O papo é pop

“Leandro Karnal é casado” é uma das pesquisas relacionadas, no Google, ao professor e historiador com doutorado pela Universidade de São Paulo (USP) e atuação na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). De autoria de Karnal, ao lado do amigo e também professor Clóvis de Barros Filho, o livro “Felicidade ou morte” está há 24 semanas seguidas nas listas de livros de não-ficção mais vendidos do Brasil. Segundo o portal especializado em literatura PublishNews, na última semana de novembro, o título estava na 13ª posição. Já na listagem, publicada no último dia 7 de dezembro pela revista “Veja”, a obra goza do oitavo lugar, à frente de “Filosofia para corajosos”, do filósofo Luiz Felipe Pondé, em nono. O crescimento reflete a atenção dada à filosofia nos últimos anos, fenômeno que tem gerado milhões de visualizações para vídeos do assunto no YouTube e incontáveis citações nas redes sociais, além de curiosas pesquisas que extrapolam o saber e invadem a intimidade.
A filosofia, como o papa, é pop? Para o doutor em filosofia Marcos Carvalho Lopes, “é possível uma filosofia pop que não seja simplesmente populista. Ela pode ser pop, pode ser um biscoito fino para as massas, como diria Oswald de Andrade. Como fazer isso é um desafio, é preciso andar na corda bamba para que não decaia em simplificação”. Professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e responsável pelo site FilosofiaPop, o amplo alcance é, sobretudo, contraditório. “Tentar atingir um público maior é correr o risco de simplificar demasiadamente as coisas. Por outro lado, existe uma possibilidade de, na popularização, termos a filosofia para pensar o mundo. E na medida em que começamos a questionar de forma mais próxima da vida das pessoas, a filosofia faz sentido. Quando se diz, vulgarmente nas redes, que alguém ‘filosofa’ é porque esse alguém diz algo sem sentido. Essa compreensão mostra que a filosofia parece algo desconectado da realidade. A popularização da filosofia talvez seja um fenômeno para aproximar as pessoas dos questionamentos cotidianos.”
Graduado em comunicação social e formado em filosofia pela Nova Acrópole, associação cultural reconhecida como escola, da qual hoje é diretor, Hinaldo Breguez defende a utilidade do discurso acima de tudo. “Porque tem se falado tanto de filosofia? Porque as pessoas têm feito mais perguntas. O ser humano necessita de respostas, precisa dar um sentido para a vida, necessita saber de onde veio e para onde vai. Sem dúvida, o estilo de vida das pessoas, cada vez mais acelerado, alucinante, pede socorro para a filosofia. As pessoas não estão tendo tempo para ser felizes, precisam cumprir agenda. As pessoas parecem mais preocupadas em correr atrás do dinheiro do que ser feliz. A filosofia é um campo que se dedica a isso. Se você tem um problema, por exemplo, vai chamar um técnico, um especialista. A filosofia é o campo do conhecimento que lida com o sentido da vida. E como as pessoas têm se perguntado sobre isso, tem chamado o discurso de alguns filósofos”, comenta.
À moda brasileira
Além de levarem às TVs os discursos de Platão, Sócrates, Marx e outros grandes pensadores, intelectuais como Leandro Karnal, Mário Sérgio Cortella e Clóvis de Barros Filho fazem palestras para públicos entre 500 e três mil pessoas. Números superlativos que encontram eco justamente num momento em que o país retoma a disciplina nas grades curriculares, como ocorre desde 2008. Segundo o professor do curso de filosofia da UFJF Humberto Schubert Coelho, os grandes oradores sempre tiveram papel de destaque na divulgação das ideias. “Sem o engajamento mínimo da sociedade, a filosofia corre risco de ser esquecida ou ignorada pelos órgãos e instâncias responsáveis pela educação e planejamento da sociedade. Por isso é de grande relevo o papel dos popularizadores da filosofia. Ademais, importa observar que os pensadores mais engajados são muitas vezes atacados por seus pares como superficiais, o que não tem fundamento, pois sua forma de abordar só é mais geral do ponto de vista técnico em relação aos especialistas. A filosofia que apresentam em roupagens mais claras e resumidas é propiciadora de transformações da consciência e chamamentos eminentemente filosóficos a seus ouvintes e leitores”, pontua ele, autor do livro “A filosofia perene”.
Ainda que a disciplina viva um momento de aparente graça no país, a realidade estrangeira, conforme aponta Humberto, é ainda mais gloriosa. “Este interesse é hoje maior que no passado, mas ainda estamos longe de tornar pop a filosofia como na Alemanha ou na França. Lembro-me de visitar uma livraria alemã, na cidade de Essen, de médio porte, com nove estantes reservadas à filosofia. Em nossa cidade, apenas uma livraria conta com duas estantes para esta disciplina, enquanto outras grandes lojas têm apenas uma, ou meia. Recentemente, livros mais populares e palestras ou conversas no YouTube contribuíram para o aumento desse interesse, mas muito ainda precisa ser feito para que a importância da filosofia seja corretamente apreciada no Brasil”, ressalta.
Colocando no mercado milhares de filósofos por ano – na UFJF, anualmente são oferecidas 50 vagas para o curso -, as universidades denunciam a qualidade da produção local para além das figuras estelares. “A filosofia brasileira tem hoje muita qualidade e variedade. Uma das coisas mais interessantes nos últimos anos é a ascensão de minorias, que reivindicam um espaço de pertencimento. Questões raciais, ecológicos e de gênero começaram a ressoar na academia”, comenta Marcos Carvalho Lopes, citando a importância do filósofo Newton da Costa e sua lógica paraconsistente e a contemporaneidade do pensamento de Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski com o livro “Há mundo por vir?”.
Atualizar ou não, eis a questão
De que maneira a filosofia antiga responde ao hoje? “A filosofia não se subordina ao tempo, e o seu progresso na história é às vezes muito relativo”, responde Humberto Schubert Coelho, para logo completar: “É possível que Platão ou Aristóteles tenham respostas melhores e mais diretas a problemas que embaraçam a grande maioria dos intelectuais de hoje, sendo insensato não dar voz a essa sabedoria ainda válida. Grande parte da meditação filosófica tem caráter atemporal, sendo limitada apenas pelos vícios de linguagem e eventuais preconceitos de época. Por outro lado, como também é natural, há avanços significativos em alguns temas ou conceitos específicos, que invalidam teorias pretéritas.” Defensor da filosofia clássica, Hinaldo Breguez é contrário às atualizações. “A filosofia, ao longo dos anos, foi ganhando diferentes releituras, que foram afastando-a de seu conceito original. Quando você identifica um problema na vida e busca uma solução, originalmente, tem uma atitude filosófica”, sugere.
“O ser humano, da Grécia Antiga até a atualidade, não sofreu uma modificação substancial em termos biológicos. Talvez a cultura tenha se modificado um pouco, mas as questões sobre o sentido da existência e de organização social são repostas continuamente”, analisa Marcos Carvalho Lopes. “Quando autores como Platão pensavam em como organizar a sociedade, fazendo uma crítica à democracia, dizendo que ela está aberta para que aqueles que têm dinheiro consigam seduzir as multidões, tornam-se cada vez mais próximos da gente. A filosofia sempre foi uma atividade próxima da prática, da busca de uma forma de vida. Nos últimos dois séculos, ela tornou-se uma atividade acadêmica, então as questões antigas retomam a perspectiva da filosofia como uma forma de vida, questionando como devemos viver, nos relacionar, que tipo de sociedade queremos, que responsabilidade temos com o outro. Isso retoma uma tradição e deixa de lado uma perspectiva teórica e distante do cotidiano”, acrescenta.
Popularizar-se, contudo, não diz da perenidade da disciplina. O pop, em alguma medida, também guarda em si o dissabor do descartável. “A demanda é pela frase feita que vai ficar nos memes, que vai ter um impacto rápido. É difícil que algo tenha um poder transformador sem provocar inquietação. A frase feita do Instagram parece que não tem um poder efetivo em aproximar a filosofia das pessoas, talvez gere, até, um grande afastamento”, reflete Marcos Carvalho Lopes.
Em sua coluna no site da revista “Cult”, Márcia Tiburi, expoente da nova geração de filósofos brasileiros com espaço na mídia, é precisa ao pensar a ideia de pertencimento que o pop também carrega consigo: “A intenção da Filosofia Pop é devolver o pensamento às pessoas para que elas possam integrá-lo às suas vidas.”