Cerâmicas à mesa


Por MAURO MORAIS

11/06/2016 às 07h00

Kátia Lopes criou, artesanalmente, 165 pratos (no alto) para mostra (Fotos Marcelo Ribeiro)

Kátia Lopes criou, artesanalmente, 165 pratos (no alto) para mostra (Fotos Marcelo Ribeiro)

Júlia Vitral procura formas imperfeitas em suas peças

Júlia Vitral procura formas imperfeitas em suas peças

Obras em exposição apresentam esmalte que Júlia fabricou no próprio ateliê

Obras em exposição apresentam esmalte que Júlia fabricou no próprio ateliê

Repare numa peça de cerâmica e verá o traço do artista e a potência do imprevisível. Verá o domínio da técnica e a técnica sendo dominada pelo fogo. Chamas que consomem um projeto e entregam o que definem. “O barro tem vida e faz o que quer”, define Kátia Lopes, que divide com Júlia Vitral a galeria Heitor de Alencar, no Centro Cultural Bernardo Mascarenhas, até este domingo, apresentando uma arte dura no processo e frágil no resultado. “É um ofício pesadíssimo. O corpo paga. Quando estou trabalhando, chego a ficar o dia inteiro envolvida. Quando vejo, já se passaram dez horas”, conta Júlia. “Com isso você aprende a ter paciência. A cerâmica me ensinou que nunca vou saber tudo sobre ela. E isso é reconfortante para toda a vida”, completa.

A exigir o toque, a arte que brota da terra passa pela mãos e finda em brasa, é temperamental e carrega em si a personalidade expressa no torno. Dividida em duas seções distintas, a exposição que comemora o dia do ceramista na América Latina, 28 de maio, revela a face que pesquisa e experimenta e a face que executa no fervor e na multiplicação. Enquanto em “Em estado de palavra enxergo as coisas sem feitio” Júlia exibe uma cerâmica ancestral e alquímica, em “Felizes os convidados à mesa” Kátia reúne 165 pratos, revelando a artesania e a singularidade presentes no utilitário.

“É uma questão de temperamento. A Kátia gosta mais do que é ágil, tem na cabeça o que funciona e executa rapidamente. O que importa mais é o resultado como um todo. Já a Júlia é voltada para a investigação e se importa muito com a forma”, defende o curador da mostra, o também artista visual Renato Abud, que a unir os dois estilos apresenta ferramentas de uma prática capaz de conjugar a delicadeza e o colorido do pó que tinge o objeto com a rudeza de uma bruta pinça de ferro que retira a peça do forno. “A própria repetição – dos sinos e dos porcos, em mostras passadas, e dos pratos no presente – tem um termo político no que a Kátia faz. Vejo a Júlia com o fazer, o conhecimento que ela adquire e passa para a peça, mesmo com toda interferência que se dirige para outros caminhos”, completa Abud, à mesa com as duas artistas, numa casa (de Júlia) cercada por cerâmicas que servem como adereço mas também servem almoços e sobremesa. Peças que se encontram na inequívoca assinatura do fortuito.

Cientista do elemento denso

O barro virgem, vindo em toneladas da pequena Cunha, no interior de São Paulo e reconhecida como a capital nacional da cerâmica, ganha as mãos e logo partem para o torno. Júlia Vitral se senta, liga a máquina, molha as mãos e começa a moldar o que se inicia como copo mas transforma-se em pote. Feitas as fotografias, “amassa” a boca da peça, que resulta em forma inominável. O imperfeito lhe desperta. Não é ao acaso que seu trabalho é marcado pela ausência de padrões, por traços desiguais, remendos expostos e deformidades planejadas. A artista se aporta numa ancestralidade que denuncia a origem natural de sua arte.

“Não gosto da receita dada. Vou seguir a proporção. Por isso acabo fazendo completamente diferente”, diz ela, referindo-se ao esmalte que pinta cada peça numa cor, frutos da experimentação quase laboratorial de complexos elementos químicos como o cobalto. O próprio barro que consome, mais refinado do que o normalmente utilizado, é constantemente reciclado, dando origem a uma nova matéria-prima que chega a levar anos até ser concluída em objeto.

Exaustivo, o processo da cerâmica se inicia com o molde, a secagem e a primeira queima, que pode levar dias, numa temperatura variante entre 750ºC e 1.050ºC. “A água física já foi. A água química só vai embora no forno”, explica. O resultado dessa primeira peça intitula-se biscoito e está pronto para receber o esmalte ou outra técnica de acabamento, que retorna ao forno (elétrico, à gás ou artesanal, como poços na terra), podendo chegar a 1.300ºC.

Autora da ceia e dos pratos

Num determinado dia, Kátia Lopes, otorrinolaringologista, recebeu em seu consultório um paciente que lhe apresentou o ceramista e então professor do curso de artes da UFJF Ricardo Dubinskas. Kátia se interessou, mas receou não ter a paciência necessária. Generosa, a cerâmica lhe apresentou um caminho. Sua produção é funcional, porém subjetiva e nem um pouco rasa. Está farta de referências outras, de um discurso próprio da autora e, também, de uma afetividade bastante íntima.

Ágil nas palavras e nos gestos, Kátia atualmente está envolvida com um curso de gastronomia. A médica autodidata no ofício da cerâmica recorre, em sua Santa Ceia de pratos belos, alguns com pequenos pedaços de vidro incrustados, ao que lhe ocorre. “O que faço para comer faço para servir”, brinca, como a ilustrar uma linguagem que se faz pela rápida apreensão, porém, agigantada reflexão a despertar. “Sou uma pessoa muito preguiçosa para minuciosas investigações”, diz. Para não se alongar na prática esgotante do barro, por exemplo, coloca um timer a lhe lembrar a hora da parada. “Sou objetiva e vou aprendendo com a cerâmica. No começo ela empena, entorta, racha, gruda uma na outra. É um desgaste. Tem que aprender a forma do barro, o tempo do barro.”

CERÂMICA

Visitação hoje e amanhã, das 10h às 18h. Até amanhã.

No CCBM (Av. Getúlio Vargas 200)

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