‘Chora pierrô, dança arlequim’
1966. Ano em que Humberto Castelo Branco, primeiro presidente do regime militar, comandava o país. Ano em que o militar e político recebeu da Universidade Federal de Juiz de Fora o título de “Professor Honoris Causa”. Ano do golpe de estado na Argentina, nascimento de Claudia Raia e despedida de Walt Disney. Na cidade, o Tupi recebia, em janeiro, o então campeão mineiro Cruzeiro, com Tostão, Dirceu Lopes, Zé Carlos, Piazza e outros craques, para a partida na qual o Carijó venceu por 3 a 2. Entrava no ar, para todo o Estado do Rio de Janeiro e parte de Minas Gerais, o programa “Filmando Juiz de Fora”, telejornal da TV Tupi. Em seu segundo mandato, o prefeito Ademar de Andrade comandava uma cidade arborizada, de casas térreas e poucos carros. Também produzia, através do Departamento de Turismo, o primeiro e oficial desfile competitivo de escolas de samba.
Trinta e quatro anos depois de o Rio de Janeiro inaugurar a competição carnavalesca, Juiz de Fora via, no domingo do dia 20 de fevereiro de 1966, três agremiações adentrarem a Avenida Rio Branco, na altura da Avenida Getúlio Vargas, seguindo até o Parque Halfeld. Criadas na década de 1930, Turunas do Riachuelo e Feliz Lembrança disputaram o título com a já extinta Castelo de Ouro, da década de 1940. As apostas se dividiram entre a veterana Turunas, primeira escola do estado, que homenageava Belmiro Braga, e a Feliz Lembrança, campeã daquele ano, exaltando os bailes venezianos num inspirado samba-enredo que inseria na festa popular a erudição das palavras e das melodias.
Para abrir os desfiles, entraram o bloco Domésticas de Luxo, em seguida o Inocentes de Santa Luzia e a Juventude Imperial (então bloco). Na segunda-feira, os três retornaram à Rio Branco, acompanhados de um outro, o Não Venhas Assim, e um superconvidado, apontado com entusiasmo pela edição de março da revista “O Lince”. “Outra agradável surpresa foi a soberba apresentação do bloco da vizinha cidade de Três Rio, ‘Bom nas Bôcas’, composto de gente animada e que samba de verdade, oferecendo magnífico espetáculo de música e coreografia”, escreveu o repórter Luiz Antônio Horta Colucci para a matéria de capa da publicação, que dividia espaço com anúncios da Casa dos Temperos (“Agora em suas novas instalações para melhor servir”), da Lavanderia Sul América (“Lava servindo”) e da Americana, com sua “soda, guaraná, coquita e laranja”.
De acordo com a jornalista e pesquisadora Rosiléa Archanjo, autora de “No ar: Carnaval de Juiz de Fora meio século de identidade”, antes dessa inauguração, que completa 50 anos em 2016 – justamente quando não haverá desfiles oficiais -, as escolas funcionavam como grandes blocos, com os integrantes vestidos com roupas e chapéus de malandro. “Não havia uma grande preocupação com organização e samba-enredo. Era muito mais livre”, afirma. Compositor de sambas-canções, boleros, rumbas, mambos, valsas, toadas, batuques e hinos religiosos, Nelson Silva, um ex-contador, ex-tipógrafo e cabo do exército, se juntou ao jornalista José Carlos de Lery Guimarães para romper com tudo que o município fazia.
Samba, valsa e tarantela
“Mascarada veneziana” trouxe com a Feliz Lembrança o primeiro carro alegórico, uma inédita divisão de alas e uma canção que reunia samba, valsa e tarantela, baseada no romance “A ponte dos suspiros”, do francês Michel Zevaco. “A inclusão dos três ritmos na melodia foi muito marcante, e, provavelmente, foi a primeira vez no Brasil que um samba teve essas inserções. Além disso, José Carlos era muito inteligente e agregou muito valor com a letra criativa e bem elaborada”, comenta o pesquisador e músico Márcio Gomes, apontando, ainda, para a existência de um coral “muito bom e que deu muito diferencial”, regido por Silva. No livro “O real Itamar”, o autor Ivanir Yazbeck destaca o inesquecível desfile para o ex-presidente Itamar Franco, que sempre recordava da Veneza de Juiz de Fora. “Lá pelas tantas, o samba se transformava numa valsinha-tarantela, e os arlequins, pierrôs e colombinas se punham a dançar como se estivessem na Piazza San Marco”, narra.
Gravado no Rio de Janeiro por sambistas da época e tocado nas rádios nacionais, o samba se destacou em meio a uma safra de grandes compositores juiz-foranos. Segundo Márcio Gomes, José Carlos integrava o Núcleo Mineiro de Escritores (Nume), responsável por influenciar uma geração. “Havia uma qualidade literária muito grande no que era feito. O próprio Mamão (autor de ‘Tristeza pé no chão’) diz que o núcleo lhe serviu como uma das principais referências”, observa Gomes. “Durante muitos anos, a Feliz Lembrança, a Turunas e a Castelo foram as mais fortes, com sambas que fizeram história”, completa o pesquisador.
Entusiásticos aplausos
Na “Gazeta Comercial”, a Feliz Lembrança, dona do primeiro troféu (com 77 dos 80 pontos possíveis) era tratada como “simpática”, tendo se apresentado de maneira “auspiciosa”. “Na música, na indumentária Pierrot, Arlequim e Colombina, seu estandarte, suas alas e seu côro, seu carro alegórico trazendo uma gôndola com Leonor – Dama de Veneza – e seu amado, arrancando entusiásticos aplausos dos espectadores que superlotavam a avenida, lhe antecipando a vitória”, trazia o folhetim. “Na época, havia mais de sete costureiras trabalhando para a vencedora, fora o pessoal dos carros alegóricos. Eles montaram uma grande equipe de trabalho para fazer o desfile inaugural. Eles se espelharam no carnaval carioca e conseguiram inovar”, analisa Rosiléa Archanjo.
Nas fotos que resistiram ao tempo, uma Rio Branco em festa. Curiosamente, no espaço reservado à comissão julgadora, restava, ainda, uma amostra dos tempos de tensão: enquanto um maestro (Mário Vieira) julgava música, um escritor avaliava letra, um decorador observava alegorias, um tenente-coronel julgava enredo, e um major, formação e coreografia. A ditadura estava presente, mesmo que a escola vencedora cantasse a Veneza, o segundo lugar exaltasse um literato, e o terceiro, falasse da “Era espacial”. No primeiro desfile oficial que Juiz de Fora assistiu, havia pierrôs chorando e arlequins dançando, como na música da campeã: “Na grande praça à luz da lua/ Ô ô ô/ Por colombina, alma da rua/ Chora pierrô, dança arlequim.”