda Cabangu, onde havia nascido, em 1873, com o interesse de comprar o imóvel. Pertencente à Estrada de Ferro Central do Brasil, o imóvel foi ocupado pela família Dumont durante a construção da ferrovia na região, obra na qual o patriarca Henrique Dumont esteve envolvido. Após a mudança dos moradores, por conta da evolução da empreitada, a casa serviu a outros funcionários da linha férrea, até ser doada ao Pai da Aviação. No local, o aeronauta construiu uma lareira e sobre ela duas bases para dois bustos seus, denunciando seu próprio interesse na valorização e preservação de sua história. Em 1973, 41 anos após sua morte (em 1932), um museu foi erguido no lugar, também fruto de um individual esforço, dessa vez de um secretário da Prefeitura da cidade que ainda na década de 1930 deixou o nome de Palmyra para adotar o de seu filho ilustre. O próprio gesto partiu do desejo do jornalista e historiador Osvaldo Henrique Castello Branco, que da morte de Santos Dumont até a abertura de sua casa natal para o público e por muito tempo depois guardou em sua própria residência o acervo do inventor.
Após a morte de Osvaldo, sua filha, a professora aposentada Mônica Castello Branco Henriques assumiu a coordenação do museu. “Quando meu pai vinha trabalhar, aprendi a dirigir para trazê-lo até aqui”, recorda ela, cujo irmão, Tomaz, preside a Fundação Casa de Cabangu, responsável pela gestão do museu. Há 20 anos, a mulher de 77 anos cruza a cidade para cuidar do acervo que ocupa sua vida desde a infância. “Fiz vários cursos de história desde que trabalho aqui, para ter conhecimento sobre preservação”, conta. Mãe de dois e avó de três, lamenta a ausência de perspectiva sobre sua sucessão. E reconhece que o encantamento particular nunca se sobrepôs ao investimento e reconhecimento do Poder Público. “A valorização do nosso museu está na minha voz, que consegue fazer com que não apareça tanto a necessidade de trato e cuidado. Conto a história, converso e faço com que o museu fique na memória de quem passa por aqui”, pontua a mulher com a foto do local na camisa que veste.
Quando não puder mais vir ao museu, o que será dele? “Da fundação talvez tenhamos alguém. São 40 membros do município, que elegem seis para diretoria. A diretoria se reúne mensalmente na primeira segunda de cada mês, quando passo as ocorrências do museu. Se alguma hora eu tiver que parar, algum desses seis assumirá”, aposta, fazendo eco a muitos outros profissionais e gestores de museus pelo Brasil, que se alimentam da paixão que insiste em manter portas abertas e coleções à disposição do público. Retrato da questão patrimonial na cidade e no país, o Museu Casa Natal de Santos Dumont enfrenta o esvaziamento, literal e figurado, de um projeto com indiscutível potencial atrativo. Seu abandono se assemelha ao do Museu Mariano Procópio, há mais de dez anos fechado. Sua vulnerabilidade é comparada à do Museu Nacional, consumido pelo fogo no último mês.
O espaço que poderia ter sido e ainda não é tem sua força expressa na peculiaridade do caminho que leva à porta. Criada em sua inauguração, a rodovia federal BR-499, cujo nome homenageia Osvaldo, é uma das menores do Brasil, com menos de 20km de extensão. Seu trecho é concluído justamente na fazenda, confirmando os planos para viabilizar e agilizar o acesso ao endereço, o que não foi suficiente para tornar o espaço devidamente reconhecido. A estimativa oficial calcula entre 800 e 1.000 visitantes por mês no museu. “É um número bonito, mas se pensarmos n’A Encantada, de Petrópolis, que é uma cidade turística, percebemos que somos mais pobres”, lamenta Mônica.
O esboço de um exitoso museu também se confirma no investimento inicial feito no local. A Prefeitura comprou terrenos próximos, para a formação do Parque, entregue ao Ministério da Aeronáutica, responsável pela guarda e manutenção do endereço. O município, ainda, acordou um repasse que desse conta única e exclusivamente para o pagamento dos funcionários do museu. Desde março, isso não acontece. “Os funcionários, que fazem a limpeza da casa e a higienização do acervo, estão trabalhando de graça. Trabalhamos sem receber, por causa da visitação. Tenho recebido grupos de guias e agências de turismo de Juiz de Fora, Belo Horizonte e outras cidades da região. Recebemos também excursões e visitantes que passam pela estrada e, ao verem os outdoors, decidem conhecer o museu. Às vezes, aos sábados e domingos, ficamos na portaria, solicitando a quantia de R$ 2 por visitante para fazer vale para os funcionários. Eles estão vivendo com esse dinheiro”, conta a coordenadora da casa Mônica Castello Branco Henriques.
Contar com o público tornou-se a perspectiva mais viável, e o museu inaugurou, na última quinta-feira, o programa Somos Todos Museu Cabangu, campanha de financiamento coletivo para angariar R$ 177 mil para a manutenção da casa. “A dificuldade é geral. Se for o caso, teremos que fazer um novo acordo, mas é impossível passar tudo para a Epcar e largar a Prefeitura, que é dona desse terreno. Não temos como pedir verba ao Estado, porque não temos documentação completa, já que sem os repasses da Prefeitura não tivemos as condições de pagar as obrigações sociais e temos dívidas trabalhistas. Sem a certidão negativa de débitos, não conseguimos concorrer em leis de incentivo”, lastima a curadora da casa.
Enquanto isso, as telhas deslizam, a chuva chega à esteira que faz a vez de teto, e goteiras colocam em risco todo o acervo. As maritacas que entram pelas frestas na telha costumam descascar os fios e também pondo em risco um curto circuito. “Nosso medo é que uma gota d’água caia e faça uma comunicação entre os fios desencapados. Não queremos que aconteça como foi com o Museu Nacional, no Rio de Janeiro”, diz, contando que, em janeiro, uma caixa d’água transbordou sobre a sede administrativa, e o forro desabou, encharcando a biblioteca do museu. “Perdemos muitos dos livros e ainda não temos a iluminação recuperada”, comenta Mônica, enquanto abre livros que estão em caixas, com as páginas grudadas e completamente enrugados.
Ironicamente, o espaço que há décadas enfrenta um interminável drama e não conseguiu se atualizar tanto em sua estrutura quanto em sua expografia recebe anualmente a cerimônia de entrega da Medalha Santos Dumont. A honraria, entregue a 130 personalidades de diferentes áreas pelo Governo de Minas Gerais, impõe outra rotina ao lugar, que passada a euforia do evento retorna exatamente ao mesmo ponto de degradação e descaso. “Para fazer essa medalha, vem muitos funcionários do Estado. O Cabangu vive uma festa durante 15 dias, só para a montagem. É uma contradição”, pontua Mônica, ainda sem a informação sobre a entrega deste ano, que deveria ocorrer no próximo dia 23 de outubro, quando o país comemora o dia do aviador, em reverência à data em que Santos Dumont fez seu primeiro vôo com o 14-Bis.
Interdições são realidade em pequeno paraíso
Executada em alumínio, com 75% do tamanho real, uma réplica do 14-Bis ocupa o parque do Museu Casa Natal de Santos Dumont, ao lado de um lago onde ficam duas gansas bastante mansas. À frente da cópia da mais famosa criação do inventor brasileiro, estão os três pavilhões que há dez anos amargam a interdição. A expectativa é que sejam demolidos quando houver verba para tal ação. “O projeto foi da Epcar, construído em 1973. Eles faziam propostas de custo menor, com pouca verba, gastando o mínimo possível. Até que essa construção durou muito”, reflete Mônica Castello Branco Henriques, apontando para as três décadas que as edificações resistiram em pé, sem que a água e os cupins houvessem consumido toda a sua estrutura em madeira. As peças que estavam no local passaram, então, para o prédio administrativo.
No casarão mais novo, está uma réplica em tamanho original do Demoiselle, considerado o melhor modelo de avião do inventor. Fabricada por um artista local, a peça divide espaço com um painel com o desenho de algumas das criações aéreas de Santos Dumont, e outro painel dando conta da construção do 14-Bis, ambos doados pelos Correios após exposição pelo centenário do pioneiro avião, que, em 1906, realizou um voo de 220 metros em Paris. Ainda, numa pequena vitrine ficam à mostra talheres utilizados pelo Pai da Aviação quando visitou Foz do Iguaçu, momento em que sugeriu a abertura para visitação da área particular que originou o famoso destino turístico das cataratas. A sala contém, por fim, uma réplica da nacelle, cesto onde o aeronauta entrou para pilotar balões e outras criações suas.
Sem exposições temporárias, o espaço criado para servir a salas de reuniões e guarda do acervo deixa visível seu caráter de improviso. Mais ao fundo, um espaço preserva um motor original usado em balões por Santos Dumont e mais fotos, além de um altar com uma urna de madeira com as cinzas da decana mundial da aviação feminina, a brasileira Anésia Pinheiro Machado, amiga de Santos Dumont que convenceu a Nasa a nomear uma das crateras da Lua com o nome do Pai da Aviação. Do lado de fora, uma árvore da espécie Pinus colocava em risco a sede administrativa ou o museu. Bastante agigantada, ela morreu, e uma madeireira cortou. Outras duas árvores, de porte menor, esperam pelo mesmo gesto. Numa área mais alta do parque, o campo de futebol e a lanchonete seguem fechados.
Rastros do célebre homem comum
Em tempos de efusivos discursos nacionalistas, o Museu Casa Natal de Santos Dumont é símbolo da seletividade do interesse preservacionista nacional. E ainda que reverencie a memória de um dos maiores inventores brasileiros, confirmando sua genialidade, o espaço se singulariza justamente por revelar, mais que Santos Dumont, o Alberto por trás da vida célebre. “Ele teve uma vida aqui comum como a de muita gente, diferentemente da de aeronauta”, reforça Mônica Castello Branco Henriques, apontando elementos triviais e por isso curiosos, como cartas endereçadas ao caseiro João, uma delas orientando sobre a construção das mobílias que hoje ocupam a casa, após serem compradas pela Fundação Museu Cabangu num leilão no Rio de Janeiro.
Nas missivas, que como fotografias e objetos pessoais foram recolhidos da casa após a morte de Santos Dumont, resta a marca de um homem entre duas pátrias. “Em todas as cartas, tem o sinal de igualdade. Ele era brasileiro, filho de dona Francisca Santos. E era francês, filho de Henrique Dumont (descendente de imigrantes). Sempre fazia o sinal de igualdade entre os dois sobrenomes porque para ele tanto fazia ser brasileiro ou francês”, diz a curadora e coordenadora do museu, que percebe um crescente interesse pela vida e obra do aeronauta.
“Quando meu pai começou, existia menos interesse pelo Santos Dumont. O Brasil ainda não valorizava tanto a primazia dele. Com o tempo, isso cresceu. Hoje a pesquisa é maior”, alegra-se, enchendo de uma esperança da qual nunca abriu mão e está expressa numa parede. Diferentes placas se reúnem numa mesma parede abaixo dos pavilhões, a primeira delas de 1923, nove anos antes da morte do inventor, ganhada de alunos da Escola Preparatória de Cadetes do Ar, a Epcar de Barbacena. No local, também está uma cápsula do tempo, preservando desenhos e textos de crianças produzidos em 2006 para serem abertos em 2056, quando o tempo dirá se a memória do Pai da Aviação decolou ou não.