Idosos e saúde mental na aposentadoria: entre vínculos, economia e novas identidades
Grupo de Trabalho sobre Preparação e Educação para a Aposentadoria da UFJF oferece programa que prepara servidores; assistente social da equipe observa a necessidade de ampliação desses serviços e ressalta impacto positivo na saúde de idosos.

Aos 73 anos, Paulo Sérgio Gomes aguarda com expectativa a aposentadoria, prevista para o ano que vem. “Quero conhecer estados que ainda não fui. Entre eles Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e alguns da Região Norte”, ele conta, ao compartilhar que terá mais tempo para se dedicar também ao colecionismo de cartões de telefone e de alguns tipos de selos postais, que são seus hobbies. Servidor na Coordenação de Vigilância da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), ele soma 54 anos de contribuição ao INSS, entre trabalhos no setor privado e no serviço público. Mesmo assim, só irá se aposentar em 2026: a lei exige tempo mínimo dentro do funcionalismo para garantir o benefício integral.
É durante o período de transição para a aposentadoria que muitas pessoas idosas enfrentam novos desafios que impactam diretamente sua vida econômica, social e emocional, influenciando o sentimento de pertencimento e a maneira como percebem seu lugar na sociedade. Se, por um lado, a aposentadoria pode representar descanso após décadas de trabalho, por outro, traz incertezas relacionadas à renda, à ruptura da rotina laboral e à necessidade de ressignificar papéis sociais e vínculos cotidianos. É justamente a partir dessas múltiplas dimensões que circundam a saúde mental no envelhecimento que a última reportagem da série especial da Tribuna de Minas dedicada ao Setembro Amarelo se debruça.
Transição para aposentadoria impacta aspectos econômicos da vida dos idosos
“Acho que já contribuí com o país mais do que deveria”, comenta Paulo, que, desde o ano passado, vem se organizando para a aposentadoria com o apoio do Programa de Preparação e Educação para a Aposentadoria (PPEA), um espaço de orientação em temas como previdência, finanças, saúde, lazer e projetos de vida. Desenvolvido pelo Grupo de trabalho sobre Preparação e Educação para a Aposentadoria da UFJF, o Programa que acontece na Casa Helenira Preta, no Centro de Juiz de Fora, apoia servidores da instituição como Paulo no planejamento dessa transição.
Nesse processo de preparação, Paulo vê a aposentadoria como mais do que uma etapa burocrática: é a possibilidade de reinventar seu tempo. Para ele, agora com os cabelos brancos e a vontade de viver intacta, trata-se da chance de dedicar-se a si mesmo – “sem preocupações com horários”, brinca. Ainda assim, admite que o peso maior dessa transição está nas contas: a dúvida sobre a renda e a qualidade de vida depois do trabalho nunca saiu de sua cabeça.
Essa inquietação não é só dele. Como explica Anna Cláudia Rodrigues Alves, integrante do Grupo de Trabalho da UFJF e coordenadora do projeto de extensão (PPEA), cada trajetória carrega suas próprias hesitações. “Alguns já gostariam de se aposentar, mas não tomam essa decisão por questões financeiras. Dizem claramente: ‘Eu não posso, porque dependo dos adicionais e benefícios que vou perder’. A questão financeira pesa muito”, observa a assistente social.
No grupo atendido pelo programa, há quem consiga se planejar com mais estabilidade, caso de Paulo que é servidor público. Mas, mesmo entre eles, a insegurança persiste. No Brasil, lembra Anna, muitos idosos acabam voltando ao mercado de trabalho para complementar a renda que o benefício, sozinho, não cobre. Nesse sentido, saúde mental na velhice está inegavelmente ligada a condições socioeconômicas, mas não só, como continua explicando Anna. “Muitos adiam a aposentadoria por não se sentirem prontos, reflexo do lugar que o trabalho ocupa na nossa sociedade”, explica a coordenadora do PPEA. Paulo, no entanto, parece não carregar esse dilema. “Cada um projeta a aposentadoria do jeito que lhe convém. Para mim, é uma mudança de ciclo, e assim deve ser encarada. O trabalho, em algum momento, precisa ficar em segundo plano para dar espaço à construção de uma nova identidade”, afirma o idoso.
Aposentadoria vai além de concluir o vínculo com emprego
Para entender as especificidades das demandas de cada idoso que participa do programa, uma das primeiras etapas é a entrevista em que são ouvidas as realidades, as expectativas e a relação com o trabalho – essa que muitas vezes é composta por um sentimento misto. “Embora a maioria traga aspectos de realização, identificação e satisfação com a atividade, eles também trazem um histórico de sofrimento e adoecimento. Nenhum deles, no geral, passou sem algum desconforto ou sem alguma questão do ambiente de trabalho que gerasse impacto na saúde”, esclarece Anna.
A fala dela, que também é vice-coordenadora do Polo sobre o Processo de Envelhecimento vinculado à universidade, vai ao encontro da perspectiva da psicanalista e professora de psicologia da Estácio, Valéria Wanda, sobre o adoecimento mental na velhice. Para ela, quando o idoso enfrenta problemas de saúde mental, salvo exceções, trata-se da qualidade de vida que ele teve enquanto criança, adolescente e adulto. Ou seja, longe do estigma que associa envelhecer a adoecer, qualquer pessoa, independentemente da idade, pode vivenciar o desgaste psíquico.
“Se ele vive a vida com alegria, encontra prazer nas suas atividades, cuidando de si, do seu dinheiro e da sua existência, certamente terá um envelhecimento saudável. Mas, se não experimenta isso, se tornará mais dependente e sofrido, reforçando o estigma de que envelhecer traz doenças mentais”, observa a professora. Ela acrescenta que, em nossa cultura, o envelhecimento por vezes é visto quase como uma “debilidade” ou, ainda, como um retorno à época em que foram crianças – como um movimento de retrocesso. “São raras as famílias que tratam seu idoso como alguém que tem um longo percurso de vida”, destacando a importância do reconhecimento da trajetória daquela pessoa. Valéria aponta que, entre os idosos, o adoecimento mental guarda raízes profundas no tecido das relações sociais. Há o peso de sentir-se sem lugar na família, de não ter mais a mesma consideração por quem já viveu muitas histórias. Soma-se a isso a perda gradual da capacidade produtiva e, com ela, do status social – processo que, muitas vezes, conduz ao isolamento e a uma sensação de vazio. “Então, o sujeito começa a viver em situações de luto, de perda, de pensar na morte”, observa a psicanalista.
Entre juventude e experiência
Um dos fatores que podem interferir na saúde mental é a sensação de substituição por pessoas mais jovens. Um processo que, embora deva ser naturalizado durante a aposentadoria, também perpassa no modo como o trabalhador é tratado durante essa transição. “O problema é quando somos tratados apenas como peças de uma engrenagem de produção. Isso adoece, porque desumaniza. A gente não é peça. Por isso reforçamos que é preciso recuperar o componente humanizador do trabalho”, esclarece a coordenadora do PPEA.
Há um paradoxo no mundo do trabalho hoje: de um lado, a valorização do novo; de outro, o peso da experiência. A maturidade, acumulada em anos, carrega consigo saberes e uma memória viva que muitos consideram insubstituíveis. Ainda assim, esse valor encontra resistência diante da lógica da renovação. “Tenho orgulho de estar nesta instituição há 20, 30 anos”, diz quem construiu sua trajetória com dedicação e permanência. Entre essas gerações, a identidade com o trabalho se confunde com identidade pessoal. Entre os mais jovens, porém, esse vínculo se desfaz com mais facilidade. A rotatividade cresce, e a relação com o emprego muda. Para essa nova geração, marcada por testemunhar pais e avós adoecerem sob o peso da rotina, o trabalho não é mais uma promessa quase sagrada, é o que explica Anna.
A importância de os idosos se manterem ativo

É a partir dessa compreensão multidimensional que a aposentadoria é trabalhada nos grupos do programa que Anna desenvolve junto ao Grupo de Trabalho da UFJF. “O objetivo é enfrentar estigmas e desconstruir concepções sobre a velhice e a ruptura com o trabalho. Tentamos mostrar que a ruptura é com o vínculo formal, mas não necessariamente com o trabalho em si: a atividade pode seguir de outras formas, mantendo a pessoa ativa”, retoma Anna.
Após a aposentadoria, manter-se ativo é fundamental para a saúde física e mental dos idosos. A coordenadora do PPEA avalia ainda que é necessário o fortalecimento de políticas públicas voltadas para esse público. “O idoso não se resume a fragilidades, ele também protagoniza”. A especialista alerta para a necessidade de ampliação de iniciativas para esse público, inclusive, educação para aposentadoria – diretriz prevista no Estatuto do Idoso, mas que deve atravessar toda a vida laboral do trabalhador, conforme defende.
“A gente avançou no estudo do envelhecimento, e essa população também foi se modificando, se ampliando, houve a importância de pensar para além”, diz Anna. Para ela, é comum falarmos de formação para o trabalho, mas não do desligamento. “Essa reflexão ajuda a pensar que lugar o trabalho ocupa na vida. Somos trabalhadores, mas também pais, mães, filhos, avós, torcedores de time, músicos e outros papeis. Valorizar essas outras identidades potencializa novos projetos de vida”, conclui a assistente social.
Atividades para idosos em curso na cidade
Em Juiz de Fora, 287 idosos participam das ações do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, enquanto outros 2.307 frequentam o Centro de Convivência da Pessoa Idosa. Somados, 2.594 idosos integram atividades gratuitas promovidas pela Prefeitura. No Centro Universitário Estácio, o Projeto de Extensão Nacional “Mulheres Empoderadas e Empreendedoras” também contempla mulheres com mais de 60 anos, abrangendo diferentes faixas etárias. A iniciativa oferece atividades voltadas a fortalecer a autoestima, incentivar a autonomia e ampliar as oportunidades de convivência e participação social. Valéria, professora de psicologia da instituição, comenta sobre o impacto do projeto.
“No nosso projeto, a maioria são pessoas mais velhas, pessoas que já se aposentaram e que agora podem trabalhar naquilo que elas gostam, no que elas sabem fazer de melhor. Então, é importante frisar isso. Trabalhar não é sacrifício. Depende de quem a gente fala, com quem a gente está falando. Hoje já existe um grupo de pessoas mais velhas que continua a achar que trabalhar é uma coisa muito legal e que podem agora, aposentados, procurar coisas que são interessantes. Não é mais só ficar à toa na vida, passear também, mas poder também desenvolver tarefas que sejam produtivas para eles”, finaliza Valéria.
Já pelo Polo de Envelhecimento vinculado a UFJF, são atendidos, em média, 250 idosos. Dentre as atividades oferecidas no local está o núcleo de Alimentação e Nutrição no Envelhecer, que ensina como desenvolver uma alimentação saudável com produtos acessíveis a diversas realidades; há também o Idosos em Movimento – Mantendo a Autonomia, com aulas de atividade física duas vezes por semana.
Outro grupo é dos Idosos on-line, voltado à inclusão digital; o Laboratório de Enriquecimento Cultural, que realiza palestras; o programa que oferece cursos de línguas estrangeiras; o Projeto Intervenção em Habilidades Sociais, conduzido pela Psicologia; e também um grupo voltado para cuidadores e familiares de pacientes com Alzheimer – que busca acolher e informar pessoas que testemunham de perto os efeitos da doença. Outra vertente dessa iniciativa é voltada a idosos que, somente após a aposentadoria, tiveram a oportunidade de dedicar-se a atividades antes inacessíveis, como aprender a ler. O projeto de alfabetização, realizado no local, conta atualmente com quatro alunos – três deles analfabetos em processo de aprendizado.
Tópicos: aposentadoria / envelhecimento / idosos / saúde mental