Mais de 300 cidades brasileiras subsidiam transporte público
Especialistas e associações explicam panorama nacional e internacional dos subsídios, dos pontos de vista da mobilidade e da gestão pública
Assim como Juiz de Fora, outras 18 cidades brasileiras que possuem de 500 mil a 1 milhão de habitantes subsidiam o transporte público por ônibus. Considerando cidades de todos os portes demográficos, são 225 as que possuem subsídios definitivos que pertencem a 79 sistemas – incluindo 20 capitais e regiões metropolitanas. Além disso, 123 cidades praticam a tarifa zero. Os dados foram repassados à Tribuna pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), atualizados neste mês de janeiro de 2024.
Para José Ricardo Daibert, especialista em mobilidade urbana, o comportamento apenas iniciado funciona até mesmo como uma forma de redistribuição de renda. “Quando a gente fala ‘transporte público’, o público é um nome só de fachada, porque ele é bancado integralmente – no modelo mais predominante no Brasil – pela classe usuária, que é, reconhecidamente, de menor poder aquisitivo.” Ele lembra que essa classe acaba pagando mais do que o próprio custo de transporte, já que, além disso, também precisa arcar com 20% de gratuidade concedida para diversas categorias, como idosos e pessoas com deficiência, por exemplo.
São esses pagantes que permitem saber qual é o custo total do transporte e quanto será subsidiado, como explica o diretor-executivo da NTU, Francisco Christovam: “Para saber quanto deve ser – não quanto será – a tarifa, eu divido esse custo total por um denominador que nós chamamos de ‘passageiro equivalente’, aquele que efetivamente está pagando a viagem, mais os gratuitos. Porque gratuidade não existe, é um ente abstrato. Não tem almoço de graça, alguém vai pagar essa conta”.
Na média
A NTU registra três objetivos diferentes dos recursos, além das combinações entre mais de um deles: promover a separação da tarifa de remuneração e da tarifa pública, custear integrações e reduzir o custo total. O caso de Juiz de Fora é o último desde 2021. Até o último registro divulgado no Portal da Transparência da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF), relativo ao mês de dezembro de 2023, foram R$ 102.101.718,80 gastos com esse objetivo. De todos os 79 sistemas tabelados pela NTU, apenas 14 têm a tarifa pública igual ou menor do que a de Juiz de Fora, e todos são de cidades menos populosas.
Já com relação à cobertura do custo de remuneração, a associação analisou 53 sistemas, chegando à conclusão de que, no Brasil, em média, 30% é coberto por subsídio público. Entre os analisados, 22 subsidiam acima da média. Juiz de Fora não está neste meio, mas, pelas contas divulgadas no estudo produzido pela PJF em parceria com a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o R$ 1,64 por passageiro, para auxiliar no custo de R$ 5,39, representa exatamente a porcentagem média nacional.
Efeito da pandemia
O movimento é recente. Antes da pandemia, eram quase quatro vezes menos sistemas (20) atendendo quase metade das cidades (120). O superintendente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), Luiz Carlos Néspoli, explica que a crise sanitária forçou as prefeituras a colocarem recursos dentro do sistema, para que ele não parasse, e isso foi fortalecendo a ideia da necessidade de subsídios. Esse é justamente o objetivo que traz o texto da lei municipal: “Reequilibra o contrato de concessão do serviço de transporte coletivo urbano de passageiros no Município de Juiz de Fora, afetado principalmente pelos efeitos da pandemia da Covid-19”.
“Há uma crítica equivocada, de que é dar dinheiro para a empresa de ônibus. Não. O transporte tem uma arrecadação, que é usada para pagar o custo do transporte que você contratou. Se alguém decidir dar tarifa zero, alguém tem que pagar o contrato que se fez com o transporte. Então, de onde virá esse dinheiro?”, questiona Néspoli, que também responde: “Sempre que você dá subsídio, se é orçamentário, vem de impostos. Quem está pagando tudo isso é a sociedade, mas é importante que ela entenda que está contribuindo para que funcione a cidade. A loja abre porque tem público, que veio de ônibus, e é atendido por um balconista, que veio de ônibus. Então o comércio depende do transporte público”.
Ele argumenta ainda por meio de uma comparação: “Quando você constrói o sistema viário, pavimenta, limpa, varre, faz sinalização de trânsito, você está usando dinheiro público. No entanto, pode estacionar de graça. Ou seja, aquilo que é um bem público serve como garagem. Isso não é um subsídio ao automóvel? É a mesma lógica, só que direcionada para um sistema de transporte privado. Quando você fala em fazer isso com o transporte público, o mundo vem abaixo”.
Não precisa ser dinheiro público
Um detalhe importante na explicação do superintendente é a fonte dos recursos. Dener Santiago Arantes, especialista em Gestão Pública Municipal pela UFJF, reconhece que o modelo de financiamento do transporte público em que o usuário arca com o custo total do serviço “há muito tempo já mostrou suas fragilidades” – outro objetivo trazido na norma local -, mas também trata como consenso que a subvenção vindo apenas do orçamento público não é a solução, sendo necessário compreender a vocação de cada município.
“Por exemplo, se um município tem uma forte vocação turística, pode buscar parcerias com empresas do setor para financiar projetos de transporte público que atendam às demandas dos turistas, gerando receitas adicionais. Da mesma forma, se um determinado município tem uma forte base industrial, pode explorar parcerias com empresas para financiar projetos de transporte público que atendam às necessidades de deslocamento dos trabalhadores. Se a vocação do município é a agricultura, o Poder Público pode buscar parcerias com cooperativas agrícolas, captação de recursos para transporte de produtos agrícolas. Municípios com vocação para tecnologia podem explorar soluções inovadoras, como sistemas de pagamento eletrônico, aplicativos de transporte, ou parcerias com empresas de tecnologia para modernização do sistema de transporte”, exemplifica. Além disso, o advogado explica que é possível vender publicidade nos veículos e explorar os espaços em terminais e estações, de forma comercial.
Tripartite
Para Daibert, o orçamento público é incapaz de segurar um custo tão alto. Por isso, defende que o subsídio deveria ser tripartite: “A União, porque tem todos os impostos dobre o automóvel, sobre o empregador, é ela que promove a gratuidade dos idosos, que inclusive é imposta, e ela própria não banca nada; o Estado, que é beneficiário de 50% do IPVA, o maior imposto que existe relacionado a tudo isso que estamos falando, e também nada contribui; e o Município, que tem o IPTU, parcela do IPVA, estacionamentos em vias públicas e é o gestor responsável direto”.
Além disso, segundo o especialista, certas categorias da população poderiam pagar mais: proprietários de automóveis, que seriam os maiores causadores de danos em poluição, acidentes, congestionamentos e no prejuízo do próprio transporte público; os empregadores, de forma semelhante ao que acontece na França; e donos de imóveis, que se tornam mais valorizados quando se localizam em áreas urbanas, com fácil acesso do transporte público.
Padrão europeu
As informações cedidas pela NTU trazem ainda um panorama internacional. “Em média, os subsídios públicos passaram de 47% a 55%, de 2019 a 2020, para não onerar o usuário”. São contabilizadas 24 cidades da Polônia, França, Portugal, Finlândia, Suécia, Noruega, Dinamarca, Holanda, Inglaterra, Alemanha, Espanha, Hungria, Lituânia, Sérvia, Grécia e República Tcheca.
O representante da ANTP, Luiz Carlos Néspoli, afirma que o sistema adotado pelas cidades brasileiras é comparável a essas citadas, nas quais a subvenção econômica é “uma política cultural antiga”. Porém, a diferença também é encontrada na fonte de verba, como pedágios urbanos que vão para um fundo de transporte, por exemplo. “Na França, tem também o vale-transporte deles. Cada empregador que tem mais de 11 empregados tem que depositar uma determinada taxa de transporte no fundo. É a mesma coisa do nosso vale-transporte, só que ele é uma regra voltada para o indivíduo que usa. Na França, não. Independente se o empregado usa, ele é obrigado a depositar no fundo. É uma forma de entrar na ajuda da cobertura do custo operacional.”
Isso faz parte de um compromisso que as cidades europeias estão assumindo de se livrar do automóvel, “o vilão da mobilidade sustentável”, de acordo com Daibert. Isso gera cada vez mais restrições nas áreas centrais, que levam à necessidade de contrapartidas que beneficiam o transporte público. “O setor público banca toda a infraestrutura e parte do custeio para o transporte ficar cada vez mais público, e aí como o sistema é muito bom, o perfil do usuário não é de baixa renda, é de toda a população.”
Diesel
Francisco Christovam cita outras fontes extra-tarifárias que ainda não são usuais no Brasil, para que a ajuda no custo não seja retirada do orçamento, como cobrar estacionamento na via pública, taxa de congestionamento e um percentual do álcool e da gasolina – 32% retirados pelo Governo federal seriam suficientes para que o Brasil inteiro tivesse transporte público gratuito, segundo Daibert.
Já no Brasil, Christovam explica que algumas cidades se aproveitam do que já é uma despesa obrigatória: “Fornecem o óleo diesel, que representa alguma coisa como 20% do custo de produção do serviço. Como a Prefeitura já compra o combustível para os próprios veículos – caminhão de lixo, tratores -, acaba comprando um pouco a mais, e ela própria fornece o óleo para a empresa, que consequentemente não tem esse custo”.
‘Não existe almoço grátis’
Além de muitos dos efeitos positivos trazidos pelos outros setores envolvidos, na parte da gestão pública, Arantes também aponta como possíveis consequências negativas, a curto e médio prazo, os chamados “trade-offs”, em que, ao alocar recursos para uma finalidade, outras como educação, saúde, segurança e infraestrutura podem ser impactadas pelo ônus no orçamento. Já a longo prazo, ele cita uma dependência que o sistema de transporte poderia criar do financiamento público, prolongando a vida contratual de empresas ineficientes. “Pode gerar também a necessidade de criação de mais impostos e taxas para compensar os gastos com subsídios. Lembrando que em termos econômicos ‘não existe almoço grátis'”, completa.
Caso acabe o subsídio, “não há alternativa a não ser haver reajustes tarifários, a menos que tenha uma alteração muito forte na demanda – que compense a arrecadação -, ou uma racionalização muito forte no sistema de transportes”, explica Néspoli. “Nós temos que entender que o sistema precisa ter sustentabilidade para que ele possa avançar na qualidade.”
Precisamente à medida que o sistema se torna mais sustentável, eficiente e capaz de gerar receitas próprias que cubram os custos operacionais, o ideal é ir reduzindo o subsídio, de acordo com Arantes, que alerta: “É importante também que o subsídio não se torne uma solução permanente para cobrir desequilíbrios estruturais no sistema de transporte público”.
Sustentabilidade
Daibert também foca na sustentabilidade do transporte público, que teria um dos pilares nos recursos extra-tarifários, não necessariamente orçamentários. Com isso, poderia se resolver também um dos pilares de toda uma mobilidade urbana sustentável, que são, segundo Daibert, o transporte público de qualidade, ciclovias e o transporte também a pé, que já está sendo desenvolvido na Europa, com a valorização de grandes caminhadas, calçadas, passeios, praças maiores e ruas específicas para pedestres.
Ele afirma que o subsídio também é a chance de romper com um modelo que não permite melhorias na qualidade dos ônibus, porque isso aumentaria a tarifa. Se o município decide bancar um alto valor, além de abaixar a tarifa, pode demandar da empresa operadora que sejam colocados mais ônibus na frota e com ar-condicionado, por exemplo. “Se a gente pagar um pedaço, o transporte pode melhorar. O ônibus anda sempre superlotado porque o serviço é caro, então o jeito de baratear é superlotar.”