Mãotemática propõe metodologia de ensino matemático acessível para surdos
Professores de Matemática e de Libras se uniram para criar sinais específicos para ensino da Matemática; atualmente, eles buscam recursos para desenvolver plataforma com vídeos na língua de sinais para todas as etapas do ensino
Mestre em educação matemática e intérprete, o professor Cristiano Donado entrou em contato com a Língua Brasileira de Sinais (Libras) em 2001, quando começou a dar aulas na Escola Municipal Cecília Meireles. Na época, havia 70 alunos surdos matriculados na instituição. Como estava em contato com a língua de sinais havia um ano, tinha fluência, mas não sabia usar sinais específicos para o ensino da matéria. Naquela época, também não havia quem fizesse a tradução da matéria na segunda língua oficial do país. “Falei para a diretora Olga que não tinha condições de falar em duas línguas ao mesmo tempo. Ela me disse que podia fazer o que eu achasse melhor. Então, eu entrava na sala, e 25 minutos da aula eram em Português. Enquanto isso, os alunos surdos faziam exercícios. Nos outros 25 minutos, a aula era em Libras, e os ouvintes faziam exercícios.” Para trabalhar o conteúdo, na época, o professor usava a recorrência, que se baseia no padrão de resoluções das questões, ainda sem o apoio dos sinais matemáticos.
Quase 20 anos depois, a dificuldade no ensino para surdos persiste e foi, inclusive, tema da prova de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2017. Hoje, mesmo com a possibilidade de ter intérpretes, as especificidades das demandas educacionais dos surdos ainda não são atendidas. Nesse contexto, o diálogo entre a linguagem matemática e da Libras proposto pelo Projeto Mãotemática é a aposta para uma metodologia de ensino da disciplina, que visa a impactar positivamente a forma de lecionar para os 70
mil estudantes surdos do país, partindo das necessidades de aprendizado indicadas por eles.
Em 2013, Cristiano encontra o professor Rodrigo Mendes, que é surdo, professor efetivo da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), trabalhando na linha de Libras e Diversidade. Um dia, Cristiano sonhou com o nome Mãotemática, e quando acordou, sabia que precisava pensar em uma forma de aliar o ensino de Matemática usando a língua de sinais.
“Pelo fato de Rodrigo ter formação em Matemática, ter letramento em Português e ser reconhecido como militante do movimento, era a pessoa certa. Eu o chamei para gravar um vídeo, explicando sobre número antecessor e número sucessor. Testamos e fomos muito bem recebidos nas redes sociais”, narra Cristiano. As demandas por outros temas foram surgindo e outros vídeos foram feitos. A dupla foi chamada para dar um curso em Ponte Nova (MG) e, depois desse convite, visitou outras 19 cidades, levando essa linha metodológica para o ensino de Matemática em Libras. Surdos, intérpretes e pedagogos participaram de cursos de 12 horas de carga horária e ajudaram a construir o conhecimento.
Esse trabalho chegou a São Paulo, de onde eles receberam uma ligação com o convite para um mestrado em educação matemática. Eles passaram na prova e ficaram dois anos estudando. Agora, depois da conclusão da capacitação, os professores retomam as atividades do Mãotemática, com o intuito de viabilizar a construção de uma plataforma on-line, em que as videoaulas feitas por eles possam ser acessadas por qualquer aluno surdo do país gratuitamente.
Dificuldade em explicar Matemática
São as experiências pessoais que ajudam a ilustrar a experiência de aprender conteúdo por meio de uma língua que não se consegue acessar. O professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Viçosa, Charley Soares, que é surdo, relata que nas escolas pelas quais passou, os docentes trabalhavam apenas com recursos orais. Eles não usavam sinais ou qualquer outra forma de apresentar o conteúdo de maneira visual. “Eles explicavam Matemática de uma forma que eu não conseguia entender. Fiquei sem aprender o que era explicado até o terceiro ano do científico. Saí da escola e continuei com essa dificuldade. Não tenho um uso lógico da matéria, por isso, o celular me ajuda muito, principalmente com a calculadora.”
Faltava, segundo Charley, uma metodologia que não se baseasse exclusivamente na fala, o que ele encontrou ao ter contato com o Mãotemática, quando participou de um dos cursos de 12 horas dados pelo projeto. “É outro nível, porque em Libras eles conseguem mostrar essa multidisciplinaridade para que possamos ter acesso a imagens, dinâmicas, brincadeiras. Agora, eu tenho acesso aos conceitos da matéria.” Aos professores ouvintes, ele aconselha que esmiucem o conteúdo, pensando em como apresentá-lo de uma maneira que facilite a compreensão visual do que é trabalhado. “Que usem mais exemplos, tornem aquele conteúdo o mais concreto possível”.
Apesar de ser oralizado e ter um bom conhecimento de Português, chegar ao ensino superior também foi um grande desafio para o professor Rodrigo Mendes. “A Língua Portuguesa em nível acadêmico é muito difícil. A norma culta foi um complicador enorme, que me exigiu esforço, muita leitura. Os professores viam que meu conhecimento é bom, mas é limitado. Mas esse é o meu perfil”, ele realça, pontuando que o acesso que teve ao Português não é o mesmo para todos os surdos. Para ele, é sempre importante acentuar que dentro do grupo de pessoas surdas, há diferentes experiências e, portanto, necessidades diversas.”Minha irmã, por exemplo, é surda profunda. Ela teve acesso ao mesmo material que eu, mas ela não tem o mesmo desempenho no Português, então, eu não posso afirmar que melhorar o entendimento da língua elimina o problema. Cada um tem o seu jeito, o seu tempo e a sua forma.”
Por isso, o ensino de Matemática e de outras disciplinas também exige um olhar individual, para que o professor possa adaptar os processos e incluir esses estudantes de maneira plena. “Aprendi a língua de sinais com 18 anos. Então é preciso adaptar e direcionar o ensino, para que o aluno surdo possa responder o que o professor quer alcançar com aquela matéria. Se fosse pensar de uns anos para cá, gostaria que os meus mestres fossem fluentes em Libras e, paralelamente, adotassem metodologias mais visuais.”
Para testar o que vem sendo empregado na educação da população dos surdos, Rodrigo se inscreveu no Enem, para avaliar a tradução da prova. “A prova de linguagens tinha intérprete, com uma tradução perfeita, porque ele domina Libras e o Português. Na prova de Matemática, o intérprete não tinha base da disciplina e não conseguia atingir a compreensão do surdo. Além disso, era uma interpretação muito fria, impessoal, distante. Isso me deixou muito preocupado.”
Sede de aprendizado
Mesmo que as informações não cheguem de maneira acessível, os surdos seguem alimentando a vontade de aprender, de acordo com o professor Rodrigo Mendes, professor da Faculdade de Educação da UFJF. “Queremos ter acesso à profissionalização, queremos estudar para ter uma vida melhor e direitos iguais aos de qualquer ouvinte. Comprar, pagar, trabalhar, casar. Tudo isso passa pela educação.” Por isso, segundo ele, existem as associações, para que o surdo consiga caminhar em direção à cidadania.
“Muitos chegam às faculdades depois de receber o diploma dos ensinos fundamental e médio sem ter o conhecimento necessário. Os surdos pensam que estão preparados, mas quando chegam lá, percebem que ainda não estão prontos. Isso causa um sentimento de que estamos sendo prejudicados”, explica.”A sociedade ainda não tem esse conhecimento sobre como lidar com o surdo no aspecto educacional.” Por isso, é preciso, segundo ele, pensar, primeiro, no ensino básico.
Mãotemática
Pensando nisso, o Mãotemática leva o aprendizado por meio de uma linguagem que chega ao surdo. Com cerca de 20 mil sinais na Libras hoje, pouco mais de cem eram usados na sala de aula para ensinar Matemática. “Em uma das cidades que passamos, fomos falar sobre os números primos. Mas não podíamos usar o sinal para designar a palavra primo, porque ele indica o ente familiar, não é a mesma coisa. Mostramos o padrão e um dos surdos representou os dois divisores sobre a chave e fez o sinal. Ficamos arrepiados, foi um momento mágico”, explicou Cristiano.
Assim como o sinal para números primos, muitos outros foram feitos por surdos e por Rodrigo, durante os cursos. Hoje, para explicar o que é uma esfera, os professores não usam mais o mesmo movimento com o qual se faz o sinal de bola. O novo gestual que indica a forma leva em consideração o eixo e também trabalha com a ideia do semi-circulo rotacionando em volta dele. Além desses, muitos outros passaram a integrar o vocabulário matemático da Libras, depois do início do projeto.
(Re)pensar o básico
As viagens pelas cidades de vários estados mostraram que o método pensado por Cristiano e Rodrigo funciona. Mas é inviável promover a capacitação em todo o país, por meio de cursos de 12 horas, que era o modelo adotado por eles, inicialmente. Há municípios que nem teriam como receber o projeto. Por isso, a plataforma digital educacional foi pensada. A ideia é partir da Base Nacional Comum Curricular e iniciar a criação dos vídeos a partir do primeiro ano das séries iniciais.
“Queremos que todos estejam contemplados. Há muitos surdos que não tem condições de investir se o curso for pago. Muitos sequer conseguem comprar créditos para ter internet no celular. Então, não adianta fazer algo pago, porque ele se tornaria inacessível. Queremos ter algo que todos possam usar por meio de um login ou um acesso”, afirma o professor Cristiano. O primeiro passo para conseguir isso foi a inscrição do projeto em prêmios e editais.
No Liberta Minas, que destina emendas parlamentares a projetos, o trabalho concorreu a uma verba de R$ 200 mil. Foi para a segunda fase da seleção, mas não conseguiu chegar ao prêmio. Em seguida, o grupo participou do Prêmio Volkswagen. Entre os 406 inscritos, o Mãotemática ficou entre os dez melhores, mas não ganhou. A equipe também lançou uma vaquinha virtual, com o objetivo de gravar dez vídeos com o custo de R$ 1 mil cada um, que permanece aberta.
Por meio da visibilidade alcançada com a participação nas premiações, em fevereiro, o projeto será recebido em Brasília por Priscilla Gaspar, a secretária nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, que é surda. A expectativa é a de que o encontro possa abrir portas que ajudem a viabilizar a construção da plataforma. “O que é feito no amor, agora precisa tomar uma cara mais profissional, e isso é caro. A Libras tem o tempo dela. A sinalização, no vídeo, precisa ser mais lenta. Isso deixa o material mais longo. Esse é o melhor formato para o surdo, porque a escrita em língua de sinais ainda é pouco difundida, usa-se muito pouco”, conta Renan Norberto, intérprete que tem formação em História e colabora com a edição dos vídeos feitos pelo projeto.
O vídeo, segundo Renan, pode ser revisto, pausado e acessado quando as dúvidas surgirem. “Na escola, em uma situação ideal, o professor de Matemática é fluente em Libras. Mas e quando esse aluno chega em casa, como estuda sozinho? O livro de Matemática é escrito em Português. O vídeo, nesse caso, vai funcionar como um livro didático, feito em Libras, ao qual o aluno pode recorrer quando precisar.”
Desse modo, é possível pensar, segundo os criadores da proposta, em um caminho educacional que seja mais representativo e efetivo para o surdo, atendendo suas demandas sem deixar lacunas. “O método atual não é inclusivo. Ele é integrador. Colocar esse aluno em sala de aula não é fazê-lo participar. Então o que a gente precisa é entender o que os surdos precisam. Construir com eles, para eles e com eles”, conclui Cristiano.