O teatro pela palavra


Por RENATA DELAGE

04/07/2012 às 07h00

Quando eu morrer, Glorinha há de estar, na janela, assistindo, de camarote, o meu enterro, gozando. Ela sabe que estamos na última lona e, portanto, que meu enterro deve ser de quinta classe. Olha! Eu quero sair daqui! Nada de capelinha! Se Glorinha soubesse! Se pudesse imaginar que eu, na surdina, estou tomando as minhas providências, diz Zulmira ao marido Tuninho, na peça A falecida, de Nelson Rodrigues. Retratação do subúrbio carioca no fim da década de 1940, com suas gírias, discussões existenciais e cotidiano vulgar, o texto deu base às pesquisas teatrais que culminaram na leitura dramática, parte do projeto Sesc dramaturgia: Leituras em cena, apresentada, na segunda, no Museu Ferroviário.

O projeto, que também está sendo desenvolvido nas cidades mineiras de Araxá e Sete Lagoas, promove oficinas e leituras públicas com foco nas pesquisas dramatúrgicas, além de incentivar o intercâmbio entre artistas de teatro, estudantes, pesquisadores e público interessado.

Lívia Gomes, Marcos Bavuso, Tairone Vale, Fabrício Sereno, Carú Rezende, Hussan Fadel e Márcia Rocha subiram ao palco para ler a história de uma mulher da Zona Norte do Rio de Janeiro, que, em sua busca desesperada por sair da pobreza e esbanjar status aos vizinhos – sobretudo à prima, Glorinha -, torna-se obcecada pela morte. Seus desejos a levam a programar seu próprio enterro, bonito, lindo… de penacho…, com caixão com alças de bronze. É uma comédia muito irônica, com um humor bastante ácido, que gira em torno da classe baixa carioca e aborda tabus e temas típicos de Nelson, como o adultério, explica Fabrício, que também é diretor da leitura.

Na primeira fase do projeto, os atores participaram de uma oficina com o ator e diretor Marcus Rodrigues, do Recife, responsável por encarregar um dos participantes à preparação do elenco e à direção da leitura. Apesar de morarmos em regiões distantes, foi interessante perceber que, no fundo, nosso discurso quanto às demandas da arte é bastante parecido, ressalta Fabrício.

O intercâmbio com o especialista, que se estendeu por três dias, foi preenchido por discussões que visavam desbravar os territórios da escrita cênica. Foi debatido principalmente o teatro a partir da palavra, o poder da palavra no texto, explica. As dinâmicas também estiveram focadas no respeito às características do autor e da obra. A relevância do autor influencia diretamente o trabalho. Discutimos como ressaltar sua história artística, ser fiel ao estilo, e, ao mesmo tempo, propor novas linguagens.

Novidade tradicional

A leitura dramatizada se diferencia do teatro lido em alguns aspectos, segundo Fabrício. Ela necessita de um trabalho de ator, já que possui uma carga dramática maior, sobretudo neste texto, que tem personagens muito irônicos, de um humor bastante pesado, avalia. Indo além de uma leitura branca da peça, os atores usam figurino – todos se vestem de preto, em trajes perfeitamente adequados a um velório -, fazem intervenções sonoras, conforme indicado nos parênteses – também lidos -, além de se posicionarem em marcações sugestivas às cenas. É uma estética diferente do que estamos acostumados a ver na cidade, conta o diretor, ressaltando a importância do incentivo ao estudo voltado às vertentes mais tradicionais do teatro.

Além do Museu Ferroviário, a Escola Estadual Padre Frederico, a Biblioteca Municipal Murilo Mendes e o Sesc receberão a leitura de A falecida, sempre aberta ao público. O objetivo do projeto é variar os locais de apresentação, para atingir diferentes públicos. Modificar a plateia é também modificar a própria leitura, finaliza o diretor.

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