MP investiga venda de terreno doado pela PJF à Associação Escoteira Aymoré
Permuta com construtora inclui construção de nova sede da associação escoteira e quatro apartamentos
O Ministério Público (MP) investiga a venda de parte do terreno da Associação Escoteira Aymoré, situado na Rua Carlos Palmer, na Vila Ozanan, Zona Sudeste de Juiz de Fora, próximo ao Bairro Bom Pastor. Doada pela Prefeitura há cinco décadas, a área conta com pouco mais de 33 mil metros quadrados, e cerca de um terço foi desmembrado e negociado em troca da reforma da sede da unidade. De acordo com a diretoria da entidade sem fins lucrativos, o espaço ficou inutilizado devido à degradação sofrida ao longo do tempo e em decorrência de uma série de invasões, as quais alertaram para a necessidade urgente de reforço na segurança. Diante disso, conforme o presidente da associação, Eraldo Danelon, 11 mil metros quadrados foram comercializados, após aprovação em assembleia, em 2017, de proposta apresentada pela Valor Engenharia. A empresa, no entanto, não é alvo direto da ação investigativa. Ainda segundo Eraldo, a venda chegou a ser registrada em cartório no dia 24 de junho deste ano, e a demolição das antigas estruturas já havia sido iniciada, mas foi paralisada em julho, quando houve pedido de informação do MP, baseado em denúncia anônima.
Para investigar a comercialização de uma boa fatia do terreno fruto de doação municipal, a 22ª Promotoria de Justiça de Juiz de Fora, que cuida das questões relacionadas a Patrimônio Público, instaurou inquérito no dia 28 de agosto. O objetivo, segundo ementa da instituição, é apurar “negociação comercial envolvendo o imóvel pertencente à Associação Escoteira Aymoré, recebido por doação do Município de Juiz de Fora através da Lei nº 03206/1969, constando que a diretoria de referida associação, sem qualquer previsão legal, concretizou sua venda por meio de uma suposta permuta”. A promotora responsável é Danielle Vignoli Guzella Leite. A assessoria do MP informou que, como as investigações estão em andamento, não há mais detalhes que possam ser divulgados.
Segundo a Lei municipal 3.206, de 2 de maio de 1969, foi doado à Associação Escoteira Aymoré, “um terreno de forma irregular, situado na Vila Ozanan, fazendo divisa com o Bairro Bom Pastor, compreendendo as áreas em total de 40.730 metros quadrados”. A norma ainda destaca que a entidade “se obriga a ceder o uso do terreno, com todas as instalações que nele vir a fazer, a todos os grupos escoteiros que existem ou vierem a se criar em Juiz de Fora”. Pela regra, as áreas deveriam ser destinadas à construção da sede própria da associação e revertidas ao patrimônio do Município se as obras não fossem iniciadas no prazo de 12 meses, a contar da data de escritura de doação.
Já em 9 de agosto de 1976, foi publicada a Lei 5.071, que autoriza o chefe do Executivo a “renunciar ao direito de reversão do imóvel doado à Associação Escoteira Aymoré”, ou seja, concede liberdade ao prefeito de não reverter para o Município o terreno doado, nos moldes da lei anterior, de 1969.
Prefeitura diz que é contra venda
Procurada pela Tribuna, a Prefeitura de Juiz de Fora (PJF) confirmou ter sido notificada pelo Ministério Público e afirmou já ter apresentado sua resposta, “contrariamente ao que pretende a Associação Escoteira”. “No entendimento do Município um bem doado não pode ter utilização patrimonial por quem o recebeu. Antes, ao contrário, deve sempre observar o interesse público que motivou a doação.”
Ainda conforme a nota, os procedimentos administrativos iniciados pela Associação Escoteira não modificam a condição preestabelecida na escritura pública e na respectiva lei autorizativa. “O Município salientou a impossibilidade de qualquer donatário dar destinação diversa ao imóvel daquela estabelecida na lei de doação, o que no caso significou a construção da sede daquela associação.”
Cientificada do fato pela Secretaria de Administração e Recursos Humanos e pelo próprio Ministério Público, a Procuradoria-geral do Município recomendou à Secretaria de Meio Ambiente e Ordenamento Urbano (Semaur) “que se abstenha de aprovar qualquer projeto construtivo para a área em discussão”.
Segundo documento apresentado pela diretoria da associação à Tribuna, o projeto para construção da nova sede da Associação Aymoré, com área de 1.073 metros quadrados e dois pavimentos, em lote de 20.994,50 metros quadrados, chegou a ser aprovado pela pasta no dia 15 de julho deste ano. No mesmo carimbo datado e assinado, todavia, há uma declaração de que “a aprovação do projeto não implica no reconhecimento por parte da Prefeitura do direito de propriedade do imóvel”.
A diretoria da associação escoteira alegou, ainda, que a Prefeitura estava ciente de todo o processo de desmembramento do terreno, mas teria mudado de postura após a denúncia ao MP. Na última quinta-feira (3), as partes se pronunciaram durante uma reunião entre Promotoria, PJF e Aymoré. Por meio da assessoria, o Executivo municipal declarou que, durante o encontro, “a Associação Escoteira Aymoré informou que apresentará uma proposta para tentar solucionar o caso. Dessa forma, tanto a Prefeitura, quanto o Ministério Público aguardam o posicionamento da associação”. A entidade, por sua vez, confirmou à Tribuna que a proposição ainda vai ser discutida em assembleia e não divulgou o teor da mesma. A Tribuna entrou em contato com a Valor Engenharia, mas a empresa não se pronunciou sobre o caso.
Primeiro desmembramento na década de 1970
De acordo com o presidente da Associação Aymoré, Eraldo Danelon, a área atual é de pouco mais de 33 mil metros quadrados porque um primeiro desmembramento do espaço ocorreu logo na década de 70. Na época, uma área de 7.210 metros quadrados foi vendida para possibilitar o término das obras da sede. Na mesma ocasião, a própria Prefeitura teria solicitado um pedaço para criar a Rua Carlos Palmer. “Aquela parte toda descendo a Carlos Palmer, do lado esquerdo, é remanescente do terreno original”, pontuou Eraldo. “O terreno foi doado em 1969, quando começaram as obras, mas a sede foi inaugurada oficialmente em 1975, depois do desmembramento ocorrido em 1973. Foi a partir dele, com a verba da venda desses terrenos, que foi feita a maior parte da construção, na frente, com piscina e quadra. Desde essa época fizemos pequenas intervenções, sempre baseadas em promoções financeiras do grupo.”
Desta vez, a negociação tem a finalidade de demolir todas as antigas estruturas existentes, e aterrar a piscina, para tirar do papel um projeto de mais de mil metros de área construída, incluindo um prédio de dois andares, com acessibilidade e estacionamento, além de uma quadra poliesportiva coberta com vestiários. “Foram desmembrados 11 mil metros quadrados. Desses, perto de seis mil é área plana, o resto é talude. Na verdade, estamos perdendo de área útil perto de seis mil metros apenas, e o grupo está mantendo no total cerca de 22 mil metros quadrados”, avaliou o presidente.
Apartamentos
Segundo Eraldo, o contrato prevê que a empresa de engenharia realize primeiro a construção da sede da Aymoré, para só depois investir em seu próprio negócio, que seria um empreendimento multifamiliar. Na permuta, a associação ainda recebeu como contrapartida quatro apartamentos quarto e sala na Avenida Itamar Franco, na altura do Bairro São Mateus, Zona Sul. Segundo a diretoria, os imóveis estão em nome da entidade desde maio deste ano, sem possibilidade de venda ou transferência, e foram locados, com renda total mensal de pouco mais de R$ 2 mil, para ajudar nas despesas da sede, como contas de água e energia elétrica, além dos gastos com as próprias atividades do grupo, como os acampamentos.
Invasões deixaram situação ‘insustentável’
A Associação Escoteira Aymoré começou a sofrer mais com furtos a partir de 2014, mas a situação ficou ainda pior entre 2016 e 2017. “Registramos boletins de ocorrência quase diariamente por conta das invasões na sede”, afirmou o presidente Eraldo Danelon. “O principal atrativo deles (invasores) era a piscina. Passamos a não tratar mais a água, que foi ficando escura, e chegamos a colocar óleo queimado e outros produtos para evitar a proliferação de dengue. Mas aí começaram a depredar o imóvel em retaliação. Era vandalismo puro, porque não tinha o que roubar. Arrombavam as salinhas das seções de crianças, onde ficavam trabalhos manuais, caixas de lápis, que pegavam só para destruir. Também quebravam portas e janelas.”
De acordo com o vice-presidente da associação, Paulo Rossini, muitos delitos estavam ligados ao tráfico. “Começou a ter consumo de droga lá dentro, e os usuários ficavam muito alterados. Chegamos a pegar um dormindo lá dentro. A situação ficou insustentável. O movimento de escoteiros vive da vida ao ar livre. E nós não tínhamos mais coragem de deixar as crianças lá, porque não tinha segurança.”
O diretor dos clubes de escoteiros da Zona da Mata, Frederico Neves, contou que chegaram a ser realizados mutirões com os grupos da cidade, mobilizando também chefes dos distritos, para cercar todo o terreno. “Conseguimos doações de mourões e cercas. Usamos roçadeira, fizemos pintura, passamos um fim de semana reestruturando a Aymoré. Nosso medo era que violentassem alguém fisicamente, porque moralmente já o faziam. O zelador era ameaçado constantemente.”
Segundo a diretoria da associação escoteira, a ideia de vender parte do terreno para reestruturar a sede ganhou força em 2017, quando as reuniões do grupo passaram a acontecer em unidades de outras equipes devido à insegurança. Ainda conforme a entidade, a área total do terreno, de mais de 33 mil metros quadrados, chegou a ser avaliada em R$ 6,5 milhões na época, e o valor foi usado como base para a negociação. No mesmo ano, após discussões em assembleias e publicação em jornais com 30 dias de antecedência, várias empresas lançaram propostas. “No geral, as construtoras queriam o terreno inteiro, mas nunca foi nossa intenção sair de lá, devido à história do grupo”, iniciada na Rua Santos Dumont, no Bairro Granbery, em 1939.
A concretização do negócio, que está sendo investigado, só veio este ano. Após a venda, a Aymoré ficou com a parte frontal do terreno, enquanto a construtora ficou com a parcela de trás. “Fizemos um projeto novo, atendendo as legislações vigentes. O prédio antigo era de 1975 e nunca passou por reforma ou modernização. A Aymoré vai ter uma estrutura nova e moderna, com muro no entorno e sistema de alarme, para preservar o grupo e os meninos que estão lá dentro”, defendeu Frederico.
13 grupos reúnem mil escoteiros na cidade
A expectativa era de que a nova sede da Aymoré já fosse inaugurada em novembro, na comemoração dos 82 anos do grupo, que continua ativo e aberto a novos interessados, apesar dos problemas estruturais. “Não recebemos ordem para parar a demolição, mas paramos por opção própria. Preferimos paralisar para prestar esclarecimentos”, garantiu o presidente da entidade, Eraldo Danelon.
Enquanto o embaraço não é resolvido, as reuniões permanecem com apoio dos 13 grupos de escoteiros existentes em Juiz de Fora. Conforme o diretor dos clubes da Zona da Mata, Frederico Neves, eles reúnem cerca de mil pessoas. As atividades são voltadas para crianças e jovens, dos 6 anos e meio aos 21 anos. Só a Associação Aymoré conta com 80 membros, sendo cerca de 20 deles adultos, que cuidam voluntariamente da administração. A mensalidade paga pelos escoteiros é de R$ 24, no entanto, o valor é considerado insuficiente para manter as atividades.
“Um dos motivos de o local ter ficado sucateado é que tínhamos uma despesa de R$ 5 mil por mês”, detalhou Frederico, acrescentando que parte do dinheiro vinha de festas e eventos promovidos pela entidade. “Durante muitos anos, o salão foi alugado para casamentos, aniversários. Mas em 2005 fomos notificados pela Secretaria de Atividades Urbanas e ficamos proibidos de realizar qualquer tipo de aluguel para essa finalidade. Cortaram o grosso da fonte de renda que a gente tinha para manter o grupo, de cerca de R$ 3 mil mensais. Hoje nem possuímos mais funcionário fixo”, completou Eraldo.
Ainda segundo ele, o “grande impasse” levou a boatos de que “os escoteiros abandonaram a sede”. “Já era para a obra ter começado há dois meses atrás, porque o prazo que a construtora pediu para levantar nossa sede seria de dez meses, mas disseram que entregariam em, no máximo, quatro ou cinco. Já perdemos dois meses por conta desse imbróglio.