Falando do meu mundo, posso atingir todos
A entrevista foi marcada para as 13h, em uma brecha das gravações da novela “Alto astral”, da Rede Globo, em que interpreta a personagem Kitty. No entanto, dessa vez, quem falava do outro lado da linha telefônica não era a atriz, que há 35 anos encanta os brasileiros nos folhetins da emissora carioca, mas a autora do recém-lançado “Todo vícios” (Record). O romance (segundo da carreira) chegou às livrarias em novembro de 2014 e acabou de ganhar uma reedição com textos elogiosos do cronista Fabrício Carpinejar, do colunista da revista “Veja” e mediador do “Roda viva”, da TV Cultura, Augusto Nunes, além de Alberto da Costa e Silva, dono da nona cadeira da Academia Brasileira de Letras.
Recebo a aferição de quem tem muito hábito de ler, e que admiro, e também do público em geral, gente que faz associações muito simples, como a que disse: ‘estou acordada às 6h da manhã e não consigo parar de ler porque isso tem muito a ver comigo’. É por isso que a gente escreve, para ser admirada pela crítica, mas também para tocar o coração das pessoas”, comenta Maitê Proença, não mais “uma estranha no ninho das letras”, conforme aponta o também imortal, o jornalista e escritor Antônio Torres.
Uma bela e madura atriz e escultora, chamada Stellla, se apaixona por João, um publicitário cinquentão, feio e viciado em remédios tarja preta. “Levava o peito curvado pra dentro, ombros tensos escondiam-lhe o pescoço, parecia desvigorado, e se vestia com desleixo. Mancava levemente. Nenhum traço sobressaía em seu rosto além da boca carnuda que, se não fosse ressecada, poderia ser bonita, e dos olhos quentes que diziam uma imensidão. Nada que ela soubesse decifrar”, apresenta Maitê logo nas primeiras linhas. Os diálogos entre os dois personagens vai se desenhando em forma de troca de mensagens por celular, o que nos faz conviver com os pontos de vista dos dois amantes. Segundo a autora, trata-se de uma história de amor dos tempos modernos.
Se a intenção de Maitê era conseguir mostrar que nesse terreno ela também transita com maestria, ela conseguiu. A escrita é atraente, fácil e instigante. Por que investir em uma relação em que até a primeira transa não dá certo? “A trepada não foi boa, e ela fingiu. Ele se disse contente por ela ter gozado. (…) Dali pra frente tudo foi uma corrida em direção ao esperma que precisava jorrar pro jogo acabar. Demorou. Demorou muito. Era o remédio retardando o ato. E era falta de tudo o mais a não preencher. A não preencher…”. O difícil nesta ficção recheada de vida real é ter que se despedir dela ao final das 231 páginas. Nosso bate-papo transcrito nesta edição durou 15 minutos cravados no relógio e será transmitido no próximo sábado no “Sala de leitura”, da Rádio CBN Juiz de Fora, frequência 1010.
Tribuna – Como nasceu o livro “Todo vícios”?
Maitê Proença – A ideia veio da peça “À beira do abismo me cresceram asas”, que vai seguir sem mim durante a novela. Talvez eu até volte a fazê-la, pois ela deu muito certo. Nós ficamos dois anos em cartaz viajando pelo Brasil só com o dinheiro da bilheteria. Meu personagem era uma velha de 86 anos que tinha um passado rural. Era muito simples, simplória até. Sua sabedoria vinha da vida. Eu senti necessidade de vir para um contexto mais urbano, mais digital, mais moderno. Foi aí que me ocorreu esta história de amor. Meus dois personagens são narradores, os dois falam, ora um, ora o outro, e, às vezes, falam de um mesmo acontecimento com uma abordagem completamente diferente. Eles sentem coisas diferentes sem que nenhum saiba o que o outro sentiu, porque se comunicam por mensagem de texto. Os dois se encontram raramente. Depois que escrevi o livro, muita gente me procurou dizendo que tem uma história exatamente assim. “A pessoa sumiu, e eu não entendo por quê? Parecia tão encantada e tão envolvida!”. São desentendimentos que já eram difíceis quando a gente se olhava e se tocava, via a expressão do rosto e do corpo e ouvia o tom da voz. Agora, com três palavrinhas escritas rapidamente por SMS ficou mais complicado ainda.
– Você tinha alguma intenção de, através da ficção, fazer uma crítica a esse romance de internet?
– É uma história, uma ficção dos tempos modernos. Antigamente, a gente também se desentendia, mas, hoje, teremos que encontrar um jeito melhor de enriquecer a palavra. A palavra sempre foi insuficiente até na poesia. Nem a poesia atinge aqueles lugares da emoção que só o silêncio e o olhar atingem. Não é nenhuma crítica. Quem vai julgar e se identificar, ou não, é o leitor.
– João não é nenhum príncipe encantado. Você decidiu colocar o ponto de vista dele para que o leitor não tome partido da Stella?
– Mas ela também não é nenhum exemplo de mulher, porque ela se deixa enredar nessa história que, evidentemente, desde o início, não vai levar a um bom lugar. Ela também é neurótica, de forma mais velada, menos visível, mas também é. Ela parece ser vítima, mas não é. Stella se joga naquela história até ficar doente. Ela também não é saudável. Aquilo lá é um negócio feito a dois, como são as relações de amor. “Ah, não foi culpa minha, foi dele”, dizem algumas mulheres. Porém, precisa ter dois para acontecer esse tipo de coisa. Acho que a riqueza de você ter os dois lados e de eles não estarem falando um com o outro faz com que a gente perceba que ambos têm suas razões.
– Você percebe um amadurecimento na sua escrita?
– Não reli meu primeiro romance (“Uma vida inventada”). Comecei a escrever crônicas na revista “Época” semanalmente. Fiquei lá 13 anos. Depois, fiz uma seleção dos textos e lancei um livro. Essa escrita, sim, tenho certeza de que amadureceu. Vou relançar esse livro, aumentado, com um terço de coisas que aconteceram ao longo destes anos, e manterei as crônicas que forem pertinentes, mas vou reescrevê-las. Estou mexendo, mantendo a mesma característica, jogando fora redundâncias. Sinto que eu já tinha uma personalidade na escrita muito nítida e que é semelhante à forma com que escrevo agora. Elas tinham mais humor do que os romances. Minha escrita evoluiu.
– Você acredita que já consegue ser reconhecida como uma escritora e não só como uma atriz que escreve nas horas vagas?
– Tenho escrito muito mais do que atuado. Não é bem nas horas vagas, são nas horas todas. Escrevo também para a dramaturgia, mas é lógico que a televisão tem essa preponderância. Se eu for na esquina e alguém me botar no “Jornal Nacional”, é lógico que isso vai ser muito mais visto do que qualquer coisa que eu possa escrever. Como sou atriz há 35 anos, é natural que as pessoas me associem à atriz que sou. Escrevi três peças de teatro, excursionei com as três e ganhei prêmio como autora com a segunda, mas as pessoas não sabem dessas coisas e nem as pessoas vão ao teatro tanto assim. A atriz permanece, e a autora está aí. Se ela precisar de mais tempo, terá. As pessoas vão descobrindo aos poucos, e é bom que seja, porque posso ir burilando minha escrita. Por exemplo, o “Todo vícios” vai sair com uma nova tiragem, porque a primeira foi toda vendida. Vai sair com um texto do Carpinejar, superelogioso, foi o primeiro a escrever sobre o livro, além de uma resenha do Augusto Nunes e também uma carta do Alberto da Costa e Silva. São três pessoas que fizeram isso espontaneamente. As pessoas que leem costumam gostar do livro. O Lauro Jardim da “Veja” me ligou dizendo: “Maitê, acho que os resenhistas, talvez, não tenham prestado muita atenção no livro ou, talvez, não tenham lido, porque isso aqui é muito bom.”
– É uma história já vivida por você?
– Sempre boto coisa minha, não sei fazer de outra maneira. Acho que todo mundo faz, só que você não sabe nada do escritor. Você até sabe um pouco mais do Jorge Amado, mas não conhece a vida íntima das pessoas. A minha é muito mais devastada. Quando coloco algo no livro, as pessoas supõem que aquilo seja exatamente o que aconteceu comigo e não porque é uma inspiração. Posso me inspirar também na vida das pessoas. Outro dia, uma amiga foi ver minha essa peça (“À beira do abismo me cresceram asas”), e lá tem uma história de uma moça que vai ao ginecologista com a avó e descobre que ela se masturba, e muito. Ela levou uma vovozinha ao consultório e saiu de lá com uma senhora tarada. Coloquei esse caso de uma forma muito cômica no espetáculo. Minha amiga viu a peça e disse que a história era dela. A gente pega todas essas coisas porque elas estão aí na vida. Coloca, usa e depois esquece quem foi referência. Pego o que acontece na minha vida e encaixo na história que ia inventar. Isso é o que ocorre, porque senão eu estaria fazendo jornalismo, que se supõe isento. Eu nem pretendo ser isenta. Quanto mais eu entender daquele assunto, quanto mais ele me tocar profundamente, melhor vou escrever. Falando do meu mundo, posso atingir todos.