Do Morro da Boiada ao ‘Santo Fujão’: Antônio Carlos conta a história de JF a partir de sua pesquisa
Professor explica surgimento do município e destaca nomes que não devem ser esquecidos

Logo depois do aniversário de Juiz de Fora, em 31 de maio, mais um feriado é certo no calendário municipal: dia 13 de junho, que celebra o padroeiro da cidade, Santo Antônio. Enquanto professor na Escola Municipal Dante Jaime Brochado, o também historiador e pesquisador, Antônio Carlos Lemos Ferreira, teve contato, pela primeira vez, com a história de formação do bairro homônimo ao santo, bem como com suas lendas. Sua linha de estudo também é voltada para o Morro da Boiada – onde surge Juiz de Fora. A partir dessa visão, ele traz a perspectiva de que a cidade precisa “voltar um pouquinho no tempo e, de certa forma, pedir desculpas por duas questões que vêm de lá”.
“A primeira é o ocultamento da história, principalmente da lenda do Morro da Boiada. A segunda é a escravização que fez com que Juiz de Fora nascesse na margem direita do Rio Paraibuna, usando a vazante como referência”, explica. “Hoje há uma especulação imobiliária gigantesca, mas não adianta Juiz de Fora se expandir dessa forma, que não é crescimento.”
Para ele, o momento pede uma nova proposta para a cidade. “Agora, com a saída do bispo, deveríamos repactuar um novo acordo de que o Santo Antônio volte para o bairro homônimo e, de lá, a gente faça um novo pacto de crescimento para essa cidade. Ele acontece quando Juiz de Fora atravessa o rio e, com a mão de obra escravizada, consegue um acúmulo enorme de capitais – que gera a Manchester Mineira. Com o declínio dela, ficamos em um hiato. Na atual conjuntura política, penso que poderíamos fazer um repactuamento do imaginário da cidade.”
Antônio recebeu a Tribuna no seu box, voltado para a literatura, no Mercado Municipal. Lá, transformou a entrevista em uma verdadeira aula sobre a história pouco contada da cidade. De acordo com suas pesquisas, Juiz de Fora da época do Morro da Boiada era “extremamente rural, bastante calcada na mão de obra escravizada e muito voltada para as questões agrárias, principalmente à produção do café”. Além disso, era um caminho que transportava ouro. “As tropas subiam com mantimentos e desciam com essa mercadoria caríssima”, explica. “O Morro da Boiada é o polo sociogenético da fundação da cidade. É um sítio arqueológico que precisa ser recuperado, preservado, observado, cultivado e protegido.”
Santo Fujão
A pesquisa de Antônio aponta que o padroeiro da cidade está presente desde o Rio de Janeiro até Diamantina – influência maior do que a de qualquer outro santo no trajeto. “Ele chega a Juiz de Fora, até onde a gente pode documentar, através do fazendeiro Antônio Vidal.” A lenda do Santo Fujão é uma das mais contadas pelo professor. Apesar disso, seu semblante mostra que essa tarefa continua prazerosa. “É um santo de uma capelinha. Segundo o último cronista a que tive acesso, uma capelinha tosca, uma imagem muito simples que ficava onde hoje é o bairro Santo Antônio.”
“Quando a cidade atravessa o Rio e muda de lugar, a partir da variante do Caminho Novo, constrói-se uma junção onde os grandes fazendeiros da região constroem suas mansões e casarões em torno da via. Surge, então, uma nova capela, de 1847, que abriga uma devoção católica. Propõe-se que Santo Antônio fique no local. Assim, o buscam do outro lado do Rio. O Santo vem, é colocado aqui, mas volta para lá. Dizem que é um milagre. Provavelmente, o povo de lá leva esse Santo de volta. Ele torna a voltar através de uma procissão e há um processo de levá-lo para lá de novo. O Santo torna a voltar mais uma vez para a capelinha do Morro da Boiada. Ele vai outra vez e fica preso lá: já não pode mais voltar.”
O professor esclarece que o episódio não é novo em Juiz de Fora: é comum em todos os lugares do catolicismo no mundo. “Existem outros processos de santos fujões, mas o de Juiz de Fora é inédito por não ficar onde queria. Normalmente, fica onde quer, mas aqui, não. A elite juiz-forana falou mais alto e fez ele reverenciar a nascente de Santo Antônio do Paraibuna”, diz.
“Santo Antônio, conhecido, dentre muitas alcunhas, como ‘padroeiro dos pobres’, se sentiria orgulhoso vendo Juiz de Fora atualmente. É uma joia da história mineira.” O professor cita o trecho “Santo Antônio é milagreiro, mas é santo traidor; Santo Antônio amarra negro para levar para o seu senhor”. Apesar de popular, era também um santo da elite. “Só que, em Juiz de Fora, o povão não leva melhor, apenas a elite. A lenda deixou essa tensão registrada. É um presente que temos. Precisamos observar a lenda com mais carinho, porque é um texto de fundação sobre a sua origem da cidade. Como não é favorável à elite, acabou ocultado”, lamenta.

‘Literatura e História, quando verdadeiras, dão voz e vez aos ocultados’
É comum que a história mais lembrada seja aquela sob a perspectiva da elite. Contudo, ela não é a única. Antônio Carlos lembra de personagens importantes da cidade. “Temos, por exemplo, a família da dona Romana Vidal, que foi escravizada. Pelo que conta a família, ela recebeu um pedaço de terra no Santo Antônio, onde a casa ainda existe há mais de cem anos, e começou a criar a família Severino, que tem apelido de Pinicão. Essa é a origem do bairro. Foram eles que protegeram o lugar com a simplicidade deles. É uma família que precisava ser reverenciada”, enfatiza.
Também cita Lindolfo Gomes, que “encontra-se apagado”. “Um jornalista importantíssimo, fundador da Academia Mineira de Letras, poeta, escritor. Tem um peso enorme dentro da história e brigou muito para que a tensão da elite com a classe popular não fosse tão acirrada, ocultada e perversa como ela ainda tem sido.”
Segundo Antônio, a Literatura e a História, quando verdadeiras, dão voz e vez aos ocultados. “Existe a história contada, que está nos livros e conta a história dos vencedores, e existe a história dos vencidos. O meu trabalho é trabalhar com a história dos vencidos. A literatura tem um poder gigantesco nisso.”