Sob intervenção, Associação dos Cegos expande serviços e se reestrutura
Mudanças na gestão alteraram rotina dos assistidos, que celebram ampliação da oferta
A intervenção judicial sobre a Fundação João Theodósio Araújo, a Associação dos Cegos, completa quatro anos neste mês de agosto. Quando a ação foi iniciada, seu objetivo era diagnosticar possíveis irregularidades no setor contábil e sanar dificuldades administrativas, enquanto a gestão anterior era investigada. Muita coisa mudou desde então, das dependências físicas ao número de atendimentos. Sob a administração judicial, novos serviços foram disponibilizados para a população e, embora a fundação ainda enfrente dívidas, o novo arranjo está estabelecendo uma estrutura mais organizada para quem for assumir a fundação no período pós-intervenção.
As reformas e as mudanças na estrutura física são as mudanças mais perceptíveis. O internato, por exemplo, que ficava no último andar, foi para o andar de baixo. No lugar onde estava, uma reforma deu condições para que fossem ampliadas as atividades de reabilitação visual. De acordo com a assistente social e coordenadora do setor, Maria Rachel Miranda, com a intervenção, os atendimentos voltaram a acontecer paulatinamente, uma vez que estavam quase interrompidos. Eles eram feitos um a um, de acordo com a demanda de quem chegava à instituição. Agora, o serviço segue um cronograma pré-estabelecido, conforme o planejamento da entidade.
O administrador judicial Luiz Eduardo Colares frisa que, além da falta de serviços, a casa estava sem estrutura, sem credibilidade com os fornecedores e outros inúmeros problemas. Em um primeiro momento, a preocupação era sanar essas pendências. “A situação da associação hoje ainda não é confortável. Temos um passivo que foi renegociado. Estamos pagando, mas a realidade já é outra. Quando a intervenção começou, tínhamos quatro médicos trabalhando, agora temos 22. Conseguimos recuperar a confiança dos fornecedores e da população.” Além disso, a procura da região também aumentou. “Conseguimos estabilizar a casa e começar a trilhar um caminho de melhora; queremos ampliar (o atendimento)”, pontua Colares.
Rachel conta que, atualmente, só pelos cursos de reabilitação visual, passam cem pessoas diariamente. São oferecidas aulas de Braille, artesanato, música, golbol, educação física, informática específica para pessoas com deficiência visual e baixa visão, além de atividades de orientação e mobilidade. Há também rodas de conversa, onde os atendidos podem passar por um processo de fala e de escuta. “Ensinamos de tudo, de organizar armários a fazer limpeza. Mas eles demonstram muito interesse pela culinária, por isso, ensinamos técnicas de corte, pratos fáceis. Eles mesmos preparam o alimento que vão consumir. Temos o artesanato que ajuda a trabalhar o cognitivo, a orientação e a mobilidade, que dá autonomia nas ruas.” Segundo a coordenadora, cada aula visa a dar mais qualidade de vida e aumentar a independência do indivíduo.
Além dessa linha de trabalho, há outra que não fica aparente, que é de mudar a mentalidade da população a respeito da pessoa com deficiência visual ou baixa visão. “Ainda temos o desafio de acabar com essa cultura de que a associação funciona como um depósito de cegos. No passado, talvez isso tenha funcionado, porque era o recurso que havia. Não criticamos o que foi feito no passado, os contextos são muito diferentes. Estamos batalhando para transformar esse espaço em um local para reabilitação e real inclusão.”
De acordo com Colares, na clínica oftalmológica da Associação dos Cegos são feitas de 350 a 400 consultas diárias. São realizadas entre 150 e 170 cirurgias por mês e até 70 pessoas são atendidas diariamente no Centro de Referência de Glaucoma, onde são distribuídos mais de mil colírios mensalmente. A instituição continua recebendo doações da população. Seja pela conta de energia, ou via mensageiro, que passa nas residências recolhendo a contribuição. Quem tiver interesse em contribuir pode verificar os canais de contato por meio do site da instituição: acegosjf.com.br.
Prazo para fim da intervenção
De acordo com o promotor Juvenal Martins Folly, da 13ª Promotoria de Ordem Econômica e Tributária, Consumidor, Conflitos Agrários, Apoio Comunitário, Fundações e Terceiro Setor, o encerramento da intervenção deve ser requerido à 8ª Vara Cível até o fim deste ano ou no próximo. Juvenal afirmou que foram descobertas várias irregularidades na antiga administração, que culminaram no ajuizamento de uma denúncia crimina que ainda tramita na 3ª Vara Criminal. Ainda de acordo com o promotor, a folha de pagamento da fundação está em dia.
Ele destaca os esforços da equipe que está engajada na melhoria da qualidade do atendimento e reforça que apesar de o passivo deixado pela administração anterior ainda consumir boa parte da renda, os compromissos estão sendo cumpridos. “Importante que sejam divulgados os relevantes serviços prestados pela fundação.”
Despir preconceitos
Um acidente de carro fez com que Valéria Pilate, que hoje frequenta a Associação dos Cegos, começasse a ter problemas com a visão. Ela chegou a ser submetida a cirurgia e até a um transplante de córnea, com a qual conviveu por 13 anos. Depois desse tempo, segundo ela, o corpo rejeitou a córnea. A situação foi piorando com o tempo e ela precisou passar por outros procedimentos. Quando o problema se agravou ainda mais, o médico que a acompanha indicou a Associação dos Cegos. Mas ela foi resistente à ideia. “Eu não quis ir, porque tinha certeza absoluta de que melhoraria. Acho o nome ‘Associação os Cegos’ muito pesado, de certa forma, ainda estou na fase de aceitação, então, pensar em coisas como andar de bengala, eram muito difíceis para mim.” Ela ainda foi atrás de outros tratamentos, em outras cidades, mas eles não seriam suficientes para solucionar o problema.
Enfrentando a depressão e até mesmo a resistência de familiares, Valéria deu o primeiro passo e veio conhecer a estrutura da associação. Ela vive no município de Chácara e vem a Juiz de Fora para participar dos cursos há quase um ano. Na primeira vez em que esteve na entidade, ela foi deixada sozinha e se sentiu muito perdida. “Alguém percebeu que eu não estava bem, foi muito legal e me acolheu. Fui me acalmando. Depois participei de uma roda de conversas e me senti muito melhor”. O preconceito, para Valéria, foi dando lugar a outros sentimentos. “Achei que as pessoas não fossem ativas, mas o que vi aqui foi gente cheia de vida. Entrei pensando que não voltaria nunca mais. Agora, os meus dias da semana favoritos são os que eu venho na associação. Estou trabalhando minhas questões aos poucos, quero fazer a diferença. Não quero ser mais uma. Não quero ter que ficar em casa ouvindo televisão, quero ser independente.”
Assim como Valéria, muitas pessoas encaram a deficiência visual e a baixa visão como algo incapacitante. Algo que, na opinião de Colares, é a maior barreira que deve ser quebrada. “A ideia de que uma pessoa cega vai ter mais dificuldade atrapalha a inclusão, porque as pessoas pensam que ela não vai conseguir. Sabendo que pelo menos 80% da vida está baseado na visão é até compreensível que se pense dessa forma. Mas as pessoas cegas não perderam a audição, o tato, o olfato. Os outros sentidos ajudam a compensar. As pessoas têm medo de dar asas a eles, com medo de que eles se machuquem, então a tendência é de que elas superprotejam cegos e quem tem baixa visão. Mas estamos trabalhando para mudar isso.”
Inclusão pelo trabalho
Outro entrave no qual a equipe da Associação dos Cegos esbarra é o mercado de trabalho. Antes da intervenção, de acordo com Maria Rachel Miranda, havia programas específicos para a inserção no mercado de trabalho. Há, por lei, uma cota para pessoas com deficiência visual. As empresas pediam indicações de pessoas, mas depois não as aceitavam. A situação foi encaminhada para o Ministério Público, porque, em três anos, apenas cinco pessoas conseguiram ocupar cargos por esse sistema. A dificuldade tem uma profundidade maior.
“Começa na infância. Percebemos que a escolaridade dessas pessoas é baixa, não há professor de apoio, e as escolas se esforçam para se adequar. Mas precisávamos de uma solução. Então o que pensamos foi inseri-los nas empresas como aprendizes.” Quando as empresas aceitam aprendiz, ele ganha meio salário mínimo e aprende a profissão, por meio de uma parceria com uma ONG, o “Aprender para ser”. Resolvido o impasse da capacitação, agora o que falta são empresas interessadas. “Além de ser vantajoso para a empresa, contribui muito para melhorar a depressão, para tornar a pessoa com deficiência visual mais independente. Em alguns casos, até o relacionamento dessas pessoas com suas famílias melhora.”
‘Um ouvido na conversa, outro no caminho’
Natural de Três Rios, no Rio de Janeiro, Mariza Machado Paes frequenta a Associação dos Cegos há 38 anos. Foi buscando outra vida, que não fosse restrita às paredes de casa, que ela veio para a cidade. Primeiro, para passar os dias na casa de familiares. Mas desde que foi à instituição, apenas para conhecer, não teve como romper o vínculo. “‘Peguei’ a associação quando irmãs de caridade ainda trabalhavam nela. Eu tinha 26 anos na época. Foi difícil no início, porque minha mãe continuou morando em Três Rios. Ela só se mudou para cá no ano seguinte. Precisei me afastar por alguns períodos, como quando minha avó ficou doente e quando minha mãe também adoeceu e faleceu, em 2015. Desde então, voltei a frequentar direito.” Nas fases mais difíceis, relembra, as pessoas rezavam em grupo para que a Fundação não fechasse as portas.
Agora, segundo Mariza, a realidade é bem diferente. “Temos muito mais cursos. Antes só tinha o Braille, artesanato, orientação e mobilidade. Agora tem várias coisas. A associação é minha segunda família, sem ela, acho que não vivo. Já fiz de tudo um aqui: corrida, arremesso de peso, dardo e disco. Tenho muitas medalhas em casa. Participo de tudo o que posso. Todos os cursos. Mudou de zero para cem.” A rotina de Mariza é apertada. Aos 64 anos, ela vai para a hemodiálise, faz hidroginástica, faz sua própria comida, participa dos cursos da associação e quando precisa, altera o tom de voz. “Quando vejo que algo não está certo, eu grito. Se fico muito tempo aguardando e ninguém me ajuda a atravessar, eu grito. Muita gente passa, esbarra em mim e não me ajuda. Não posso ficar esperando o dia todo. Também é importante que as pessoas fiquem atentas. É um ouvido na conversa, outro no caminho. Já teve gente que me levou para o lugar errado. Só de trocar o piso sabemos que estamos em outro lugar. Quem ajuda precisa aprender a usar ouvidos, tato, tudo ao mesmo tempo”, recomenda.
Recomeços
A equipe da Fundação João Theodósio Araújo se prepara para realizar sua primeira festa junina. Ela acontece no dia 13 de julho, das 14h às 22h, na sede, que fica na Avenida dos Andradas 455, Centro. A entrada é um litro de leite integral. A festa vai contar com barracas com comidas típicas, música ao vivo; e os assistidos estão se preparando para dançar quadrilha. A instituição completa 80 anos em outubro e se prepara para outras comemorações. O período de intervenção se aproxima de seu encerramento, diz o administrador judicial Luiz Eduardo Colares. Ainda não há um prazo final, mas enquanto isso, o estatuto da entidade foi refeito. Falta nomear os conselhos fiscais e o curador, além de eleger um novo presidente. “A intervenção foi muito válida. O próximo presidente vai ter muito mais condições de dar continuidade ao trabalho do que se ela não tivesse ocorrido. Esperamos vê-la cada vez melhor”, projeta Colares.
Mariza Paes buscou a vida além das paredes de sua casa ao procurar a associação há 38 anos
Instituição oferece oficinas de artesanato. Os produtos artesanais ajudam os atendidos a desenvolveram habilidades cognitivas