‘Trem de doido’ sob os olhos do mundo


Por MAURO MORAIS

09/10/2016 às 07h00

Manoel lembra o que passou no Hospital Colônia ao ser levado ainda criança para lá pelo próprio pai, que espera encontrar até hoje

Manoel lembra o que passou no Hospital Colônia ao ser levado ainda criança para lá pelo próprio pai, que espera encontrar até hoje

Manoel tem cerca de 60 anos e é um dos meninos de Oliveira. Ainda bem pequeno foi internado no Hospital de Neuropsiquiatria Infantil, localizado no município de Oliveira, no oeste de Minas Gerais, encaminhado na década de 1970, junto de muitas outras crianças ao Hospital Colônia, em Barbacena. O tratamento desumano vivenciou em ambos os lugares. “Certamente foi levado ainda bem pequeno porque, provavelmente, tinha algum tipo de deficiência. Ele é uma figura muito comovente. É uma das pessoas cuja memória afetiva ficou congelada no momento do abandono, por isso ficou infantilizado. É muito vivo na lembrança dele o que viveu na infância dentro do Colônia. Ele conta que apanhava e diz: ‘Não entendia porque eles metiam a vara na gente. Eu não fazia arte nem nada'”, conta Daniela Arbex, que em seu best-seller “Holocausto brasileiro” jogou luzes sobre vítimas, como Manoel, de um sistema psiquiátrico cruel, responsável pela morte de mais de 60 mil pessoas naquele que foi considerado o maior hospício do país.

Manoel não se eternizou em palavras. Quando a repórter especial da Tribuna conheceu o homem, já havia vendido mais de 100 mil exemplares de seu título de estreia na literatura de não ficção. Personagem bastante representativo de um cenário de total abandono, Manoel eterniza-se em áudio e vídeo, no documentário baseado no livro, que estreia nesta quinta, 13, às 18h, em sessão para convidados, no Cine Roxy, localizado em Copacabana. A exibição integra a Première Brasil do Festival do Rio, um dos maiores do gênero no país. “Manoel é um sobrevivente com muitas sequelas. O depoimento dele é tão poderoso que foi o único legendado. Não poderia ficar de fora do filme. Se tivesse encontrado ele antes, certamente estaria no livro”, pontua a jornalista, que assina o roteiro, a produção e a direção do longa-metragem produzido pela local Vagalume Filmes em parceria com a gigante HBO Brasil.

57f92ac4b16bb

“Num determinado momento da entrevista, pergunto a Manoel quem o colocou ali. Ele diz: ‘meu pai'”, revela Daniela, que, imediatamente lhe questionou: Tem saudades dele? “Estou esperando ele até hoje”, surpreende o ex-interno, com mais de cinco décadas sob os “cuidados” do terror e, hoje, acolhido numa residência terapêutica em Barbacena. Logo que diz da falta paterna, Manoel abaixa a cabeça e inicia um cântico, tudo capturado pelas lentes sensíveis da segunda produção nacional do canal por assinatura, que estreia a obra em 20 de novembro, no canal Max e no aplicativo HBO GO. Em seguida, o filme entra na grade latino-americana do canal, sendo exibido em mais de 40 países. Rodado em dois meses do primeiro semestre de 2015, o longa ganha o cinema em mais três sessões no festival – sexta, às 14h, no CCBB; sábado, às 16h, no Cine Joia; e, quarta, 19, às 14h, no Ponto Cine.

Ruínas arquitetônicas, ruína humana

Num sobrevoo sobre o Hospital Colônia, logo no início das filmagens, o co-diretor Armando Mendz identificou um prédio em ruínas e apresentou-o a Daniela Arbex. Era o mesmo lugar onde o repórter fotográfico Luiz Alfredo havia registrado para a revista “O Cruzeiro” as imagens mais chocantes do antigo manicômio, hoje sede do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, contando com mais de 150 pacientes em regime de internação de longa permanência. “Identifiquei na hora aquele pavilhão, onde, em 1961, Luiz Alfredo fez as imagens que mais se aproximam de um campo de concentração. Reconheci pelas janelas. Quando entramos, era um labirinto. E levamos o Luiz Alfredo lá, no mesmo cenário 50 anos depois”, conta Daniela, dando o tom de uma filmagem pronta a se surpreender a todo momento.

“É uma responsabilidade fazer um filme baseado num livro, mas são mídias diferentes. Um livro gera outras imagens, pessoais. Quando transposto para o cinema, subentende uma visão mediada, uma leitura íntima por trás. O filme conta a história do livro, mas, ao mesmo tempo, com adendos, com novos dados”, pontua Armando Mendz. “Estar presente naquele ambiente já traz uma tristeza muito grande. Esse filme gera uma reflexão, mas é triste, porque representa uma página triste de nossa história. Ao lembrarmos as histórias que aconteceram ali, trazemos uma carga grande de sentimentos. Levar isso para o audiovisual requer delicadeza”, acrescenta o diretor de fotografia Mauro Pianta, veterano estreando em uma produção internacional voltada para a TV.

Para Daniela Arbex, o mérito do novo trabalho, sua estreia no audiovisual, está na conquista de novos elos de uma narrativa que nem o próprio tempo foi capaz de resolver. “No livro escrevi o que essas pessoas sentiram. No filme, essas pessoas poderão ser vistas e ouvidas. E não há como ficar indiferente a isso. É muito poderoso. Sempre que me perguntam se vou escrever alguma continuação do ‘Holocausto brasileiro’ digo que não. Não há o que ser acrescentado ou mudado. Mas o filme é uma espécie de continuação do livro, porque tem outros personagens. Os depoimentos são outros e únicos”, defende, citando novos e ricos personagens como Mário Lara. “Ele foi o maquinista que levava os pacientes para o hospital. Ele está com 94 anos hoje e conta que havia um vagão no trem escrito ‘Vagão pra loucos’, e muitos sequer eram loucos.”

De acordo com Armando Mendz, o documentário é mais uma ferramenta a favor da memória. “Li em algum lugar que o fascismo é uma cadela sempre no cio. Foi o Bertolt Brecht quem disse. Toda história que fala de opressão é importante ser lembrada. Basta ver que a cada dia nós relativizamos os erros, como os da ditadura brasileira, da chilena, do holocausto de Hitler, ou da escravidão. A crueldade humana é relativizada, e histórias assim nos ajuda a não repeti-las. É muito importante contar a história dos vencidos, porque ela nunca é a oficial”, argumenta. “Conseguiram preservar a arquitetura daquele lugar e não foram capazes de preservar as pessoas. Isso diz muito sobre aquele hospital. Mantiveram os prédios e destruíram o ser humano. O documentário coloca o espectador lá dentro e, principalmente, na pele desses sobreviventes e dessas testemunhas”, completa Daniela.

Mário Lara foi o maquinista que conduzia o trem com um vagão escrito 'Vagão pra loucos':

Mário Lara foi o maquinista que conduzia o trem com um vagão escrito ‘Vagão pra loucos’: “muitos sequer eram loucos”

Yes, we can!

Publicada inicialmente em 2011, pela Tribuna, a série de reportagens recebeu a menção honrosa do Prêmio IPYS de Melhor Investigação Jornalística da América Latina e Caribe de 2011 e foi vencedora do Esso de 2012. Juiz de Fora, portanto, volta a figurar no cenário nacional e internacional através da pena de Daniela Arbex. Trata-se da primeira produção local a ganhar tamanha visibilidade. Segundo Alessandro Arbex, produtor do filme, não apenas os envolvidos no processo do documentário ganham fôlego, mas toda a cena juiz-forana. “Para a cidade, traz um saldo muito positivo. É importante dizer que estando aqui, no interior, estamos preparados para produzir para grandes canais. Podemos aquecer nosso audiovisual com esse tipo de produção para canal fechado, que é a única demanda cinematográfica que cresce no mercado brasileiro”, discute.

“Tudo começou quando nosso vice-presidente corporativo de programação e aquisições da HBO Latin America, Roberto Rios, que é brasileiro e vive em Miami, veio ao Brasil e comprou o livro. Ele leu e imediatamente ligou para nós, dizendo que era um material espetacular”, conta Maria Angela de Jesus, vice-presidente de produções originais da HBO Latin America. “Essa fragilidade do sistema de saúde na área da psiquiatria, por mais que seja num caso brasileiro, viaja para qualquer lugar. Qualquer país pode ter sido exposto a isso, principalmente na América Latina, onde sabemos que a área da psiquiatria teve falhas. O tema da loucura, do descaso, não tem nacionalidade”, completa ela, indicando a possibilidade de levar o filme para os outros continentes do grupo, o segundo maior dos Estados Unidos.

Para a gerente de produção original da HBO Brasil, Paula Belchior, “acompanhar cada passo do documentário foi muito chocante. É difícil digerir o conteúdo e as imagens, ainda mais por ouvir a partir da perspectiva dos sobreviventes. É uma realidade muito dolorida.” E Juiz de Fora, com sua intimidade com a história, soube narrar com a sensibilidade necessária. “Tradicionalmente procuramos talentos, grandes profissionais, e não necessariamente eles estão ligados às grandes produtoras ou às grandes cidades. Ao ler o livro, ao falar com a Daniela, ficou muito claro que ela tinha total competência para tocar essa produção. Acompanhamos muito de perto. Foi uma relação de confiança que estabelecemos no diálogo”, comenta Maria Angela.

Filmado em formato digital, sob o olhar exigente da HBO Brasil, o longa-metragem se mostra ágil e dinâmico desde o início, sem narrações em off e com cenas que atingem um ápice de emotividade e de surpresa, como a passagem em que o filho, após descobrir a mãe em uma das páginas do livro, retorna ao local e lá, diante das câmeras, descobre o responsável pela terrível internação. “Por ser um documentário, tem um olhar de curiosidade e tensão. O filme oferece uma estética interessante, e, ao mesmo tempo, é uma estética suja, consequência do próprio discurso. É uma narrativa sensível, e a história está acima do estilismo. O que manda é o que é contado”, explica Mauro Pianta. “Os entrevistados se sentiram tão à vontade que confessaram coisas inconfessáveis, como a quantidade de choques que deram por exemplo. Falaram sobre o que viram e o que deixaram de fazer”, finaliza Daniela. “Todos os sobreviventes foram entrevistados em momentos diferentes e disseram das mesmas agressões que sofriam, principalmente quando eram obrigados a fazer a limpeza dos pavilhões. Tudo é dito com uma verdade comovente.”

HOLOCAUSTO BRASILEIRO

Exibição do documentário no Rio de Janeiro

Quinta, 13, 18h, Roxy 3

Sexta, 14, 14h, no CCBB

Sábado, 15, 16h, no Cine Joia

Quarta, 19h, 14h, no Ponto Cine

Os comentários nas postagens e os conteúdos dos colunistas não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir comentários que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.