Do café à cachaça: negócio familiar se reinventa há 40 anos

Na segunda reportagem da série Tribuna por Minas, conheça a trajetória da Cachaçaria João Mendes que preserva tradição, mineiridade, memórias e história de família


Por Hugo Netto

19/10/2025 às 07h00

Primeiro a cor, depois o aroma e, só então, o sabor. É assim que quem realmente entende de cachaça sabe avaliar – e apreciar – a qualidade do produto. Por isso, João Geraldo Mendes confirma o dito de que, em casa de ferreiro, espeto é de pau: “Para a gente, é comum, já nos acostumamos com tudo. Na realidade, a gente quase nem bebe. Muito pouco”.

Ele explica que isso não interfere em saber se está oferecendo o melhor produto para os clientes: “Na hora que ela está caindo lá dentro da vasilha, no alambique, na hora em que ela está sendo destilada, só pelo rosário, a gente já conhece”. Rosário é o nome dado às bolhas de ar que a bebida forma quando é despejada em algum recipiente, ou quando se balança a garrafa, justamente por causa do formato. 

Na segunda reportagem da série Tribuna por Minas, a nossa equipe conta a trajetória da Cachaçaria João Mendes, na cidade mineira de Perdões, localizada a cerca de 300 quilômetros de Juiz de Fora. Da produção ao copo, o processo reserva tradição, memória e a história da família à frente do negócio há 40 anos.

 

Do café à cachaça: negócio familiar se reinventa há 40 anos
João Geraldo Mendes e Jéssica Marques Mendes (Foto: Pedro Moysés)

Jéssica Marques Mendes, de 34 anos, irmã de João, compara a capacidade de análise com a de uma outra manufatura símbolo de comunhão, ainda mais antiga. “O padeiro sabe que o pão está pronto pelo cheiro, pela cor, pelas características do pão. É a mesma coisa com a cachaça”. 

Os dois tocam, “com muito gosto”, o negócio que leva o nome do pai, fundador, há 16 anos. O filho, de 59 anos, brinca: “Meu pai é João, eu sou João, meu filho é João. A gente só sabe fazer cachaça e João”. O conceito de família e da cachaçaria se mistura tanto, que João Geraldo se lembra de um “excelente pai”, mas afirma: “Meu pai foi um sócio, um parceiro, meu amigo, meu herói. A coisa que ele menos foi, para mim, foi pai”.

Do café à cachaça: negócio familiar se reinventa há 40 anos
Os irmãos com o quadro do pai (Foto: Pedro Moysés)

Jéssica, que conviveu a infância toda dentro do alambique, tem várias memórias afetivas com a produção da bebida. “Semana passada mesmo, eu estava conversando com a Mariângela, que é responsável pela destilação. Eu entrei lá e estava bem quentinho. Aí eu contei para ela que, nesse período de frio, o nosso pai vinha para cá trabalhar à noite, às vezes. E atrás tinha um murinho com brita – eu brinco que era um ‘cochinho’. Então, eu me deitava lá, porque era bem quentinho. Ficava lá até ele me chamar para ir embora. Isso me dá muita saudade. Quando a gente entra na engarrafadora, nos depósitos de cachaça, eu já brinquei muito lá. Para mim, era muito alto, então eu escalava as prateleiras”.

O patriarca, antes, era produtor de café. Em um desses altos e baixos do grão, começou a produzir cachaça. “Ele já tinha um alambiquinho aqui na propriedade, pôs ele pra funcionar e nós fomos vendendo. Meu pai era bastante conhecido e fazia tudo muito bem feito. A cachaça caiu no gosto dos apreciadores e está aí, isso tem 40 anos”, conta João.

A propriedade fica às margens da Rodovia Fernão Dias, em Perdões, no Oeste de Minas, mas Seu João era conhecido em toda a região, Campo Belo, Santo Antônio, tudo pertinho, em um raio de cerca de 50 quilômetros.  “Coisa de cidade pequena, mesmo”. Tanto é que, quando João Geraldo assumiu o negócio – de onde vem todo o sustento da família –, tentou colocar outro nome, mas não pegou. “A cachaça já está consagrada. ‘Eles já definiu’, é a cachaça João Mendes, tem o nome próprio.”

Cachacaria-14Cachacaria-13Cachacaria-12Cachacaria-10Cachacaria-09Cachacaria-08Cachacaria-07Cachacaria-06Cachacaria-05Cachacaria-04Cachacaria-03Cachacaria-02Cachacaria-01
<
>
O banco de madeira em que João sempre se sentava é preservado, no mesmo lugar e vazio, como se o pai estivesse ali, sempre de olho. (Foto: Pedro Moysés)

História de Minas em forma de cachaça

Do café à cachaça: negócio familiar se reinventa há 40 anos
Até o banco de madeira em que ele sempre se sentava é preservado, no mesmo lugar e vazio, como se o chefe estivesse ali, sempre de olho. (Foto: Pedro Moysés)

Por tudo isso, o local é como se fosse um museu a céu aberto, com direito a placa “Praça João Mendes”. Até o banco de madeira em que ele sempre se sentava é preservado, no mesmo lugar e vazio, como se João estivesse ali, sempre de olho. Ele é quem produziu o “Jardim da Cachaça”, inclusive.

No local, há alambiques e engenhos de centenas de anos, tocados a cavalo e a roda d’água. O funcionamento das moendas é o mesmo de hoje, porém, com a tecnologia do motor elétrico.

“A gente trabalha o turismo rural. Contamos a história de Minas, só que em forma de cachaça, mantendo as tradições e toda essa cultura mineira”, diz João Geraldo. Há, ainda, pedras de moinho, grade de disco e arado que foram usados antigamente na empresa. Os mesmos procedimentos foram mantidos, contando também a história do pai, “um homem simples, com quarto ano de grupo, mas com uma visão incrível”.

“Ele brincava que era mais novo do que eu”, lembra o filho. “Ele dizia: ‘Você está velho, João’. Porque a cabeça dele era muito moderna”. Tanto que, quando a demanda começou a aumentar, o pai, preocupado com a qualidade e a melhoria do processo, procurou a Universidade Federal de Lavras, que desenvolveu um trabalho acadêmico, “adotando” a cachaçaria.

‘Não tem pedreiro, empresário, nem doutor’

No processo de fabricação, João Geraldo exalta o retorno que recebem das pessoas: “Aquela sinergia que rola é muito gostosa. Produzir cachaça é igual a música sertaneja. Na hora que se fala em beber cachaça, não tem o pedreiro, o empresário, o doutor. Na hora que está bebendo uma cachaça, está todo mundo nivelado. É por isso que vêm os causos”.

Ao subir do jardim para as dependências em que cada etapa é realizada, é fácil entender o que, antes, João explicava. O cheiro é arrebatador. O primeiro é o da cana picada e moída. Abelhas se juntam nela em uma grande quantidade. Segundo os trabalhadores, ainda era pouco. Tem épocas do ano em que os insetos até batem no rosto quando se anda por ali.

“A cana chega da lavoura já triturada, ou seja, desfibrada”, explica João. “Ela é desfibrada para poder passar na moenda, é mais fácil a prensagem dela. Ela vai por um primeiro terno, onde é prensada, retira-se um certo volume de caldo, depois sai e passa no segundo terno, onde tem a segunda prensagem”. Cada terno é um conjunto de três rolos de moenda.

“Depois que ela passa por esse processo, a cana vai para os filtros. Aqui tem três tipos de filtros. Porque a garapa que a gente também serve aqui não pode ter bagacilho, assim como para ir para a fermentação, também. Ela tem que ser pura, só o caldo, senão cria massa”, prossegue a explicação.

Depois que a cana é moída, o caldo é padronizado, e aí vai para a fermentação. Nessa parte, Jéssica é quem explica que o processo dura em torno de 20 a 24 horas: “Depois do processo de fermentação, ele vem para a destilação. Nós temos três etapas aqui. Os primeiros 10% nós chamamos de cabeça. Tem 80% do destilado que chamamos de coração, que é a parte norte do destilado, é o que nós usamos como cachaça. E tem os outros 10% que é a cauda. Então, cabeça e cauda são descartados”.

Na ocasião, eles estavam estreando dois alambiques, de cobre, como manda o Ministério da Agricultura e Pecuária e a própria tradição, mas com um processo novo de cápsulas, que funcionam como um radiador de carro. Quanto mais resfria a cachaça, mais puxa o aroma, deixando um cheiro doce, frutado no ambiente.

Do café à cachaça: negócio familiar se reinventa há 40 anos
Estreia dos alambiques de cobre. (Foto: Pedro Moysés)

‘Aqui tudo é velho’

Depois, vem a fermentação, que precisa ser natural. É o que dá a diferença entre o “sabor da rosca caseira e da rosca de padaria”. Outro processo que foi ampliado, mas mantendo as tradições.

Depois que a cachaça é feita, vai para a parte mais cara, que é o envelhecimento. Isso porque, quanto mais tempo passa, mais o álcool, volátil, se exala. Mas, nisso, a cachaça também cria corpo, pega as propriedades da madeira, perde a acidez e “fica ótima para beber”. Ela costuma ficar dois, três, quatro, ou oito anos envelhecendo, geralmente. O mínimo na Cachaçaria João Mendes é de um ano, e a mais antiga é de 12.

Do café à cachaça: negócio familiar se reinventa há 40 anos
(Foto: Pedro Moysés)

Além disso, a cachaça, agora, virou um “brandy”, explica João. Estão saindo os “blends”: pega-se a combinação de um pouco do líquido armazenado em uma madeira com um pouco da outra. No Brasil, o mais usado é o carvalho francês, porque as pessoas importaram muitos tonéis, que vêm com o malte, e dão um acabamento bacana na cachaça. Mas o jequitibá, por exemplo, é uma madeira nacional. Na João Mendes, “tudo é velho”. São tonéis de 30, 50 anos. “Não tem nada que haja jeito de induzir a parte de envelhecimento”.

Do café à cachaça: negócio familiar se reinventa há 40 anos
(Foto: Pedro Moysés)

Neste lugar, há mais de 500 tonéis, divididos em duas grandes salas, de diferentes tamanhos e tipos de madeira – de 200 a 30 mil litros, de bálsamo, amburana, carvalho francês, carvalho americano, jequitibá. Cada um com suas propriedades. O cheiro, que antes era da cana, depois adocicado, agora é o inebriante e típico da cachaça, que toma todo o ambiente. Em alguns locais, tem cachaça escorrendo até pelo chão. 

João retira tampas de alguns tonéis e aconselha a fechar o olho para cheirar o álcool que fica nelas, porque, quando se fecha o olho, o cérebro volta a sua atenção somente para aquilo.

Os depósitos são escuros e úmidos, há até morcegos voando por entre as prateleiras. E até isso tem um motivo. A cachaça, geralmente, era armazenada em porões. Como não há um na propriedade, fizeram uma simulação, debaixo de um barranco. A temperatura e a claridade precisam ser constantes para exalar menos álcool e para contribuir com o próprio processo de envelhecimento.

Dois mil litros por dia

Do café à cachaça: negócio familiar se reinventa há 40 anos
(Foto: Pedro Moysés)

A produção na cachaçaria é de 2 mil litros de cachaça por dia. Eles enviam para todo o Brasil e, há dois anos, exportam containers cheios para os Estados Unidos: “Quem bebe lá são os brasileiros, que ensinam os americanos a beber”, brinca João.

O processo foi orgânico, o mercado exterior é quem fez a demanda, até porque a empresa não tem condição de fazer pesquisas de mercado dessa dimensão. “A gente vê é que o mercado de cachaça está crescendo muito. E a cachaça é igual ao vinho. O vinho é uma produção antiquíssima, e a história de produção é um turismo, como quem vai visitar as vinícolas em Portugal. Hoje, está acontecendo isso aqui em Minas”. “O mineiro é que é acanhado e precisa se soltar mais para fazer o negócio acontecer”, ressalta.

Ele afirma que a exportação vai impactar no negócio, mas ainda não sabe bem como. “Agora, o ‘bão’ de vender lá para fora é que é um dinheiro grande e, principalmente, o prazer que é contar a história de Minas, da família e da cidade de Perdões. Todo mundo que mora aqui, e vê a cachaça lá fora chegando falando: ‘Essa é nossa, essa é nossa!’. Isso não tem nada que pague”.

Os comentários nas postagens e os conteúdos dos colunistas não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir comentários que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.