Entre a vida e a morte deve haver esperança

O rio da nossa aldeia está pedindo socorro, mas também nos dando uma chance de reconciliação. Ignorar não é mais um caminho, pois há riscos para a segurança hídrica na cidade, no futuro.


Por Lucimar Brasil

19/11/2025 às 17h11- Atualizada 19/11/2025 às 17h17

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Investimentos no tratamento do esgoto e educação podem fazer o rio voltar a respirar na cidade.

Quase invisível para quem atravessa as pontes ao longo da Avenida Brasil, o rio Paraibuna segue o seu curso entre memórias, esquecimento e descuidos. Para quem o estuda de perto, o rio respira com dificuldade. As águas nascem puras na cidade de Antônio Carlos, na Serra da Mantiqueira, a pouco mais de 100 quilômetros de Juiz de Fora, chegam ainda com qualidade ao reservatório em Chapéu D’Uvas, mas quando atravessam a cidade são altamente impactadas pelo esgoto urbano.

“O Paraibuna ainda está na UTI”, define o professor Nathan Barros, coordenador do Laboratório de Ecologia Aquática da Faculdade de Biologia da UFJF. Ele acompanhou por quase uma década a saúde do rio em diferentes pontos e resume o que viu nesse tempo: “Lá na cabeceira, em Chapéu D’Uvas, a água é ótima, maravilhosa, em qualidade e volume. Já quando chega ao final do curso, o cenário muda completamente. E o que tem no meio é o esgoto da cidade de Juiz de Fora sendo despejado no rio”.

É fato que os dados coletados pelo laboratório mostram uma melhora recente, após a ampliação das estações de tratamento de esgoto no município. “Entre 2015 e 2022/23, observamos redução na carga orgânica e nos níveis de fósforo, um sinal direto de que o esgoto deixou de ser despejado em alguns trechos. Isso mostra que as políticas de saneamento começam a surtir efeito. Por isso, esse investimento não pode parar. Precisa ser ampliado”, explica Nathan.

No entanto, esse retrato positivo é, hoje, apenas uma fotografia antiga. O monitoramento da qualidade da água na jusante, o trecho do rio depois de atravessar a área urbana, foi interrompido pelo próprio Departamento, por questões técnicas e operacionais, há cerca de dois anos. A medição continua a ser feita por terceiros, mas os dados não são públicos por se tratar de contrato com empresa privada do setor de energia. A cidade de Juiz de Fora não mede a qualidade das águas do Paraibuna. A ausência de dados recentes preocupa. Sem medições conhecidas, fica difícil avaliar se houve ou está havendo algum avanço do saneamento e se as ações de preservação estão, de fato, contribuindo para a melhoria da saúde do Paraibuna.

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Professor Nathan Barros: “A forma como a gente interage com os recursos hídricos ainda é muito ruim em Juiz de Fora”.

Reservatório de Chapéu D’Uvas precisa de proteção

Na outra ponta, o cenário é outro. O reservatório de Chapéu D’Uvas, que está fora dos limites da cidade, de onde vem grande parte da água que abastece Juiz de Fora, ainda mantém uma qualidade considerada “excelente” pelos parâmetros brasileiros. “Lá, a universidade mantém uma fazenda experimental com 250 hectares, onde testamos métodos de reflorestamento e tecnologias ambientais. É um trabalho que busca devolver vida às margens e proteger o manancial”, explica Nathan. Na fazenda, funciona o Núcleo de Integração para Sustentabilidade Socioambiental (Niassa). As ações desenvolvidas destinam-se, sobretudo à recuperação de nascentes, ao cultivo da biodiversidade local e à restauração do bioma.

O professor faz, contudo, um alerta sobre a pressão urbana na região pela ocupação do solo, no entorno do reservatório, o que ameaça diretamente a segurança hídrica do município. “Estamos fazendo o caminho inverso ao que cidades como Nova York fizeram na década de 70, quando entenderam que proteger os mananciais era proteger o futuro. Eles isolaram esses mananciais, evitaram o uso e fizeram o reflorestamento, porque a floresta traz água de volta através da recarga hídrica”, explica.

O risco é conhecido uma vez que o desmatamento das margens e o uso irregular do solo favorecem a erosão e o assoreamento dos reservatórios. O fundo vai se enchendo de sedimentos, o que diminui a capacidade real de armazenamento. No papel, parece que há água de sobra, mas, na prática, o volume útil pode ser menor.  “A gente está no caminho inverso. No caminho absolutamente inverso, de degradação dos mananciais. Isso coloca a nossa segurança hídrica em risco. No futuro, se continuar assim, a gente não vai ter água”.

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Fazenda Experimental da UFJF, às margens da Represa de Chapéu D’Uvas, abriga o núcleo de estudos e pesquisas para preservação da biodiversidade. Foto: Felipe Couri

Um rio pressionado e resiliente

Além da poluição urbana, outra constatação surpreendente. O Paraibuna enfrenta a invasão de espécies exóticas. Segundo Nathan, o Departamento de Zoologia da UFJF  identificou, em coletas recentes, a presença de alevinos de tucunarés, espécie que não pertence à bacia e ameaça a biodiversidade local. “O tucunaré é um predador de topo e altera completamente a estrutura das espécies nativas. Provavelmente foi solto por pescadores. Pela presença de alevinos, já pode estar se reproduzindo”. O impacto silencioso é profundo pois cada interferência humana, seja despejo irregular, construção próxima à margem e uma espécie introduzida vai minando um pouco mais a capacidade do rio de se regenerar.

Desafio cultural e educação

Outro grande desafio para o Paraibuna é cultural. “A gente precisa aprender a olhar de novo para o rio.  Juiz de Fora, ao contrário de cidades europeias, cresceu de costas para o Paraibuna. Vemos o rio como fundo de quintal”.  Para ele, compreender o rio exige olhar não apenas para sua qualidade, mas para como nós, habitantes da cidade, interagimos, no sentido amplo, com a água, esse recurso vital.

“Lembra de 2014?”, questiona o professor, retomando o episódio que marcou a memória hídrica da cidade. Antes da crise, cada morador de Juiz de Fora consumia, em média, 180 litros de água por dia. Quando a seca apertou e os reservatórios baixaram, esse número caiu para cerca de 120 litros. Ainda assim, como ele destaca, tratava-se de um consumo alto. “Uma pessoa vive bem no Nordeste com 30 ou 40 litros por dia, e a OMS (Organização Mundial da Saúde) recomenda 70”.

O problema se revelou de forma ainda mais clara quando o sistema do Chapéu D’Uvas foi interligado ao de João Penido. Com o anúncio oficial da segurança hídrica restabelecida, Juiz de Fora respirou aliviada e abriu as torneiras. O consumo saltou para mais de 220 litros por habitante/dia, superando inclusive o período anterior à crise. “A forma como a gente interage com os recursos hídricos ainda é muito ruim em Juiz de Fora. Mas sou muito entusiasta da educação, não vejo outra forma. O caminho para mudar isso é a educação”, finaliza.

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