Quem paga a conta da violĂȘncia?
O que acontece depois do tiro? Para discutir os efeitos da violĂȘncia crescente que afeta atĂ© quem nĂŁo estĂĄ envolvido nela, como a famĂlia da comerciante Elizane Aparecida Moreira, 36 anos, baleada hĂĄ oito dias dentro da sua pizzaria no Bairro Manoel HonĂłrio durante uma briga de adolescentes de gangues rivais, a Tribuna mergulhou fundo no universo dos assassinatos ocorridos este ano na cidade e descobriu que, para cada pessoa morta por arma de fogo ou faca, hĂĄ pelo menos trĂȘs feridos que ficaram incapacitados de maneira permanente. Por trĂĄs da violĂȘncia letal que fez atĂ© agora 129 vĂtimas no municĂpio em 2016, existe um mundo paralelo de drogas e um exĂ©rcito de sobreviventes – jovens do sexo masculino na sua imensa maioria -, que vai ter que enfrentar a existĂȘncia sobre um novo Ăąngulo: o da cadeira de rodas ou o da cama de um hospital. Se vocĂȘ ainda pensa que nĂŁo tem nada a ver com isso, pode se surpreender. AlĂ©m dos custos sociais e humanos dessa guerra urbana que nĂŁo se consegue conter, hĂĄ o impacto financeiro da violĂȘncia que levou 317 feridos por perfuraçÔes de tiro ou faca para o HPS entre 1Âș de janeiro e 17 de outubro. Se forem consideradas as vĂtimas de agressĂ”es provocadas pelo uso de pau, pedra, tijolo ou capacete de motocicleta, os nĂșmeros somam mais 1.344 pessoas atendidas na urgĂȘncia e emergĂȘncia do pronto socorro em dez meses. Na prĂĄtica, a conta da matança estĂĄ sendo paga por cada juiz-forano.
Em mĂ©dia, a internação de uma pessoa baleada dura cerca de um mĂȘs e custa em torno de R$ 30 mil aos cofres pĂșblicos. Se sobreviverem ao tiro, muitas vĂtimas acumulam sequelas permanentes, sendo a paraplegia a principal, alĂ©m de amputação de membros e problemas neurolĂłgicos graves. Os jovens afetados acabam sendo aposentados. AlĂ©m do benefĂcio pago pelo INSS, eles ficarĂŁo dependentes de insumos, como fraldas ou sondas, e passarĂŁo por reinternaçÔes em função de infecçÔes ou problemas respiratĂłrios.
Simone Mathiase, diretora do HPS, conhece de perto as consequĂȘncias da violĂȘncia alimentada por uma vingança que parece nĂŁo ter fim. “A gente atende vĂĄrios tipos de violĂȘncia. Recebemos pacientes de todas as formas, porĂ©m o que mais nos choca nĂŁo sĂŁo os trazidos pelo Samu, mas os que chegam por meios prĂłprios. Os que vĂȘm com o Samu jĂĄ chegam estabilizados, entubados, com uma sala de urgĂȘncia e um centro cirĂșrgico preparados. Quando a famĂlia Ă© quem traz, o paciente Ă© manipulado de forma equivocada por amigos e parentes naquela Ăąnsia de o salvar, fazendo com que perca a chance de ter um primeiro atendimento que poderia evitar sequela posterior. Essa Ă© apenas uma parte do problema. Como a maioria tem baixo poder aquisitivo, a famĂlia passa a ter despesas que nĂŁo tinha. JĂĄ tivemos casos de familiares que vinham a pĂ© do Grama nos horĂĄrios de visita. AlĂ©m disso, quando os pacientes vĂŁo para casa, nĂŁo tĂȘm um ambiente favorĂĄvel e acabam retornando com infecção ou escaras. SĂŁo pessoas que demandam um cuidado intenso e nem sempre possuem alguĂ©m que possa ficar com eles para dar assistĂȘncia.”
Entrevado aos 31
Ă o caso de Roberto, 36 anos, que hĂĄ quatro tem uma bala alojada na coluna. Desde que ficou paraplĂ©gico, em 12 de outubro de 2012, nĂŁo tem um cuidador 24 horas para auxiliĂĄ-lo. Morando sozinho em um barraco prĂłximo Ă casa do irmĂŁo, no Bairro Esplanada, ele conta com a ajuda do familiar para banho e apoio dos profissionais do Departamento de Internação Domiciliar do municĂpio. PorĂ©m, na maior parte do tempo, precisa se virar, uma realidade dura para quem depende da cadeira de rodas e de uma bolsa para coletar a urina, jĂĄ que nĂŁo possui controle do esfincter uretral.
O drama de Roberto, no entanto, começou bem antes dos trĂȘs tiros que tomou. Tinha menos de 10 anos quando o pai foi embora de casa. Com a mĂŁe doente, ele e o irmĂŁo tiveram que se criar. Foi nessa Ă©poca que Roberto abandonou a escola na segunda sĂ©rie do ensino fundamental. NĂŁo demorou muito para ser adotado pela rua. “A gente nĂŁo tinha merenda para levar para a escola. FazĂamos o arroz e nĂŁo colocĂĄvamos ĂĄgua. SĂł torrava e comia com cafĂ©, fubĂĄ suado. Tinha dias de a gente pegar comida no quartel para nĂŁo passar fome. Conheci o mundo muito cedo. Comecei a fumar maconha aos 10 anos e, aos 17, a usar crack. Para manter meu vĂcio, eu roubava, traficava e me prostituĂa”, revela Roberto que, mesmo sem ser homossexual, fazia programas com homens. “O dinheiro mandava. Falava que dava R$ 10, R$ 20 para usar uma droga, nĂŁo pensava duas vezes. Muitas vezes, eu nĂŁo usava camisinha.”
Aos 31, Roberto vendeu a TV por R$ 70 para um adolescente que traficava no bairro. Quando a ex-mulher deu falta da televisĂŁo, levou a polĂcia na casa do fornecedor de drogas. “Ele teve que devolver a TV e me cobrou o dinheiro da droga. Eu sĂł tinha R$ 30. Faltavam R$ 40, mas ele nĂŁo esperou. Me deu dois tiros, recarregou a arma e atirou de novo. Quando o mĂ©dico disse que eu nĂŁo ia mais andar, chorei. De lĂĄ para cĂĄ, entrei vĂĄrias vezes em um quadro de septicemia, por causa de sonda, e amputei parte do fĂȘmur.”
Apesar de toda a dor, Roberto diz que hoje se sente inteiro e feliz. “Agradeço a Deus por estar vivo. Por ver meus filhos crescerem.”
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