‘Sigo os caminhos possíveis’: conheça Cristovão Bastos
O músico carioca, com parceria com os principais nomes da música popular brasileira, fala sobre sua carreira, os encontros e as semelhanças
Um jogador de futebol, geralmente, aposenta-se com 40 anos. É uma média e, por isso, há suas exceções: gente que não chega a isso e, ainda, que ultrapassa. Muitas vezes, porque o próprio corpo não aguenta. A pausa é necessária: ouvir-se. “Já a música tem uma vantagem: eu posso tocar com um garoto de 16 anos com a mesma desenvoltura, sem nenhum problema. Eu só não posso jogar bola com um garoto de 16 anos”, brinca Cristovão Bastos, pianista, arranjador e compositor carioca. Em uma mesa com outros músicos, os juiz-foranos Estêvão Teixeira (o motivo de o carioca estar na cidade, em 25 de agosto, véspera de uma apresentação dos dois, no Vinho e Ponto) e Luiz Cláudio Ribeiro, o Cacáudio, Cristovão fala de um tudo: do boxe ao futebol. Mas sempre por causa da música. A grande questão, que é o que explica inclusive a carreira de Cristovão, é sua atenção. Ele diz que não assiste tanto às competições de boxe, por exemplo, mas teve atenção o suficiente para entender, ouvir e sentir as técnicas dos lutadores e explicar o motivo de algumas vitórias.
Atento, Cristovão desde cedo ouvia a música como um todo. Não só seu instrumento preferido que, primeiro, foi o acordeom. Nascido em Marechal Hermes, no Rio de Janeiro, com sete anos, ele viu o instrumento pela primeira vez em algum lugar de seu bairro. Pediu ao seu pai. Disse que queria aprender e tocar. Já nessa idade, passou a estudar e formou-se com 13. “E isso não é nada demais. Porque o tempo do curso são seis anos. E eu fiz nesse tempo. Eu era aplicado.” Já com 13, foi tocar em um conjunto. “E foi um choque cultural, porque eu encontrei pessoas que tocavam lindamente sem, às vezes, saber ler partitura ou o nome de um acorde. Eu fiquei interessado no violão, porque esse encontro me deu um fascínio. Você toca tudo em seis sons. É fantástico, meu instrumento de cabeceira”.
Ao mesmo tempo que apareceu uma nova paixão musical, Cristovão tornava-se arranjador. E repete: “Isso não é uma coisa genial também. É coisa de atenção”. Ele tinha atenção em tudo e passou a organizar o que ouvia, o conjunto. “Eu tenho essa atenção o tempo todo.” Já sobre o piano, seu instrumento-companheiro, ele considera a história mágica. “Eu tocava em um conjunto e eu sabia as notas, claro, tinha teoria. Mas tudo é mágico, porque eu tocava em uma boate, com 17 anos, que só permitia a entrada de 21 anos. Eu nem sabia do que se tratava aquele lugar. Mas o dono, em um dia, falou que o pianista ia embora e perguntou se eu sabia tocar piano. E eu, no auge dos meus 17 anos, falei que sabia. Eu comecei ali. E piano e acordeom são coisas bem diferentes. Eu fui testando. Eu até toquei o acordeom outras vezes, mas o piano tornou-se o meu grande companheiro. E é mais mágico ainda porque eu nunca planejei ser músico. Ainda assim, a única vez que eu trabalhei sem música foi em uma gráfica, que era uma gráfica musical. A gente trabalhava com chapas que eram partituras. A única vez que eu não trabalhei com música, eu trabalhei com música. Aconteceu e continua acontecendo.”

Do samba ao baião
Foi por causa dessa atenção, que ele passou a ser parceiro, arranjar e tocar junto com nomes que decolavam na música brasileira. Primeiro, Paulinho da Viola. “Quando a gente tocou pela primeira vez, teve uma coisa de a gente achar que já tinha tocado junto. E é por causa disso, da atenção. Isso eu não aprendi no colégio. Na música, você tem que se escutar.” Depois desse primeiro contato, as portas foram se abrindo de formas mágicas. Em 1976, Cristovão se torna um dos fundadores da Banda Black Rio, que ele considera um dos grandes acontecimentos da música do Brasil. O primeiro disco, com a primeira formação, “Maria fumaça”, mostra, para ele, o que foi esse encontro. “Eu acho que é, hoje, muito difícil fazer uma banda como aquela. O problema não é a qualidade dos músicos. A gente fez um trabalho inteiro e não escreveu uma nota. A gente passou dias e dias, às vezes, para resolver uma música. Isso fez um som que hoje em dia não tem como. A gente era suburbano e tinha dificuldade, mesmo assim fez aquele som. A gente amava muito o que fazia. Para ensaiar dias e dias, são arranjos sofisticados e não tem uma nota escrita”. Apesar do nome, o grupo abrangia uma série de outros ritmos, do baião ao funk, e, para ele, é uma honra dizer que fez parte desse acontecimento.
Dedicação contínua e ininterrupta
Ao longo do tempo, outros nomes foram compondo a lista de parcerias com Cristovão, como Chico Buarque, com as canções “Todo o sentimento” e “Tua cantiga”, Adir Blanc, com “Resposta ao tempo”, entre tantas outras, além de ter dirigido mais um tanto de shows de nomes como Gal Costa, Elza Soares, Emílio Santiago, Fafá de Belém. “É até difícil falar os nomes”, brinca. Ainda assim, ele segue estudando, exatamente porque entende que o exercício é contínuo. “Música é uma coisa que tem que ser feita com muita excelência. E é bom você se aprontar para quando for o momento da coisa sofisticada. Esse momento chega, se você estiver preparado”. Então, considera que estava preparado? “Não estava preparado. Eu ainda estou me preparando”.
Claro que música é exercício, mas é, também, inspiração. “Inspiração é uma coisa fundamental na música. Mas depende de onde você quer chegar. Música é uma arte que é como se não tivesse fim. Todo dia tem surpresas. Outro dia eu estava vendo um garoto africano tocando uns negócios e fiquei impressionado. Parece um negócio que não tem fim, né? Eu sei de ideais que eu ainda tenho na minha cabeça. Mas tem que estudar para caramba para fazer o negócio. Eu ainda hoje estudo”.
Mas talvez haja um segredo, sim, e é relaxar. “Quando você está tenso, a mão fica tensa, a cabeça fica também. Aí não dá”. Mas como separa os problemas da vida e da música, na hora de tocar? “Rapaz, os problemas não são da vida, são da cabeça. A vida é um negócio para você celebrar. Pô, estou vivo. Inclusive só tem problema quem está vivo”. E, até para isso, tem técnica: “Tem gente que estuda para ficar 100%. Os grandes professores falam para você ficar 130%. Porque se pintar alguma coisa, essa gordura vai te salvar. Você tem que passar do ponto. Isso é apuro técnico. Quando relaxa dá certo”, afirma.
Caminhos cruzados
Papo vai, papo vem. Uma série de outras comparações rondam a mesa. Vinho e música, sotaque mineiro, o que é ser suburbano. Mas sempre tem coincidências, ou, pelo menos, coisas que se parecem muito e se complementam. Por exemplo: ele não guarda os arranjos que faz. “Eu não sinto necessidade de guardar os arranjos. Toda vez que eu começo um arranjo não sei o que vou fazer. Eu só sei que eu começo. Eu não tenho uma técnica. Então, todo arranjo é uma coisa nova”. Ele é mesmo carioca, mas é quase mineiro. “Eu nasci no Rio, mas é quase como se eu tivesse nascido em Minas Gerais. Porque lá em casa tinha a família toda: os avós, os pais, os filhos. E uma horta, criação de porco, pato e galinha. A família pobre, mas uma alimentação impressionantemente boa. Minha avó, mãe da minha mãe, é de Bicas. Meu pai, Diamantina.” A natureza é o mesmo plano de fundo. “Eu tenho uma saudade imensa, pois tinha uma paineira, em frente à casa. E tinha uma borboleta que colocava o casulo lá. Via a borboleta saindo do casulo e ficava fascinado. Via saindo a asa toda amarrotada. E, depois que sai, abre tudo”. Mas só uma coisa é verdade: “Eu sigo os caminhos possíveis”.