Sob olhar coreano série relembra monstruosidade da 2ª guerra 

‘A Criatura de Gyeongseong’ despertou tanta confiança na Netflix que já teve sua segunda temporada confirmada


Por Mariane Morisawa Agência Estado 

17/01/2024 às 07h18

Criatura de Gyeongseong Divulgacao Netflix
A série é uma grande produção que mistura drama histórico, um certo vai-não-vai romântico clássico dos chamados k-dramas e, como o nome indica, monstros (Foto:  Netflix/Divulgação)

Os dramas e as comédias do tipo “Uma Advogada Extraordinária” e “Pousando no Amor” podem ser o feijão com arroz do sucesso sul-coreano na televisão mundial, mas o estouro de séries como “Round 6” e “All of Us Are Dead” já provou que premissas mais ousadas também têm espaço com o público. A Disney+ pagou US$ 45 milhões (cerca de R$ 218 milhões) na série de super-heróis “Em Movimento”, uma das melhores do ano passado e a mais cara da história do país. A Netflix, que anunciou em abril um investimento recorde de US$ 2,5 bilhões (cerca de R$ 12 bilhões) em produções da Coreia do Sul nos próximos quatro anos, estreou mais de 30 produções do país em 2023. A última é “A Criatura de Gyeongseong”, cujos sete primeiros episódios já estão no ar desde 22 de dezembro na Netflix. Os três últimos da primeira temporada estrearam em 5 de janeiro.

A série é uma grande produção que mistura drama histórico, um certo vai-não-vai romântico clássico dos chamados k-dramas e, como o nome indica, monstros. O Estadão esteve no set que reproduz algumas ruas de Gyeongseong, como Seul era conhecida durante a ocupação imperial japonesa na Coreia do Sul, entre 1910 e 1945.

Foi um período de muitas mudanças forçadas, da industrialização construída à base de trabalho em condições no mínimo precárias, do êxodo rural provocado pelos altos impostos e perda das terras para os japoneses, passando pelos massacres de movimentos dissidentes e alistamento compulsório para lutar na Segunda Guerra Mundial pelo Japão. Muitas mulheres foram sequestradas e usadas como escravas sexuais dos militares japoneses baseados no país.

“A Criatura de Gyeongseong”, escrita por Kang Eun-kyung, se passa na primavera (no hemisfério norte) de 1945, ou seja, nos últimos meses da Segunda Guerra Mundial e da colonização japonesa – a rendição do Japão foi anunciada em 15 de agosto, poucos dias depois dos ataques nucleares a Hiroshima e Nagasaki. 

A Segunda Guerra Mundial é uma fonte aparentemente infinita de histórias. A maior parte, sob o ponto de vista dos norte-americanos e europeus. Mesmo que a série não seja sobre o conflito, oferece uma rara oportunidade de enxergar aquele momento sob outra perspectiva. “Nós escolhemos esse período por serem tempos turbulentos. Muitas coisas aconteceram, realmente era uma época difícil”, disse o diretor Chung Dong-yoon, em entrevista no set.

Batendo cabeça

Os protagonistas dessa história são Jang Tae-sang (Park Seo-jun, de Itaewon Class e As Marvels), o jovem e bem-sucedido proprietário de uma casa de penhores, que se fez sozinho na vida, e Yoon Chae-ok (Han So-hee, de My Name), uma misteriosa detetive particular. Cheio de grana, Jang circula em todos os ambientes e sabe tudo o que acontece na cidade, sem nunca se comprometer politicamente – é um verdadeiro isentão. “Eu nasci quando a Coreia já estava ocupada, como querem que eu lute por esse país?”, pergunta Jang em certo momento.

Ele não tem problema em fazer negócio com os japoneses. Mas, certo dia, o chefe de polícia, que é japonês, ameaça tirar tudo de Jang a não ser que ele encontre sua amante, a sul-coreana Myeong-ja, desaparecida. Sem conseguir resultados, ele se alia a Yoon Chae-ok e ao pai dela, que vêm da Manchúria (região do nordeste da Ásia disputada pela China e pela Rússia, também ocupada pelos japoneses na época). Os dois são detetives particulares.

No começo, Jang e Yoon, que está à procura da mãe, também desaparecida, batem cabeças. Os dois são muito diferentes, em termos de visão de mundo, da maneira como encaram o que está acontecendo no país, de classe social e econômica. As diferenças são marcadas nos figurinos de Hong Soo Hee. “Era uma época glamourosa, com um grande influxo de culturas novas e estrangeiras. Há muita influência das roupas ocidentais, mas com uma reinterpretação local”, disse ela.

Jang Tae-sang é um desses meninos modernos, com dinheiro para vestir ternos sofisticados, de cores como branco, marinho, cinza, com ombreiras salientes. Já Yoon Chae-ok nunca teve raízes, usa o marrom avermelhado da Manchúria e peças masculinas, confortáveis e práticas.

Quando os dois começam a investigar as pistas dos desaparecimentos, acabam chegando ao Hospital Ongseong, onde está a criatura do título. “Nós queríamos que a série fosse mais universal, que não fosse só sobre a história da Coreia do Sul, daí o conceito do monstro”, disse Chung Dong-yoon.

A criatura, porém, é uma fantasia inspirada nos reais experimentos científicos feitos pelos japoneses em territórios ocupados – a Unidade 731, na Manchúria, fez experiências com seres humanos inclusive para desenvolvimento de armas químicas e biológicas. “Nossas criaturas são aterrorizantes, cruéis e brutais, mas também ressoam emocionalmente. Não se trata de uma série sobre caçar e matar monstros simplesmente”, afirmou o diretor.

Um dos sets mais impressionantes é justamente o calabouço do hospital, com uma cela gigantesca de nove metros de altura e uma abertura circular no teto. “Queríamos que houvesse um contraste evidente com a cidade efervescente, que aqui maximizássemos o medo e o desespero”, disse o designer de produção Choi Ki Ho.

“Desenhamos este lugar para metaforicamente mostrar o nascimento de seres amaldiçoados.” Já o Distrito de Bonjeong é cheio de vida, mesmo sob a realidade dura da guerra e da ocupação.

O cuidado na reconstituição da época era fundamental para contar bem a história, mas o diretor não acha que há grandes diferenças entre os seres humanos de então e os de agora. “A experiência humana não muda tanto assim. Foi isso o que sempre mantive em mente”. Mesmo durante uma guerra brutal e uma ocupação opressora, as pessoas procuram viver suas vidas ao máximo, permitem-se pequenos luxos, encontram o amor. A Criatura de Gyeongseong despertou tanta confiança na Netflix que já teve sua segunda temporada confirmada.

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