Lugar de mulher é no bar: conheça a história de Jussara, tia Andréia e Tânia, que comandam botecos de Juiz de Fora
No Dia das Mulheres, Tribuna selecionou histórias daquelas que transformaram os bares da cidade em ambientes também femininos, misturando tradição e inovação
Mesa de plástico, cerveja gelada, porção de petiscos e uma cachaça da boa. Esse é o boteco mineiro tradicional. Mas ele tem um público que ficou de fora durante décadas, por preconceito e falta de oportunidade. Embora os bares tenham sido tradicionalmente ambientes masculinos, as mulheres já ocuparam de vez as mesas, as cozinhas e os balcões, e nos seus próprios termos. De acordo com uma pesquisa da Abrasel, de 2024, a presença de mulheres na gestão de negócios de alimentação fora do lar (incluindo restaurantes e bares) é de 38,22%. O número de mulheres que são donas dos próprios espaços pode ser até menor, mas muitas já comandam seus empreendimentos e dão uma cara muito própria para esses ambientes, equilibrando-se entre a gentileza e a firmeza com um público que não é nada fácil. Em Juiz de Fora, alguns botecos se destacam por terem mulheres de respeito à frente, que conseguem manter esse aspecto raiz e, ao mesmo tempo, abrir as portas para novidades. É o caso de Jussara Silveira, Andreia Silva e Tânia Moreira, que hoje conduzem estabelecimentos da cidade e relatam suas experiências para a Tribuna, em comemoração ao Dia das Mulheres.
Jussara Silveira, do Bar da Jussara

A ideia de criar o Bar da Jussara veio de um momento de dificuldade. A dona do empreendimento já trabalhava há anos em uma empresa privada, até que, durante a pandemia de Covid-19, foi dispensada. “Me vi de mãos atadas, e fiquei pensando o que podia fazer nesse momento do pós-pandemia, em que muitas pessoas estavam passando pela mesma coisa.” Com o dinheiro da rescisão, então, viu que poderia ser a oportunidade de realizar o sonho de ter um comércio próprio, algo que tivesse realmente a sua cara. Ela até ficou na dúvida do que poderia ser, se escolhia mesmo um boteco ou uma agropecuária, por gostar tanto de bicho. Mas a vontade de lidar com gente e de estar atrás de um balcão falou mais alto. “Eu não parei muito para pensar. Medo, eu até tive, mas não deixei me dominar. Foi Deus no comando para dar tudo certo. E eu tento dar o melhor. Eu criei coragem e estou aqui”, conta.

Já faz dois anos que sua vida toda mudou para conseguir dar conta do negócio. Foi preciso aprender tudo pra comandar o bar: desde entender o tipo de porção que serviria, como lidar com o estoque até pegar o ritmo da rotina pesada, em que precisa estar por conta todos os dias da semana – exceto na segunda-feira, quando o bar não abre. “A gente aprende todo dia. Aqui não existe rotina, sempre aparece algo novo, algo para lidar de diferente, algo para comprar, decidir se inclui no cardápio, ver se está tendo saída. É muita coisa”, conta, explicando essa reinvenção toda que fez em sua vida, tendo atualmente 51 anos. Enquanto nos dias de semana o estabelecimento abre às 16h, no final de semana começa mais cedo, já às 10h. “O bar é estressante, é cansativo demais. Tem que ter muito jogo de cintura pra lidar no dia a dia. Mas o próprio público ajuda, faz isso ficar mais leve.” E isso tudo tendo o Bandeirantes como casa.
Ela se mudou para o bairro há cerca de 12 anos, e encontrou lá não só um lugar para viver, mas também onde, mais tarde, iria querer que seu negócio funcionasse. Muitos dos seus clientes são vizinhos, gente que ela encontra na padaria, mas há também quem se desloque até lá para poder beber uma cervejinha e comer as porções com tranquilidade. “O bar abre um leque bem maior para a gente conviver com as pessoas do bairro. Eu mesma fiz muitas amizades aqui, por meio do bar. A maior parte do movimento é de pessoas do bairro, que é quem vem no dia a dia.” Ao mesmo tempo, ela conta que, por ser um bairro grande, entende que ainda está sendo conhecida por mais gente.
A maioria dos clientes, como ela conta, chega procurando a costela no bafo, o torresmão ou a traíra sem espinhos. São os grandes carros chefes da casa, e na maior parte dos dias são feitos por seu marido. Apesar de contar com essa ajuda, não é fácil: “A gente é dona de bar e dona de casa. A vida fora do bar também não para. Sou mãe e também sou filha, então tenho deveres diários, do dia a dia. É desafiador, mas no final assimilamos tudo.” Também é assim que busca levar o dia a dia no bar, mantendo o atendimento como um dos diferenciais. “O que eu mais gosto é essa troca de ideia. É um bar, é um comércio, mas não deixa de ser uma grande família. São pessoas que têm um vínculo afetivo com a gente. A troca e a conversa são gratificantes. Quando elogiam as porções, então, é bom demais.”
Andreia Silva, do Bar do Zezinho

A Morais e Castro é a primeira rua juiz-forana a ter extra-oficialmente uma dona: é a tia Andreia, do Bar do Zezinho. O ponto que era bar do seu pai desde 1989, passou a ser comandado por ela em 2006, depois dele adoecer e precisar de ajuda. Naquela época, ela era casada e já tinha trabalhado quase 20 anos no Sport, só ajudando o pai nas contas, e muita gente achou que não daria conta de comandar o boteco sozinha. “Achavam que eu ia meter os pés pelas mãos. Mas ‘vambora’, né? Passei alguns perrengues, sim, mas meu público gosta de mim. Tem gente que vem aqui que me viu na barriga da minha mãe e tem os novos que chegam sempre”, conta ela, hoje com 55 anos. Desde então, passou a trabalhar praticamente sozinha no local e contratou funcionários. Atualmente, quem a ajuda é o sobrinho (o único que a chama de tia sendo verdadeiramente parente).

Mas ela é dona da rua não só pelo tempo e pela tradição que o bar criou no Alto dos Passos. São muitos fatores que fazem com que o Zezinho tenha passado de um simples boteco pra um verdadeiro point, que inclusive muda de público ao longo do dia. “Eu nunca coloquei a cerveja cara. E eu ia inovando. Tinha um velho que vendia cachaça de banana, depois apareceu um com cachaça de sabor, e eu fui colocando. E fui criando esse vínculo com o povo.” Ela já tinha herdado parte do público do pai, e são eles que chegam ao bar ainda cedo, logo quando ela abre, às 11h. De noite, quem vem são os jovens, em sua maioria universitários. “Logo que os mais novos começaram a frequentar, começaram a me chamar de tia. E aí os mais velhos começaram a me chamar também, até os que têm idade pra ser meu avô. Eu levo como forma de carinho mesmo.”
O carinho, para ela, se tornou algo de via dupla: dá tanto o quanto recebe. “Eu acabo me envolvendo com os meus fregueses. Uma vez, fizeram UFC de cachaça. Eram uns 15 meninos, e eu falava: ‘Se passar mal vai lavar, se ficar caído vai ficar aqui até melhorar’. Eu sempre chamei a atenção e acolhi ao mesmo tempo.” São muitas histórias. Ela já chegou a guardar uma guitarra de um cliente que bebeu demais e esqueceu o instrumento lá durante mais de um ano, já tomou a chave de moto e de carro de clientes que não tinham condição de dirigir. Fora que, como define, o balcão durante muitos dias vira um verdadeiro divã. Por essa relação próxima, que seu pai já gostava de ter, ela também foi dando liberdade para que os clientes começassem a se reunir para ensaiar e para tocar música informalmente por lá. E vários projetos também passaram a ter casa lá: é o caso do choro das quartas-feiras e do samba das quintas, do mesmo grupo que comanda também o Bloco do Zezinho.
A coisa foi crescendo tanto que, por iniciativa dos clientes músicos, o bar também virou bloco. E a tia gosta, assim como também seu pai gostava da música. E retribui com cerveja e o que mais precisarem. Mas não adianta, o que não a agrada é quando enche demais. É praticamente sinônimo de problema para ela. É um cálculo altamente matemático para entender quanta gente precisa ter pra gerar lucro, enquanto também não incomoda o entorno. “Se você vai com muita sede ao pote, te tiram o pote. As pessoas me criticavam por fechar meia-noite, falavam que eu ia vender muito mais se ficasse até tarde. Até podia vender mais uns dias, mas depois ia me arrumar problema.” Durante todos esses anos, ela viu diversos empreendimentos fechando no bairro justamente por esses motivos.
Esse cuidado, para ela, também fidelizou o público. “Ninguém é meu concorrente aqui. Meus clientes podem até ir em outro bar comprar um drink, porque eu não faço, mas pegam e querem beber aqui. Geralmente, são os outros bares que aproveitam o meu movimento.” Quando fecha, ela até entende os pedidos para que se demore mais, porque sabe que aqueles que estão curtindo não querem que a noite acabe. Mas ela segue vigiando tudo da sua casa. Foram várias noites em que, como conta, inclusive desceu horas depois do bar ter fechado para limpar a rua. “Às vezes 2h da manhã, só eu e os noias na rua. Tem escola aqui na frente, não pode deixar sujo. Ainda mais porque, quando fica, acham que é minha culpa.” A vassoura, muitos dias, também serve para espantar o agito indesejado. Fechando sempre entre 23h30 e meia noite, ela ri e conta que levanta poeira para as pessoas já irem dispersando e saindo de lá.
O que dá essência ao Zezinho, para ela, é isso. “Eu não tenho porção. Tenho estufa, minha mãe frita os salgados. (…) ‘Ah, eu quero um drink diferente’. Respondo: ‘Vai do lado’. Não tenho ambição de crescer muito aqui.” Mas o que faz é para criar um lugar que seja democrático. “Tem um público homossexual muito grande aqui. Eu respeito muito eles e não aceito discriminação no bar. Meu banheiro não tem placa. Pra mim todo mundo é igual.” Também por isso, explica que não tem vontade de aumentar o preço. “Já falaram que eu podia vender mais caro e tudo, mas tá tranquilo para mim. Eu não sou de explorar. Meu público é de universitário. E aí vendo em quantidade. Às vezes até fiado. Tem uns que são safados, mas muitos não. Até que me provem o contrário, prefiro confiar no ser humano.”
Tânia Moreira, do Bar do Abilio

Para Tânia Ribeiro, bar não só é lugar de mulher, como também é um negócio familiar, onde cresceu e aprendeu com o pai, o Abilio. Filha de peixe, peixinho é. Há cerca de 15 anos, ele a chamou para trabalhar junto com ele no boteco que já existia desde 1969 no mesmo ponto, no Centro da cidade, sendo reconhecido como um dos mais tradicionais de Juiz de Fora. “Ele me chamou para ficar no caixa, mas quando eu cheguei aqui, fiz de tudo. Quando vejo a cerveja fora da camisinha, não vou levar outra? Não vou lavar a pia cheia de copo? Vou, sim. Não vim para ser dona, mas para chegar e trabalhar junto.” Essa vontade de trabalhar e o sorriso no rosto enquanto faz tudo é algo que, como diz, tem orgulho de ter herdado do pai.

Quando chegou para ajudar o pai, que atualmente já está com 79 anos e continua diariamente no bar, ela, que tem 46 de idade, foi implantando algumas novidades: dentre elas, foi a participação fixa do bar no Comida di Buteco. Quando o concurso começou, o Bar do Abilio já de cara venceu duas edições. Eles têm o fígado com jiló mais famoso da cidade, e uma cachaça com mel feita artesanalmente e que atrai um público certeiro. “Se não fosse por mim, acho que ele não participaria do Comida de Buteco. Mas eu boto força, falo que a gente tem que participar, inventar os pratos novos, e aí ele se empolga. Se falam para ele fazer só um trio mineiro, não topa, tem que ser algo diferente mesmo.” A mais recente novidade é o uso das redes sociais, em que ela também mostra o dia a dia do bar com o pai, e que atrai novos clientes.
Abilio mesmo entende que chamar a filha para vir junto foi essencial para os negócios. “Trabalhar com a minha filha é tudo de bom. A idade está me pegando, e eu quero deixar alguém para dar sequência. Ela é meu braço forte, meu braço direito.” Ele ainda brinca que, do caixa, só sabe guardar o dinheiro – todo o resto é com ela. “A gente aprende um com o outro. Ela é jovem, sabe mexer com internet, celular, paga as coisas com aplicativo. E eu vivi isso aqui desde que começou.” Os dois afirmam que são muito felizes lá. E Tânia vê o carinho que sempre foi direcionado ao pai também se expandindo. “Sempre conhecemos pessoas novas, vemos esse carinho que as pessoas têm por meu pai. E vejo que está surgindo o mesmo sentimento por mim também. Às vezes pedem para tirar foto com a gente, ficam observando nosso trabalho. É de emocionar.”
Com sua chegada no bar, ela também percebeu uma mudança importante: mais mulheres vindo com ela. “É muita mulher que conversa comigo e fala: eu sempre passei aqui na porta, um cheirinho tão bom, mas ficava com vergonha de entrar, era muito homem. E eu falo que realmente era. Mas agora é muito diversificado. Ter mulher atrás do balcão faz diferença nisso.” Tem dias em que, como observa, dentre as nove mesas do bar, só tem uns dois homens. “Lugar de mulher é no bar e onde ela quiser. A gente ocupa esses lugares mesmo, e muito bem”, destaca, entendendo que seu pai também sempre construiu um histórico de respeito e um ambiente agradável para todos. O que quer, acima de tudo, é continuar essa tradição do Abilio, que alegra a cidade com o bom humor e a alegria de trabalhar.
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