“Gênero é uma construção”
Coordenadora do Grupo de Ação e Formação – Múltiplas Sexualidades Sociedade-Educação, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), a pesquisadora Ana Cristina Nascimento Givigi é especialista em gênero. O termo que gerou um amplo debate em torno da constituição de políticas públicas para a mulher nas últimas semanas, ainda pode se configurar um tabu para muitos. Com base neste cenário, Ana Cristina explica, em entrevista à Tribuna, como o conceito está ligado à garantia de direitos e quais são os prinicipais conflitos que o envolvem. Além disso, nega que gênero esteja atrelada a práticas consideradas por alguns segmentos, como a promiscuidade e até mesmo à pedofilia.
Tribuna -O que é gênero? Como esse discussão é fundamental para garantir direitos?
Ana Cristina Nascimento Givigi – O gênero é uma construção. Antes mesmo de nós nascermos, os objetos, os materiais, os comportamentos, os hábitos, as cores, os brinquedos, os sentimentos – para falar de algumas coisas – são reiterados, repetidos, treinados para que o corpo tenha um repertório que designe uma sexualidade e um gênero. Tanto é uma construção que ensinamos as pessoas a sentar, a se vestir, a sentir, a usar brinquedos e roupas x ou y, e isto as faz serem conhecidas como meninos ou meninas. Então, dizemos que o gênero é uma forma de reconhecimento político, somos reconhecidos no mundo por um corpo genereificado. Contudo, muitos não se constituem de repertórios tão rígidos e binariamente divididos, o que enseja que há várias formas de femininos e de masculinos. O caso é que aqueles (as) que fogem às rígidas normas de gênero, aquelas aceitáveis como humanas ou reconhecidas pela inteligibilidade direta que as constitui, têm tido menos alcance aos direitos. São tratados (as) como cidadãos (as) de segunda classe. Cumprem deveres, mas não fazem jus aos direitos disponíveis aos humanos, o que significa que o Estado promove seres mais e outros menos humanos, por serem menos dignos de direitos, por causa de suas diferenças. Neste caso, a diferença é punida. Assim, entender que o gênero é uma construção é fundamental para garantir direitos, porque perceberemos os artifícios deste processo e entenderemos que há um direito maior: de constituir-se como sujeito político a partir de parâmetros sociais igualitários.
– Quais os tipos de conflitos mais comuns em torno deste conceito? Por que ele evoca a polêmica no âmbito da discussão de políticas públicas?
– Penso que as pessoas voltadas a um fim político específico advogam que o gênero seria algo como que uma natureza, negando a formação social, estética e política do humano. Esquecem que só existe humanidade a partir da cultura. Estas pessoas e ou grupos privatizam a função do Estado e o entende como representante de ações, desejos privados (as). Então, esvaziam o conceito de gênero de sua inventividade social e de seu sentido construtivo. Mais ainda que o conceito de gênero, o de sexualidade desperta polêmicas, porque se espera que sexo-gênero-sexualidade sigam uma linha de expectativas que não condizem com as experiências sociais como um todo. Temos experiências diversas sobre a vivência dos gêneros e das sexualidades, e isto é um desafio para as políticas públicas, porque desafia as metodologias de controle das identidades, das estatísticas, dentre outros. Entendo que é um desafio produzir políticas para as diversas formas de vida exatamente porque nos orientamos politicamente pelo sujeito político homogêneo e não pela diferença. Veja como é difícil ter políticas de saúde especificas para mulheres sem vagina, homens sem pênis, mulheres castas, etc. Contudo, os direitos existem exatamente para garantir a vida da diferença; esta é a origem da democracia e da produção de direitos: entender que a fundamentação da política é o acordo-desacordo da vida e que as relações e políticas públicas sucedem a vida e não a precedem.
– Para alguns segmentos, a garantia de respeito à igualdade de gênero significa “a imposição da sexualidade e da promiscuidade”.
-Não sei de que forma se pode pensar que o Estado tenha o controle da promiscuidade, aliás penso que o Estado nada tenha a ver com as práticas e associações sexuais das pessoas, a não ser que elas provoquem riscos quantitativos à vida, como foi o caso da AIDS que, de nenhuma forma está ligada a uma orientação sexual em específico. O que não quer dizer que o Estado possa mapear sua vida sexual e impedir o seu exercício; antes disso deve garantir educação e prevenção somente. Não parece óbvio que o Estado deve assegurar a proteção às mulheres no caso de serem violadas? Não parece óbvio que um casal de pessoas do mesmo sexo, que cumpre as leis, façam jus aos direitos? Não parece justo que uma pessoa decida sobre uma cirurgia em seu próprio corpo, mesmo se ela evocar a mudança de sexo? Não entendo como isso pode ser associado à promiscuidade, senão pela defesa de uma posição moral, como se esta fosse a certa, fosse a de todos e como se o Estado devesse ter uma moral. O Estado deve decidir sobre as associações livres das pessoas; sobre sua religião, sobre suas roupas, sobre seus gostos? Então porque o Estado poderia decidir sobre a orientação ou comportamento sexual, senão por conta de um arbítrio ilegal e invasivo de uma posição única que não precisa ser a de todos?
– Como é o trabalho que desenvolvem sobre as múltiplas sexualidades?
– Dizer que há múltiplas sexualidades é olhar o mundo. No mundo, há variadas vivências do desejo e várias formas de associação baseadas no amor, no desejo e nas experiências do corpo. É um direito inalienável. Quem pode ser proibido de ser o que é e ou de desenvolver um sentido próprio para sua vida? Então, esta discussão liga-se à liberdade política e arriscar ascendência do Estado ou da moral de um grupo sobre isso é uma ofensa ao exercício da política. Nosso trabalho procura cartografar as experiências humanas com o desejo, com o gênero e a sexualidade e entender como as normas pertencentes ao gênero se movem no mundo contemporâneo (embora sempre tenha se movido!) e a partir daí propor políticas. Entendemos que os repertórios de gênero sempre foram mistos e que as definições do que seja um homem ou uma mulher são móveis. Os humanos sempre afrontaram estas definições binárias, isto não acontece só hoje. Desde séculos antes da modernidade, ‘mulheres’ desafiavam aquilo que era entendido sobre o que as mulheres podiam fazer, crianças e jovens da mesma forma. É por isto, inclusive, por estes desafios ao que seja um homem ou uma mulher, que negros (as) votam, que mulheres podem trabalhar fora ou violadores (as) de crianças podem ser criminalizados (as). O que quer que seja definição de ser homem ou mulher sempre esteve à deriva. Isto parece ser mais grave hoje porque as práticas de desafio são mais visíveis e estão provocando o gênero e multiplicando as faces e estéticas do mundo. É isso que irrita a um Estado não laico: o que estava nos porões do mundo agora quer andar nas ruas! Deve ser irritante mesmo ver que nunca houve a homogeneidade que foi base de tantas crenças e políticas, eu entendo.
– A discussão sobre gênero, classificada como “ideologia de gênero” pode incentivar práticas de pedofilia e incesto?
– Somente por força de muita inventividade. Aliás, fico admirada com o exercício criativo cruel de certos grupos que conseguem fazer as associações mais esdrúxulas do mundo e, por força da propaganda, transformá-las em pensamento corrente. Isto só prova a inventividade. A moral é uma invenção magnífica e tão humana quanto falível. O que faz falir a moral é a vida vivida e não a imaginada. Como pensar que os direitos aos gêneros ou o fim dos gêneros pode gerar pedofilia, incesto, zoofilia? Que tipo de associação é esta? Construir gêneros difíceis de entender socialmente não se relaciona aos nomes dados às práticas classificadas por um tipo de sociedade como criminosas. Quero dizer que pedofilia, incesto, dentre outras, são práticas humanas que são rejeitadas por contratos sociais, mas são práticas humanas, não se associam à defesa de vida aos gêneros. São coisas distintas. O que reivindicamos são os direitos ao livre exercício da sexualidade e do gênero, mas não como exceção e sim como direito à diferença, ou seja acesso às políticas de saúde e educação e segurança, das quais somos comumente excluídos. Os mesmos grupos que nos excluem não pestanejam em receber nosso dinheiro no comércio, nos bares, nas igrejas ou no Estado. Aí sim há uma exceção. O que uma sociedade entende como crime tem a ver com o acordo que se faz em torno das políticas que a rege, não é a liberdade de viver a vida que cria os crimes, são as repressões, as retenções, a contingência, dentre outros.