Cágado-do-paraíba: pesquisa inédita descobre espécie em risco de extinção em 26 novas localidades
No passado, pesquisas apontavam que animal poderia ser extinto em poucos anos, porém, novo estudo mostra que espécie tem persistido em ambientes com alteração humana
Mais da metade das espécies de quelônios, que englobam cágados, jabutis e tartarugas, está ameaçada de extinção no mundo. No total, são conhecidas cerca de 350 espécies desse grupo, e cinco já foram extintas pela ação humana. No Brasil, 39 espécies de quelônios foram registradas, sendo cinco tartarugas marinhas e 34 cágados e jabutis, segundo a Lista de répteis do Brasil atualizada em 2022.
De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, quatro espécies de tartarugas marinhas e um cágado, conhecido como cágado-do-paraíba (Ranacephala hogei), correm o risco de extinção no país. Por muitos anos, estudos apontavam que o cágado-do-paraíba estava em declínio populacional e poderia ser extinto em poucos anos. No entanto, uma pesquisa inédita mostrou que a espécie é mais resistente do que se pensava, e tem conseguido se adaptar às mudanças que ocorreram em seu habitat natural até o momento.
O estudo descobriu 26 novas localidades onde o cágado-do-paraíba está presente. O número é quase 2,5 vezes maior do que se conhecia antes, quando aparecia em apenas 18 localidades nos estados do Rio de Janeiro (RJ), Minas Gerais (MG) e Espírito Santo (ES), abrangendo as bacias hidrográficas do Rio Paraíba do Sul, Lagoa Feia, Rio Itapemirim e Córrego São Salvador. Com a nova pesquisa, os registros de ocorrência da espécie aumentaram para 44 localidades, e foi constatado que o cágado-do-paraíba também habita o Rio Itabapoana, entre os estados do RJ e ES, uma bacia hidrográfica onde sua presença era desconhecida.
A pesquisa faz parte do doutorado do cientista Clodoaldo Assis, em parceria com o Museu de Zoologia João Moojen, da Universidade Federal de Viçosa, e o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Répteis e Anfíbios (RAN), do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Clodoaldo explica que a distribuição do animal em território nacional era subestimada em razão da falta de estudos de longo prazo, como foi o caso deste que durou cerca de oito anos.
Ciência cidadã colaborou para encontro da espécie em novos locais
Desde 2016, Clodoaldo e outros pesquisadores envolvidos no projeto realizaram capturas anuais dos animais na natureza. O trabalho de campo aconteceu em mais de 50 localidades potenciais para a presença da espécie e contou com a ajuda da ciência cidadã para fazer os registros. Pescadores, trabalhadores rurais, pesquisadores de outras áreas, policiais ambientais e praticantes de esportes aquáticos colaboraram com o maior número de registros obtidos. Em campo, os pesquisadores usaram armadilhas para capturar os cágados, que eram medidos, recebiam uma marcação no casco, e depois soltos no mesmo local.
A espécie foi encontrada em quatro áreas protegidas, as quais eram o Refúgio de Vida Silvestre Estadual do Médio Paraíba e Área de Proteção Ambiental do Triunfo, no RJ; a Estação Ecológica de Água Limpa, em MG; e a Área de Proteção Ambiental Guanandy, no ES. A pesquisa também mostrou a persistência do cágado-do-paraíba, ao longo dos anos, em ambientes com alteração humana.
No estado do Rio de Janeiro, houve um registro recente em um trecho do Rio Paraíba do Sul onde a espécie havia sido documentada em 1952, evidenciando sua sobrevivência após mais de 60 anos. Já no Rio Carangola, em Minas Gerais, foi prevista, na década de 1990, a extinção local do cágado-do-paraíba em menos de sete anos. No entanto, em nossa pesquisa registramos adultos e filhotes da espécie nesse mesmo rio. Esses resultados indicam uma adaptabilidade significativa do cágado-do-paraíba frente às mudanças em seu habitat, evidencia Clodoaldo.
Um dos cientistas que participaram do estudo foi o professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Henrique Costa. De acordo com ele, os resultados encontrados vão na contramão de previsões passadas, e mostram que a espécie tem resistido e se reproduzido mesmo diante dessas mudanças. “Uma ótima notícia, que aponta que o cágado-do-paraíba é mais resistente do que se pensava, e conseguiu se adaptar às mudanças que ocorreram em seu habitat natural até agora.”
No entanto, a destruição e modificação do habitat continuam sendo as principais causas do cágado-do-paraíba estar em risco de extinção. “Embora a espécie apresente certa resiliência e persista em áreas rurais dominadas pelo homem, observamos que, em trechos de rios desprovidos de matas ciliares e em locais poluídos próximos a centros urbanos, a espécie estava ausente”, alerta Clodoaldo. O pesquisador explica que a pesca com redes de espera, covos e até anzóis podem levar à morte de adultos e filhotes, seja por afogamento ou por lesões. Além disso, a presença de javalis e cães domésticos em áreas naturais onde a espécie desova representa um risco tanto para os ovos quanto para os filhotes recém-nascidos, que precisam caminhar até a água.
Animais contribuem para a restauração das matas ciliares
Entre os papeis importantes para o ecossistema desempenhados pelo cágado-do-paraíba, destaca-se a dispersão de sementes. Conforme ilustra o pesquisador, durante períodos de cheia, quando as águas transbordam pelas margens dos rios, o cágado-do-paraíba pode se deslocar por essas áreas alagadas, defecando sementes e contribuindo para a restauração das matas ciliares. Suas fezes possuem grande quantidade de sementes intactas, com potencial para germinação. Além disso, esses animais também podem ajudar no controle de plantas aquáticas, já que essas fazem parte de sua dieta. O cágado também atua como predador de insetos, moluscos e peixes, contribuindo para o equilíbrio populacional de suas presas.
Ainda não se sabe muito a fundo sobre a história de vida da espécie, mas é possível entender algumas características que ajudam a se adaptar às ações humanas. A dieta é um desses exemplos. O pesquisador afirma que o cágado-do-paraíba possui uma dieta bem diversificada, alimentando-se de folhas de árvores, frutos, plantas aquáticas, insetos, peixes e até moluscos, o que permite que, na falta ou diminuição de determinados alimentos, ele sobreviva consumindo outros itens alimentares.
“Durante nosso estudo, também observamos que esse cágado habita tanto rios maiores, como o Paraíba do Sul, com trechos que ultrapassam 500 metros de largura, quanto rios com larguras menores que 10 metros. Essa adaptação impede que ele fique restrito a um único tipo de ambiente, proporcionando-lhe uma vantagem na sobrevivência. Certamente, ele possui outras adaptações ainda desconhecidas, que conferem maior resiliência à espécie”, aponta Clodoaldo.
Estudo pode ajudar a definir áreas de proteção e estratégias de conservação
O cágado-do-paraíba é uma espécie-alvo do Plano de Ação Nacional para Conservação das Espécies Aquáticas da Bacia do Rio Paraíba do Sul e do Plano de Ação Nacional para Conservação da Herpetofauna Ameaçada do Sudeste. O estudo do qual Clodoaldo faz parte pode contribuir com a definição de novas áreas de proteção ambiental e estratégias de conservação, além da conscientização da população. Saber onde a espécie ameaçada ocorre é o primeiro passo para protegê-la. Clodoaldo destaca que, a partir do recorte geográfico, é possível exigir de órgãos públicos e privados medidas de proteção durante a implantação de empreendimentos e avaliar os impactos sobre as espécies em casos de desastres ambientais. A pesquisa também oferece uma base mais sólida para futuras avaliações sobre o grau de ameaça do cágado-do-paraíba.
“Em Minas Gerais, por exemplo, descobrimos que o cágado-do-paraíba ocorre em áreas mais no interior do estado, nas sub-bacias dos rios Pomba e Muriaé. Ambos possuem históricos de vários desastres ambientais no passado, e por não sabermos da presença desse cágado nesses rios anteriormente, nenhuma medida de proteção específica foi tomada na época. No caso do cágado-do-paraíba, embora esteja incluído em listas de espécies ameaçadas há décadas, nenhum estudo de longo prazo que melhor definisse sua distribuição havia sido realizado”, diz o pesquisador.
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