Bota-fora funciona como lixão na Cidade do Sol


Por Fernanda Sanglard

25/04/2013 às 06h00

Todo tipo de material é depositado no local

Todo tipo de material é depositado no local

Nove meses depois de a Tribuna ter publicado a primeira reportagem denunciando os riscos sanitários, ambientais e sociais do funcionamento inadequado de um bota-fora no Bairro Cidade do Sol, na Zona Norte, o local continua funcionando sem os critérios necessários. A reportagem voltou à área para acompanhar os avanços do aterro que vem sendo feito há aproximadamente um ano na pedreira desativada próximo à antiga Facit. O cenário, mais uma vez, assusta. Além das centenas de toneladas de entulho de obras – misturadas com todo tipo de material, inclusive produtos contaminantes – que são despejadas diariamente, o entorno da área já ressente os danos. Os moradores ficam expostos à poeira constante, à velocidade dos caminhões e aos animais – como ratos e escorpiões – que começaram a surgir.

Em 2012, o espaço na Cidade do Sol foi alugado pela Prefeitura (PJF) para funcionar como bota-fora da construção civil, recebendo, inclusive, materiais da Secretaria de Obras e da Cesama. O problema é que o local jamais serviu apenas para aterrar materiais inertes e funciona mais como um lixão, por abrigar todo tipo de detritos – o que envolve desde restos de tijolo, madeira e areia até plásticos, metais e eletrônicos. Conforme a PJF, o bota-fora está autorizado a funcionar até 2015.

O objetivo de manter a área em funcionamento seria resolver dois impasses. O primeiro é que, até que a usina de reciclagem de resíduos da construção civil e os prometidos ecopontos comecem a funcionar, o município só tem um outro ponto de descarte autorizado para esse tipo de material, que é o Aterro Sanitário de Dias Tavares. Devido à distância e aos custos para transportar e depositar os restos provenientes das obras, os empresários do ramo de caçambas alegam inviabilidade nessa alternativa. O outro impasse diz respeito à água acumulada na base da pedreira desativada na Cidade do Sol. Uma espécie de lagoa foi formada na enorme fissura entre o terreno e a rocha, e, além de apresentar risco de proliferação de vetores na área de água parada, crianças e adolescentes usavam o espaço para nadar e acidentes teriam ocorrido no local.

Devido a essas circunstâncias, o professor do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da UFJF Fabiano Leal diz que aterrar a cava formada na pedreira poderia ser uma boa alternativa, desde que critérios fossem seguidos. Ele defende que deveria ter sido feita proteção do manancial da região, para evitar carreamento dos sedimentos para o córrego da Facit, além de separação de todo o material antes de ser depositado na área.

"Quando se fala em resíduo da construção civil, envolve-se uma série de materiais, como gesso, tinta, vernizes, metais, plásticos e borracha. Mas apenas os inertes, como tijolo, argamassa, areia e os agregados são indicados para esse tipo de aterro, porque não geram chorume, por exemplo. Esses materiais deveriam ser separados na origem, e jamais o que não está nessa lista permitida deveria ser aterrado. É uma falta de sentido qualquer ação divergente", reforça o professor do mesmo departamento José Homero Pinheiro Soares.

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Reclamações

A comunidade do Bairro Cidade do Sol já perdeu as contas de quantas reclamações fez na intenção de evitar os danos provocados pelo despejo de resíduos na área e pela passagem constante de veículos pesados. Desde que o espaço começou a ser usado, o aparecimento de ratos, cobras, escorpiões e caramujos passou a ser recorrente. "Começaram a instalar o meio-fio para fazer calçadas, mas não terminaram. Com a força da água da chuva, parte do trabalho já estragou e, em alguns pontos, canos foram quebrados e o esgoto ou a água fiam empossados. Sofremos com a poeira e a lama. Colocaram uma espécie de brita próximo à entrada do bota-fora, mas que não resolve nada para os moradores, porque não instalaram bocas de lobo. Só o córrego, que está cheio de mato, não dá conta da vazão da água. Então, quando chove, fica terrível. A água empossa e as vias ficam cheias de buraco. Até agora não vimos melhoria nenhuma para esta região", denuncia Neide Aparecida Marques, que representa os moradores da Rua 1.

"Os caminhões passam em alta velocidade, a pista está toda estragada, algumas casas ficaram rachadas e um barranco ameaça ceder depois que esse bota-fora começou a funcionar", diz a aposentada Conceição Aparecida Januário, 53 anos. A Secretaria de Governo informa que a função de fiscalizar, separar o lixo não-inerte e melhorar o acesso ao local é compartilhada entre vários setores, como as secretarias de Obras, Atividades Urbanas, Meio Ambiente e Demlurb, e que melhorias serão feitas na área.

 

Local recebe quase todo o resíduo da cidade

A estimativa do Plano Integrado de Gerenciamento de Resíduos da Construção Civil aponta que a cidade produz de 700 a mil toneladas de entulhos dessa natureza por dia. Devido à distância do Aterro Sanitário de Dias Tavares e ao preço cobrado no local – R$ 21 por tonelada de resíduos inertes e R$ 88 por tonelada de resíduo comum – as empresas do setor de disque-entulho alegam ser inviável realizar descarte no local. Sem outra possibilidade, o bota-fora da Cidade do Sol tornou-se a única alternativa. Assim, as cerca de 20 empresas do ramo fazem despejo nessa área. Isso significa que praticamente todo o resíduo da construção civil da cidade tem sido levado para lá sem que haja o controle adequado.

O agravante é que a Secretaria de Meio Ambiente ainda não concluiu a licença de operação corretiva (direcionada aos empreendimentos em operação que ainda não procederam ao licenciamento ambiental) do espaço, ainda que ele esteja em funcionamento desde junho do ano passado. Isso significa que a documentação necessária para que o local funcione regularmente ainda não foi apresentada e que nenhuma medida corretiva foi implementada. Conforme a Secretaria de Governo, a atual administração solicitou prorrogação do prazo por 120 dias (que vence em 15 de julho), para tomar conhecimento da situação e anexar ao processo todos os documentos necessários à licença.

Na avaliação do professor do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da UFJF José Homero Pinheiro Soares, permitir que o bota-fora da Cidade do Sol funcione sem qualquer planejamento e análise do impacto que seria causado no entorno é algo grave. "Seria preciso ter feito análise da água do córrego que corta a região antes do uso e acompanhar para avaliar se está havendo contaminação. Todos os possíveis impactos à comunidade que vive na região tinham que ter sido calculados e as ações mitigatórias já eram para estar em andamento."

O professor Fabiano Leal também destaca os riscos à saúde da população."Nesses espaços, deve haver umidificação do solo constantemente, para que as partículas de poeira levantadas não causem danos." No entanto, segundo os moradores, o caminhão que joga água na via de acesso ao bota-fora não passa diariamente. "Minha neta de 1 ano e 9 meses está tendo problema respiratório e precisando de nebulização. Estamos reféns dentro de nossas próprias casas, porque não temos condição de ficar nem na varanda. Tenho que tirar a poeira dos móveis várias vezes ao dia", denuncia a dona de casa Edneia Martins, 58 anos.

A Prefeitura informa que está analisando o que pode ser implementado no local para ampliar o controle do material depositado e diz que a primeira ação feita pela atual administração foi "minimizar, com a população do entorno, os impactos produzidos pelo bota-fora, tais como melhoria do acesso, placas de sinalização de trânsito, construção de passeio, capina, orientação pela equipe de zoonoses, desobstrução da via. Também está sendo realizado um trabalho de conscientização e controle junto à Associação dos Caçambeiros, para que as caçambas não cheguem com lixo não inerte no local".

Contudo, a Tribuna esteve no local por diversas vezes nos meses de março e abril e, em todas as visitas, foi constatada a precariedade no entorno das moradias. O meio-fio até começou a ser instalado no início do ano na Rua 1, no entanto, não foi concluído. Enquanto isso, a população fica sem calçada, exposta à poeira, ao mato alto e à velocidade com que os caminhões circulam. A via está deteriorada, e a população reclama que é recorrente a quebra das redes de água, devido ao peso dos veículos de carga.

 

Necessidade de maior controle no uso da área

Entre julho de 2012 – quando a Tribuna esteve pela primeira vez no local – e este mês, cerca de 50% da área do "lago" da pedreira foram encobertos pela compactação de lixo e terra. Na parte restante, quase já não é mais possível enxergar a água, devido à quantidade de material flutuando. A imagem aérea demonstra o que já está aterrado e permite a comparação com as fotografias do ano passado.

Conforme informações do secretário de Governo, José Sóter de Figueirôa, o contrato para utilização do espaço foi iniciado em junho do ano passado e vigora até 2015, sendo pagos pelo Município R$ 6.190 por mês pelo aluguel da área. Mas, se em menos de um ano, quase metade da cava já foi encoberta pelo entulho, é provável que o espaço já esteja esgotado antes desse prazo.

Se essa previsão se tornar realidade, a cidade enfrentará um outro grave problema, que é a falta de uma alternativa para o descarte de resíduo da construção civil. Existe plano de construção de uma usina de reciclagem desse tipo de material e de até 15 ecopontos – que funcionariam como locais de recepção para pequenos volumes de resíduos inertes. No entanto, o processo licitatório sequer foi iniciado. No fim do ano passado, a gestão municipal anterior havia informado que, devido ao período eleitoral, o procedimento precisou aguardar. Já a atual administração informa que está elaborando o termo de referência que definirá os critérios técnicos para a licitação. Já há definição que a usina será terceirizada nos moldes do aterro sanitário.

Diante dessas circunstâncias, o professor Fabiano Leal destaca a importância de que haja maior controle na utilização do aterro da Cidade do Sol. "Se os resíduos são separados na origem, há menos prejuízos ambientais, menos risco de contaminação e maior vida útil do espaço, que receberá menos material." Outro problema na visão dele é que o material seja carreado para o córrego da Facit (que está tomado pelo mato), pois "o depósito de sedimentos diminui a possibilidade de escoamento da água e aumenta o risco de inundação".

 

Condições são inadequadas para trabalhadores

O que se vê nas caçambas das dezenas de caminhões que se revezam diariamente no bota-fora da Cidade do Sol revela que os materiais não são separados. Alguns catadores de recicláveis até atuam na área, mas em número insuficiente para dar conta da imensidão de lixo despejada. Isso, aliás, representa outro problema, já que esses trabalhadores atuam em condições inadequadas. Expostos à poeira e sem equipamentos de proteção, a maioria não possui vínculo formal. "Sei que aqui é difícil, o trabalho pesado, aparece muito bicho, rato e tem muita poeira. Mas é o que tenho para fazer", diz um catador que tenta vender o que consegue capturar rapidamente, antes que o material seja jogado no "lago".

Para o reciclador Elder Souza, 50 anos, que atua comprando materiais dos catadores, enquanto o Poder Público não tratar a questão do lixo com seriedade, a cidade ficará refém de práticas inadequadas. "É fácil fazer discurso sem colocar a mão na carteira. Tem que investir no setor. É preciso olhar sim para as associações e cooperativas de catadores, mas também para os pequenos depósitos, que foram esquecidos."

Os trabalhadores confirmam que as caçambas passam cheias de materiais misturados e dizem que tentam retirar o que está por cima, mas o restante acaba sendo despejado na cava da pedreira. "Um problema para esse material não ser separado na origem, nas próprias obras, é que não se acha quem queira comprar determinados materiais, como PVC e vidro. Se tivesse mercado, todo mundo recolheria, mas não há e não existe nenhuma proposta local para resolver isso. As despesas para quem trabalha com isso aumentaram muito, porque dá trabalho, tem material contaminante no meio, e quem sobrevive disso sofre demais", diz o reciclador.

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