Anderson Pires lança ‘O mal que os habita – O Edifício Dante’
Novo livro do professor da UFJF é um terror psicológico inspirado na visão infernal de Dante Alighieri
As páginas dos livros são só a porta de entrada para o que a imaginação é capaz de desenvolver. Depois de publicado, ninguém, nem mesmo o autor que o escreveu, consegue imaginar até onde ele pode chegar. Em 1472, Dante Alighieri escreveu o livro “Divina comédia”. Ele é dividido em três partes: “Inferno”, “Purgatório” e “Paraíso”. Até hoje, a obra é base e referência para artistas em geral, inclusive outros escritores e ilustradores. Gustavo Doré é um que ilustrou a obra. E lá está ela, com as ilustrações, na estante de Anderson Pires da Silva, escritor e professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora. Vez ou outra, as estantes são arrumadas, seja para incluir novos livros ou para tirar a poeira. De maneira desprevenida, o “Inferno” foi folheado por Anderson. Nas ilustrações, ele encontrou a base para a escrita de seu novo livro: “O mal que os habita – O Edifício Dante”.
“E se, ao invés de um iceberg, o inferno fosse um prédio, com cada andar representando um dos círculos infernais? E se esse prédio existisse nos dias de hoje? Significaria que as formas de maldade humana descritas por Dante continuariam a existir hoje? Aí surgiu o mote que conduziu o romance, um mal antigo (o contexto histórico em que a Divina Comédia foi escrita) que ressurge em nossa contemporaneidade (o meu Edifício Dante)”, revela o escritor. Com base nessas indagações, o livro foi surgindo de maneira rápida. Cada um dos nove círculos do inferno representam como se fosse um pecado, sendo eles, como lembra Anderson: prevaricação, ganância, exploração da fé, assassinato, intolerância, corrupção moral, calúnia, difamação, ódio contra o próximo. Esses foram os temas de cada capítulo, representados por personagens bem descritivos e, acima de tudo, humanos – pessoas que podemos cruzar nas ruas.
Ficção e realidade se encontram
A ficção encontra, na realidade, inspiração. No terror, isso é possível também. Quando a gente pensa nas cenas de filmes do gênero clássicas, geralmente vem à mente a casa abandonada, as sombras, o barulho dos ventos. Mas, e no livro? Como sentir medo? Anderson responde que, em seu caso, quando escreve, a preocupação “é sempre manter a tensão narrativa e construir cenas impactantes; a ambientação também é importante, o espaço onde as coisas acontecem”. Na contramão dos clássicos, o ambiente de “O mal que os habita” é um prédio moderno, chamado de Edifício Dante, um lugar luxuoso. “Eu gosto de situar minhas histórias na cidade, no urbano, lugares familiares ao leitor. É uma característica do horror contemporâneo, vemos isso em Alan Moore, Neil Gaiman e Junji Ito. Eu só estou seguindo esse fluxo.”
Além de ser um lugar familiar, as situações acabam sendo comuns. Quando Anderson fala do que ele chama de “nove pecados” abordados no inferno, lembra que eles, diariamente, são tema de telejornais, por exemplo. “Com isso, não digo que vivemos em um inferno simplesmente. Na ‘Divina comédia’ também há o paraíso, e quem sabe um dia possa cantá-lo. Será o melhor dia da minha vida. Mas, por enquanto, como disse Drummond, o tempo ainda é de incertezas e maus poemas.” Assim como esses temas são abordados, os problemas sociais também são pano de fundo para a escolha da forma como o edifício foi desenvolvido. “Eu percebo que muitos escritores e escritoras brasileiras costumam localizar nas classes mais desfavorecidas os temas típicos do horror, os personagens mais malignos quase sempre são o coveiro, o açougueiro, a beata. E acho que a repetição desses papéis revela um preconceito de classe. Por isso, pensei o Edifício Dante como um microcosmo, em que pudesse explorar a diversidade social, o conflito de classes e situá-los sob a perspectiva de uma sociologia do terror.”
Tantas inspirações
Os personagens, em seu enredo, vivem no topo do abismo. “Um lugar que não tem mais volta”, define. Para pensar neles, Machado de Assis também esteva presente como influência – apesar de em outro livro de Anderson, “Malditos”, ela estivesse mais clara. “Com Machado eu aprendi a escrever ficção, a usar a frase curta para aumentar a tensão, empregar as orações coordenadas para a síntese expressiva, evitar longos períodos subordinados, porque isso incha a narrativa e enche a paciência do leitor; descrever o essencial, não pensar que os personagens são portadores da minha visão pessoal de mundo, a intertextualidade como forma de composição.” Outra inspiração foi o cartunista Péricles, criador do Amigo da Onça. Um dos personagens, o que ele considera mais trágico, que também é cartunista, foi inspirado nele. Em “O mal que os habita”, Anderson explica que “ele toma uma decisão fatal diante da vida, no momento em que descobre que há espaço para ‘beleza e grandiosidade na vida'”.
As histórias em quadrinhos foram, desde sempre, inspiração. Neste livro mais novo não é diferente. As histórias da revista “Cripta do terror” também estão presentes de certa forma. Anderson conta que é leitor dos quadrinhos desde novo. Ele até queria entrar nessa área. Com insistência, pedia a um amigo para ilustrar seus escritos. O amigo nunca fazia e, um dia, disse a ele que nem tinha como, porque o que ele faz é mesmo literatura. Foi quando, então, Anderson percebeu que seria isso mesmo. “A culpa é toda dele”, brinca. Mas entrar no terror teve motivo, também. Para o autor, o gênero combina duas coisas que gosta como leitor: tensão psicológica e ação narrativa, “e por ser mais simbólica, você tem mais liberdade de imaginação”. Neste livro, Anderson reconhece duas categorias presentes: o terror psicológico e o horror social. O primeiro porque os personagens, para ele, “estão entregues à própria fatalidade, à beira da desesperança total”. O segundo “porque tenho de representar também o que significa um juiz que perdeu a fé na bondade humana. Que tipo de indivíduo poderia ser esse?”, indaga.
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