Para PretoVivo, chega a ser difícil falar exatamente quando sua relação com a arte começou, até porque, desde suas primeiras lembranças, o hip hop já estava presente e pulsando. Era algo da vida, e faltava só um nome para o que ele já conhecia: “O que me atraiu foi a representatividade, a identificação mesmo, de ver pessoas que se parecem comigo e que vieram de lugares parecidos com os meus. As letras bem fortes. Ouvia coisas e pensava: ‘Eu queria falar isso'”, relembra. Morador de Santa Luzia e com o apoio da mãe, desde o início, foi escrevendo suas letras e percebendo que a sua voz poderia não só falar por conta própria, mas também amplificar outras vozes. Por isso que, aos 23 anos, o jovem já lançou diversas músicas, organizou slams em Juiz de Fora e trabalha com a Biblioteca Comunitária Quebrada. Leitor de literatura, também é embaixador da Urutu Barbearia, realiza projetos culturais com crianças, participa do Sararau Crioulos e ainda vai lançar seu primeiro livro de poesias este ano.
Quando Yhan Campos Antunes dos Santos procurou no google “PretoVivo”, pela primeira vez, só apareciam anúncios de cabos telefônicos para vender. “Mas quando procurei preto morto, você já sabe o que eu encontrei. Então decidi que queria que da próxima vez que pesquisasse isso, ao invés de propaganda, aparecessem minhas músicas. Foi assim que surgiu o nome”, conta. Já são três anos desde que o artista conseguiu começar a monetizar seu trabalho, enquanto também cursa Ciências Sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e toca todos esses projetos. O nome então passou a ser também uma missão e, como ele mesmo conta, em todo espaço em que está, busca aprender mais: é algo que percebe que herdou justamente dessa cultura do hip hop. “Aprendo muito pela oralidade, conversando com os mais velhos e mais novos. Não foi a faculdade que me levou pro hip hop, foi o hip hop que me levou pra faculdade. Ele é um meio de comunicação e divulgação de conhecimento”, conta. Em 2016, ele ganhou um mini notebook da sua mãe, enquanto estava ainda na escola. Esse foi seu primeiro estúdio, e logo começou a mexer nas ferramentas disponíveis colocando sua voz e instrumental juntos. “Postei e, no outro dia, na escola, já estava todo mundo me chamando pelo meu nome artístico”, relembra.
Assim, seu trabalho começou – e por volta também dos 16 anos, ele ganhou seu primeiro slam na escola. Na época, como o slam ainda era algo recente no país, nem sabia o que significava. Mas pela primeira vez, competindo e rimando junto com outros colegas e artistas que se tornaram importantes em sua vida, ele ganhou a competição. E pouco tempo depois ele mesmo começou a organizar as competições. “Foi natural começar a organizar, porque queria que mais gente de Juiz de Fora pudesse competir e ir pra campeonatos fora daqui. A única coisa que me dava era vontade de estar competindo. Mas se eu não organizasse, ninguém ia competir no ano. Então era melhor eu tocar isso, para as pessoas poderem participar”, conta, a respeito da sua ligação com saraus como o Slam Griot, o Griôzin, o Slam Urutau e o Urutau de poesias curtas. Seu processo criativo desde então foi mudando e se profissionalizando cada vez mais, hoje também seguindo através do Fumacinha Records, seu estúdio. “Eu não me forço a escrever. Escrevo quando a letra vem, e eu sento pra registrar, a mesma coisa com instrumentais e poesia. Eu respeito meu processo criativo. Acho que eu vivo um eterno bloqueio criativo, mas no momento que não estou assim, produzo coisas boas”, diz.
Esse caminho todo não foi isento de desafios – pelo contrário. Fazer uma arte marginalizada, como ele mesmo percebe, exige não só confiar em si mesmo, mas ter também a habilidade de, quando não há espaços existentes para que sejam ocupados, criar esses lugares por iniciativa própria. “Os maiores desafios em ser artista em Juiz de Fora é a valorização. A gente é uma cidade universitária, que é uma potência em diversos âmbitos da arte. Os artistas nascem aqui em JF e vão embora, mas não porque querem. Isso acontece porque eles têm uma valorização em outros lugares que não têm aqui. Valorização de levar a sério mesmo, pagar cachê, bancar evento”, conta. E, se possível, abrir porta também para outras pessoas. “Meu maior sonho com a arte, pensando como juiz-forano, é que a gente não perca mais as nossas estrelas, que as pessoas não desistam da arte ou se percam no meio do caminho por conta dessa desvalorização”, diz.
Ser referência e ter referência
Em 2021, PretoVivo também começou o projeto social de oficinas culturais Alto Falante, no bairro em que cresceu, para crianças a partir de 4 anos até adolescentes de 17 anos. São oferecidas oficinas em diferentes áreas para os 30 inscritos, a partir das demandas que eles escolhem. “Eu sempre busco alguém de referência no assunto para vir conversar com eles. Depois, nós conversamos muito sobre o que foi aprendido, e cada um faz o seu tipo de arte para falar o que entendeu”, conta. Por ocupar esse espaço e organizar também os slams, ele mesmo percebe que, aos poucos, foi se tornando também essa referência. Mas mesmo quando é um assunto que ele domina, nesse projeto ele prefere chamar outras pessoas. “Não quero ser a única referência deles”, conta. E ainda revela que toma cuidado para que não confundam “ser referência” com “ser perfeito”.
Para além de ser referência, ele também conta que são também essas pessoas com as quais convive que se tornam referências para ele. Se lembra de um caso de um dos participantes, por exemplo, que aos 4 anos de idade perguntou a ele o que era hip hop, e lhe ocorreu que a vida daquela criança, por si só, já representava isso. “Eu aprendo muito com eles sempre. O que me inspira a escrever hoje são as crianças. É acreditar numa educação de mais qualidade e não tão arcaica como ela é hoje. Eu acredito nas crianças de periferia que vão se tornar adolescentes e adultos e vão fazer as coisas legais deles. O principal motivo de eu trabalhar com isso hoje é ter fé no futuro das pessoas próximas a mim”, diz PretoVivo.
‘Aluno problema’
Apesar de não ter uma virada de chave específica de quando se percebeu artista, PretoVivo se lembra de um momento com carinho: quando aos 10 anos um professor de Geografia pediu para que as crianças fizessem um trabalho descrevendo o bairro em que moravam. Ele revela que, na época, não era bom aluno e nem gostava de fazer deveres de casa, mas teve uma ideia: “Eu perguntei se podia fazer isso na forma de rap, e o professor deixou. Quando eu fiz, deu muito certo. Foram duas páginas de uma poesia”.
No meio de 2024, vai lançar o seu primeiro livro de poesias, com a editora Fala, e que tem bastante a ver com essa história. O título é “Aluno problema”, que também pode ser lido como “Aluno poema”, eliminando apenas algumas letras, como ele mesmo destaca. “Essas poesias são de sempre até mês passado. Foi uma seleção dolorida. As temáticas são variadas em questões sociais, amorosas, escolares. São vivências da perspectiva de um jovem preto e vivo no Brasil. É a minha ótica”, diz. O poema que dará título ao livro resume bastante dessa trajetória: “Cola lá na escola em que eu me formei/ na biblioteca tem dois livros meu/ grafitado na parede meu poema/ eu não era o aluno problema?/ o que é que aconteceu?”.