Eles continuam sendo
Os cavalos não só resistiram ao tempo, como continuam vagando altivos pela literatura brasileira, feito marcos do novo século. Obra responsável por lançar o escritor Luiz Ruffato no cenário literário nacional, “Eles eram muitos cavalos” completa 15 anos em 2016. O título, que rendeu ao autor o prêmio de melhor romance pela Associação dos Produtores e Críticos de Arte de São Paulo, em 2002, e o Machado de Assis, da Biblioteca Nacional, no mesmo ano, reverencia a cidade que o cataguasense, com passagem por Juiz de Fora, escolheu para fincar raízes. “Foi o livro que me abriu as portas. Está publicado em 11 países. É ele que sempre leva os outros (livros)”, contou Ruffato, que esteve na cidade na terça-feira, para participar da 1ª Bienal do Livro. “Empenhei-me ao máximo para fazer exatamente o que queria. Não sei se teria condições, hoje, de fazer a mesma coisa”, diz ele sobre a obra que está em sua 11ª edição, tendo passado por três casas editoriais. Com uma edição comemorativa prevista para o fim do ano, a obra também será lembrada, nos próximos meses, pelo Sesc Ipiranga, na capital paulista, que fará a remontagem da instalação que inspirou o livro, assinada por Roberto Evangelista. Sensível e ao mesmo tempo impactante, “Eles eram muitos cavalos”, continua, mais do que nunca, urgente.
Leitura num fôlego só
Como um “flanêur” (o observador da cidade para Charles Baudelaire), o autor faz um passeio por São Paulo no dia 9 de maio de 2000. Uma terça-feira. No mesmo compasso, o leitor é levado a flanar com a mesma agilidade por 70 fluidos fragmentos, entre textos curtíssimos e outros pouco mais longos. Rápida a leitura, comprida a apreensão.
Linguagem esquadrinhada
Às vezes é preciso fôlego para acompanhar uma longa construção sem pontuações. Fato cotidiano transformado em ato literário. O autor é o que vê, por isso todo o texto não se ancora num padrão, fazendo existir um todo de linguagem inovador, capaz de compreender recursos e formas diversas.
Visualidade pulsante
“Foi na Bienal de Arte de São Paulo de 1996. Era uma passagem com pedras portuguesas no meio. De um lado, calçados. De outro, as caixas dos sapatos. A ideia é remontar com outros elementos, inclusive alguns que sugeri. Com pedras portuguesas de São Paulo e caixas de sons”, conta o escritor, referindo-se à instalação “Ritos de passagem”, do artista acreano Roberto Evangelista, que lhe inspirou na escrita do livro. Fazendo jus à sua origem visual, “Eles eram muitos cavalos” se aproxima bastante da ideia de instalação. Ao longo das páginas, vários tipos gráficos e até uma página negra.
Rumo para a escrita contemporânea
Considerado um dos principais títulos do século XXI, “Eles eram muitos cavalos” está em muitas das obras que lhe sucederam. Serve de caminho para a premiada Tatiana Salém Levy em seu “A chave de casa” e da já declarada inspiração para a jovem Sheyla Smanioto em seu “Desesterro”. A obra é base e resumo da escrita da atualidade.
Recusa de protagonismo e antagonismo
Não espere que o guia que caminha por São Paulo tenha nome. Não há um protagonista, a não ser a cidade e suas vielas e avenidas, suas mansões e casebres. Nem haverá de se apresentar um antagonista. Há anônimos pelo caminho, como no dia a dia, em qualquer lugar.
Longevidade da proposta
Passados 15 anos, a obra mantém-se atual e fresca. Lida em seu lançamento ou hoje, cria o mesmo sentido. “Minha última leitura foi em 2012. Acho que o livro funciona, é contemporâneo, não perdeu nada”, comenta Ruffato.
Tempo não sequencial
Mesmo que uma data inaugure o texto, não há um tempo delimitado na obra. O tempo, para uns, parece mais largo, enquanto, para outros, todo dia é o último. Para a pesquisadora da PUC Minas Ivete Lara Camargos Walty, “não apenas os espaços se interpenetram, mas também o tempo. Passado, presente e futuro contam a história da cidade, ela própria uma história de exclusão social.”
Leitor desafiado
Inquietante, a obra exige do leitor um exercício que vai além da página. Difícil por sua densidade, o livro questiona a existência e a convivência. Sua importância está em acordo com sua complexidade. Obra duradoura, na cabeça e na literatura.
Fotografia de um urbano caótico
A mesma cidade que existe para o homem de Rolex de ouro, existe para pai e filho que substituem o ônibus pelos pés para economizar a passagem. A São Paulo de contrastes, de trânsito confuso, de neon e de placas escritas à mão, é a protagonista da obra. “São Paulo apresenta-se como um mistério a ser desvendado”, aponta o pesquisador Elenilto Saldanha Damasceno em artigo para a revista “Nau Literária”, da UFGRS.
Diálogo com a tradição
“Eles eram muitos cavalos,/ nas margens desses grandes rios.” Os versos, de Cecília Meirelles, em “Romanceiro da Inconfidência”, servem aos cavalos-gentes de Ruffato, demarcando sua estreita conversa com o já feito no país. Para a pesquisadora da PUC Minas Ivete Lara Camargos Walty, o poema “é lido por Ruffato como o canto àqueles que não foram e não são nomeados na história do Brasil e na história da literatura brasileira”.
Retrato de uma sociedade estranha
Se todos os fragmentos formam a urbe, a sociedade retratada é, no mínimo, desconcertante. “A cidade – cicatrizes que mapeiam meu corpo”, pontua Ruffato em texto para o livro “Escrita criativa”, no qual sinaliza seus impulsos para a escrita da obra. Fotografia cruel, porém real.
Incursão por outros gêneros
Meteorologia, horóscopo, cardápio, classificados de jornal, oração de panfleto, letreiro e relatos compõem um livro que flerta com o conto, mas também com a publicidade, sem se filiar ou se limitar a um só gênero. “São as formas dentro da forma”, define o pesquisador Paulo Henrique da Cruz Sandrini em sua dissertação “Que romance é este?”.
Subversão da ideia de romance
Na 11ª edição da obra – “revista, definitiva”, como aponta a folha de rosto – inexiste o termo romance da ficha catalográfica. Discutida entre críticos e pesquisadores, a conceituação como romance causa polêmica. Se entendido o termo como composição em prosa, ainda assim o livro é subversivo, já que em muitos momentos parece inclinar-se ao poético.
Potência do anônimo
Não há história coletiva se há recusa pelas narrativas individuais. O livro ressoa a assertiva. “A violência da invisibilidade, a violência do não pertencimento, a violência de quem tem que construir uma subjetividade num mundo que nos quer homogeneamente anônimos”, escreve Ruffato em “Escrita criativa”.
Precariedade do hoje
Ao longo de seu processo de criação, Ruffato afirma ter coletado pelas ruas objetos como livros, eletrodomésticos, calendários e folhetos, muitos folhetos. Recolhia, assim, provas de uma vida precária, de vestígios de vidas, de restos de histórias. “Na cidade moderna, a falta de sentido da vida revela-se a partir da consciência sobre a precariedade de cada vida”, pontua o pesquisador Elenilto Saldanha Damasceno.