Especialistas contestam aprovação de projeto em área tombada no Granbery
Proposta de construção admitida pelo Comppac, com duas torres e edifício garagem, acaba com campo de futebol e, segundo arquitetos, faz “destombamento”

A aprovação pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural (Comppac) do projeto para construir duas torres – uma delas com 23 andares – e um edifício garagem na área tombada do Centro de Educação Física e Esporte (Cefe), que pertencia ao Colégio Metodista Granbery, revoltou moradores que lutaram pelo tombamento da área, oficializado pelo Decreto Municipal 16.754/2024. Especialistas ouvidos pela Tribuna afirmam que a construção, admitida pela maioria dos conselheiros em reunião na última segunda-feira (4), na prática, significa “destombamento”. Além disso, apontam temor de que seja aberto precedente para o desmonte de outros espaços tombados na cidade.
A proposta apresentada pela empresa Soip Negócios Imobiliários Ltda, que adquiriu 13 mil metros quadrados do Cefe em leilão judicial em abril, acaba com o campo de futebol e com a piscina, além de esconder pelo menos duas fachadas do Edifício Charles Alexander Long, de “inequívoco valor histórico”, enquanto preserva o bosque e cria uma praça pública, além de três quadras no topo das garagens. Por meio da assessoria, a Funalfa pondera que “foi aprovada a compatibilidade da proposta com o decreto de tombamento”, mas não detalha quais possíveis brechas no texto foram usadas para justificar essa medida. A crescente especulação imobiliária no Granbery preocupa os moradores, que já sofrem com enchentes e outros problemas de urbanismo. Conforme a Prefeitura de Juiz de Fora (PJF), “questões de saneamento e urbanismo serão analisadas em outras instâncias”. Paralelamente e sob sigilo, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) investiga o caso, por meio da Curadoria de Patrimônio Histórico, ligada à 8ª Promotoria de Justiça da Comarca de Juiz de Fora.
Dos 12 conselheiros que integram atualmente o Comppac, apenas três votaram contra o projeto. Um deles é o arquiteto, historiador e professor do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Marcos Olender. “Sou contrário ao projeto em toda a sua integridade”, afirma ele em seu voto, lembrando que o decreto de tombamento foi aprovado por unanimidade no conselho, há menos de um ano. “O tombamento se faz necessário para preservar as expressões materiais de um espaço ‘cujo desfrute como bem cultural está associado à sua condição de área esportiva, não à sua monumentalidade’. E é essa condição que se é preservada na sua totalidade no próprio decreto, que reforça a todo o momento (com exceção da área do bosque, destinada à ‘preservação ambiental’), o condicionamento ao uso esportivo sempre que se menciona qualquer possibilidade de alteração ou readequação dos elementos presentes.”
Diante disso, Olender considera que as alterações físicas, volumétricas e arquitetônicas apresentadas no projeto são impensáveis pelo texto do decreto. “O projeto proposto reduzirá tal uso esportivo a uma condição periférica, eclipsado pelas atividades comerciais e residenciais (…) A proposta efetivamente destrói o campo de futebol existente, substituindo-o por um edifício garagem de três andares, onde na laje superior se propõe a instalação de algumas quadras de dimensões inferiores. O texto do decreto é extremamente explícito: ‘A área do campo deve ser preservada para este fim, sendo permitido, apenas, adequações relativas a dimensões, tipo de gramado e outros beneficiamentos que contemplem o objeto e sua infraestrutura (arquibancadas e afins), com prévio exame e aprovação do Comppac’. Ou seja, é proibida a construção de uma edificação como aquela que está sendo proposta”, alerta Olender.
O arquiteto também observa o avanço das citadas obras pela piscina e quadras. “O texto (do decreto) diz: ‘reforma, readequação, realocação e ou modificação, incluindo para outro uso esportivo’, ou seja, além de não mencionar explicitamente o termo ‘construção’, diz que as intervenções que forem realizadas se limitem a, no máximo, ‘outro uso esportivo’. Não há permissão para outros usos nessas áreas.” Sobre o Edifício Charles Alexander Long, “as edificações propostas inviabilizam a preservação da sua ambiência e visibilidade de parte extremamente significativa do seu volume, com construções previstas para serem construídas no próprio perímetro do tombamento”. Para ele, “é inconcebível que, dentro do perímetro de tombamento, se construam edificações do porte proposto e que obstaculizam efetivamente a percepção visual de, pelo menos, duas das fachadas da edificação em questão”. Por fim, Olender é taxativo em seu voto: “O projeto representa uma grave ameaça ao próprio tombamento do bem e, se for aprovado, representará efetivamente o seu destombamento. E mais do que isso, poderá servir de exemplo para intervenções em outros bens tombados ou a serem tombados, representando, portanto, também uma gravíssima ameaça a esses bens e, por extensão, à preservação do patrimônio edificado e urbano de nosso município.”
Moradores do Granbery protestam contra “564 apartamentos e 288 salas comerciais”
A Associação dos Moradores do Granbery está mobilizada diante da aprovação pelo Comppac e marcou um protesto “contra o projeto que destrói a área tombada do antigo Centro Esportivo do centenário Colégio Granbery”, às 11h deste sábado (9), na Rua Ambrósio Braga. “Não ficaremos parados, continuaremos na luta, inclusive, judicialmente. A decepção e indignação foram grandes, pois ficou claro que os interesses econômicos se sobrepuseram aos interesses e bem-estar da comunidade, o que é lamentável”, pontua a presidente da entidade, Fátima Barcellos. “Vamos lutar para que o decreto de tombamento 16.754/2024, assinado pela prefeita, seja respeitado e norteie as decisões. Caso contrário, estará desmoralizado em Juiz de Fora qualquer processo de tombamento, visto que será aberto um precedente muito perigoso”, dispara, lembrando que há um abaixo-assinado com cerca de 20 mil assinaturas a favor da preservação do patrimônio.
“A meu ver, o que foi aprovado foi um destombamento disfarçado, uma vez que não seguiu o rito estabelecido no artigo 21 da Lei 10.777/2004, sobre quando pode ocorrer o destombamento e os passos a serem seguidos”, reforça Paulo Gawryszewski, especialista em gestão do patrimônio cultural, vice-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil – Núcleo da Zona da Mata e Vertentes (IAB/ZMV) e representante do IAB/ZMV no Comppac. Seguindo essa linha, ele também votou contra a aprovação do projeto. “Para mim, o decreto está correto, porque ele trata da materialidade do tombamento em questão, ou seja, o campo de futebol, a piscina, o bosque e o prédio.” Na sua percepção, com a execução da proposta, só restarão o prédio Alexander Lang e o bosque. Além disso, ele acrescenta que o pedido de tombamento foi feito pela Associação dos Granberyenses. “Assim, além da materialidade, houve na decisão do Comppac para o tombamento do valor afetivo. Ou seja, o vínculo da comunidade com o Cefe.”
Em nota enviada à Tribuna pelo seu representante jurídico, a Soip avalia que a aprovação da proposta pelo Comppac “reforça o entendimento de que o projeto está em plena compatibilidade com o decreto de tombamento e atende rigorosamente às normas legais, demonstrando que é possível conciliar desenvolvimento econômico com sustentabilidade”. Segundo a empresa, o projeto foi construído baseado no diálogo com a comunidade, priorizando a transparência e o benefício coletivo. “A aprovação pelo conselho ratifica nosso entendimento de que o projeto honra a história, enquanto constrói um futuro próspero para a região.” A Soip anuncia que a proposta de restauração do Edifício Charles Alexander Long está pronta. “Tão logo obtivermos as autorizações necessárias, iniciaremos as obras de restauração deste edifício, que será a peça central da praça aberta ao público que será erguida no empreendimento.”
Arquiteta da área de patrimônio explica pontos conflitantes
A arquiteta e urbanista que atua na área de patrimônio histórico e cultural, Ananda Visentin, chegou a participar de parte da reunião do Comppac, na última segunda-feira, antes da votação do projeto, para fazer questionamentos e passar a visão dos moradores, “diretamente impactados”, além da sua percepção técnica sobre o decreto e a proposta. Ela ressalta que o texto 16.754/2024, em seus primeiros dois artigos, tomba e preserva o conjunto esportivo do Granbery delimitado pelas ruas Sampaio, Barão de Santa Helena, Doutor Tarboux e Batista de Oliveira. “No mencionado dispositivo fica claro que, como o conjunto foi tombado e preservado, a integridade do bem deve ser garantida.”
Logo, segundo ela, qualquer alteração apta a descaracterizar a área tombada estará em desacordo, “sendo, portanto, inadmissíveis, sob pena de dano irreparável ao patrimônio histórico e cultural da cidade e, em especial, do Bairro Granbery”. Para exemplificar, ela cita o quarto artigo do texto, que versa sobre o parque aquático e as quadras poliesportivas, englobando o ginásio: “Determina que é possível a mudança de layout dos mesmos, assim como o redimensionamento, aprimoramento e troca de um uso esportivo por outro. Portanto, não estão previstas novas volumetrias ou destinações que não se adequem ao uso atual. Ocorre que, no projeto em questão, a piscina é substituída por uma praça, em explícita ofensa ao decreto de tombamento.”
Já o artigo quinto, menciona que a área do campo de futebol deve ser mantida para este fim, podendo apenas ser redimensionada, seu gramado ser substituído por outro e receber melhorias nos elementos pré-existentes e em sua infraestrutura, como a arquibancada. “Entretanto, no projeto essa área recebe um edifício garagem com quadras na parte superior, mais uma vez ofendendo o decreto de tombamento.”
Por fim, conforme a arquiteta, o sétimo artigo define que as demais áreas do conjunto poderão receber novas instalações e infraestruturas que beneficiem o uso esportivo local. “Ressalta-se que nestas áreas também não há previsão de acréscimo de novas volumetrias. Contudo, no projeto em destaque, essas áreas são ocupadas pelas torres corporativa e residencial, com lojas no térreo. Esse empreendimento, além de não beneficiar o esporte local, ocasionará impactos irreversíveis ao Patrimônio Histórico Cultural da cidade e, em especial, do Bairro Granbery, afetando diretamente a comunidade, uma vez que as obras propostas sobrecarregariam a infraestrutura e o trânsito do bairro.”