Desafio no atendimento aos pacientes mentais


Por DANIELA ARBEX

07/05/2016 às 07h00

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O fechamento dos sete hospitais psiquiátricos de Juiz de Fora – uma conquista na luta histórica pela humanização do atendimento a pessoas com doenças mentais no Brasil – impõe agora um novo desafio para a saúde mental no município: impedir a desassistência dessa população. Com uma Rede de Atenção Psicossocial (Raps) ainda em consolidação, a cidade dispõe de boa parte dos serviços previstos pela Política Nacional de Saúde Mental (ver quadro), mas enfrenta alguns gargalos como a deficiência de alas específicas para internação de crianças e adolescentes, a falta de três Centros de Atenção Psicossocial (Caps) na Zona Norte e a existência de apenas uma porta de entrada para a urgência psiquiátrica, localizada no HPS. E, apesar de dispor de 41 leitos credenciados em hospitais gerais para o atendimento das crises e da dependência química, além de outros 16 leitos considerados de retaguarda, a questão do acesso ainda divide especialistas.

Para o professor da residência de psiquiatria da UFJF, o médico César Mello, os Caps existentes na cidade não dão conta de todos os casos, principalmente os que demandam a necessidade de internação. “Eu trabalho no Caps. Acho uma equipe fantástica, um trabalho maravilhoso, só que existem quadros graves que necessitam da internação. Como psiquiatra infantil que sou, já acho difícil internar adulto em Juiz de Fora, que dirá crianças e adolescentes com transtornos mentais. No consultório, posso internar o paciente que tem plano de saúde em uma clínica particular de Juiz de Fora, mas para paciente do SUS não tem clínica. Experimente ligar para o Samu para vir atender pacientes com transtornos mentais na rua, vamos ver se eles vêm. Não vêm. Há uma completa desassistência”, critica.

A chefe do Departamento de Saúde Mental, Andréia Stenner, contesta a afirmação do médico e diz que a Rede de Atenção Psicossocial não acabou com a internação. “A gente utiliza, sim, o recurso do leito, mas dentro de um plano terapêutico para aquela pessoa. Todas as pessoas com recomendação clínica vão ser indicadas para a internação se as equipes médica e multiprofissional decidirem pelo internamento. Além disso, grupos de trabalho vêm atuando na melhoria da capacidade de interlocução com a rede de assistência no momento da crise do paciente. A ideia é que a gente consiga que todas as unidades da urgência e emergência atendam a saúde mental e não só o HPS. Estamos procurando afinar as ações conjuntas do Samu com a saúde mental, por meio da capacitação dos médicos do Samu, porque o acionamento da PM só deve ser feito quando há risco”, explica Andréia.

Ainda segundo a chefe do Departamento de Saúde Mental, de janeiro até agora, foram registrados apenas três pedidos de internações compulsórias na cidade. “Isso mostra que alguma coisa está dando certo. Não tem ninguém desassistido em Juiz de Fora. Até os casos mais emblemáticos estão sendo trabalhados. Os fluxos estão sendo criados e todo trabalho técnico de concretude dessa rede está sendo construído”, afirma.

O coordenador regional das promotorias de Saúde, Rodrigo Barros, reconhece a deficiência de acesso em função de serviços ainda não implantados, no entanto, defende os avanços alcançados na cidade. “Juiz de Fora teve grandes avanços na questão da saúde mental e ainda tem um facilitador que é a contratualização com o Hospital Ana Nery. Mas existe uma demanda causada pelo não acesso de alguns pacientes. No Hospital João Penido, a previsão era de 25 leitos para atendimento psiquiátrico, mas só nove estão disponíveis. O sistema ideal ainda não funciona, e a região Norte está descoberta pela ausência de um Caps III, de um Caps Álcool e Drogas, de um Caps Infantojuvenil, que já estavam pactuados na rede desde 2012, porém, sem a efetiva implantação. Além disso, desde dezembro de 2014, foi locado pelo Município imóvel para implantação do Caps Leste III, mas a mudança ainda não ocorreu, o que demonstra a dificuldade de disponibilização efetiva dos serviços que foram pactuados. A assistência aos usuários de Juiz de Fora também é prejudicada pela dificuldade de municípios vizinhos implantarem os respectivos serviços substitutivos, sobrecarregando a rede e, muitas vezes, a própria porta de urgência psiquiátrica no HPS.”

Para o médico de referência da Zona Norte, o psiquiatra e vereador José Laerte, a cidade precisa continuar a multiplicar as oportunidades de tratamento ambulatorial, já que nem sempre a internação resolverá o problema, principalmente na questão da dependência química. “A internação não é o único tratamento. Em alguns casos, ela é necessária, mas por períodos curtos para a desintoxicação, por exemplo, no caso das drogas. No entanto, ela só se justifica se houver um programa que prepare o sujeito para dar continuidade ao tratamento no ambulatório, a fim de evitar o fenômeno conhecido na literatura como revolving door – porta giratória -, quando há a constante reinternação do paciente. A dependência química é um problema tão complexo que, mesmo nos melhores serviços, o percentual de abstinência fica entre 40% e 60%. Entendo a angústia das famílias, mas não podemos ter hospitais para aliviar a tensão dos familiares em relação ao usuário. Por isso, os serviços da rede devem acolher a família também.”

Vizinhos reclamam de residências

A extinção dos leitos de baixa qualidade e o fim do modelo manicomial, que isola e segrega o paciente com doença mental, tem enfrentado resistência de muitas alas e também entre a população em geral. Atualmente, 274 pessoas estão vivendo em serviços residenciais terapêuticos na cidade, um modelo que privilegia a retomada de vínculos sociais e afetivos, mas que necessita da mudança de cultura da sociedade. Em Juiz de Fora, alguns moradores de bairros que assistiram o nascimento desses serviços fizeram abaixo-assinado para tentar impedir a implantação dessas casas na sua área. A justificativa é o incômodo causado pela proximidade de ex-pacientes de hospitais psiquiátricos que foram fechados justamente pela falta de qualidade no atendimento oferecido. “Não se trata apenas de fechar o hospital psiquiátrico, mas de construir uma prática de cuidados que não reproduza o modelo asilar. As pessoas precisam de tempo para entender isso”, reconhece a chefe do Departamento de Saúde Mental, Andréia Stenner.

Em entrevista publicada no site da Associação Brasileira de Psiquiatria, o presidente da entidade, Antônio Geraldo da Silva, afirma que o modelo de saúde mental implantado no país há 20 anos é “contrário aos psiquiatras, à medicina e aos pacientes”. Segundo ele, faltam leitos, atendimentos ambulatoriais com psiquiatria, medicamentos em quantidade e qualidade. “Hoje quem tem condições financeiras consegue um bom atendimento, mas quem não tem recursos está fadado ao inferno. Na psiquiatria, o Brasil vive dois extremos: a iniciativa privada comum dos melhores sistemas, comparado ao europeu ou americano; e o sistema público, desumano, como o africano. É o fim desse abismo social que defendemos.”

O diretor clínico do Departamento de Saúde Mental de Juiz de Fora, o psiquiatra Renato Lobo, vê a questão de forma diferente. Segundo ele, os próprios psiquiatras se colocaram fora da discussão que resultou na criação do modelo centrado na humanização do atendimento. “Na medida que a orientação deixa de ser hospitalocêntrica e os dispositivos extra-hospitalares e de base territorial passam a ser priorizados, a grande maioria dos médicos não acompanha essas mudanças e se afasta da reforma psiquiátrica. A reforma, no entanto, jamais vai dispensar a importância do ato médico, mas existe ainda uma dificuldade da classe médica de compartilhar o poder da assistência. Isso faz com que ele se sinta fora do contexto assistencial. Na medida em que ele se abre e compartilha, ele não só é bem-vindo, como indispensável. A questão é ele se situar em um novo lugar”, explica.

Para o psiquiatra José Laerte, os médicos não são ouvidos onde eles não participam. “Nunca tive dificuldades em relação a isso. O que as pessoas precisam entender é que o hospital brutaliza a assistência, porque sempre há violação de direitos, e a gente passa a ver nelas uma coisa normal.”

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