Conheça Alice Santiago: cantora e compositora das ‘possibilidades’
Na coluna ‘Sem lenço, sem documento’, saiba mais sobre a artista que abraça ‘personas’ para estar no palco

Medo de quebrar a cara. Talvez tenha sido isso que impediu Alice Santiago de, antes em sua vida, levar a música a sério, mesmo já cantando desde criança. Mas esse tempo já passou faz muito. Até porque, ela não anda sozinha: trabalhando na cozinha do São Bartolomeu durante as noites, se divide entre a banda Tata Chama e as Inflamáveis, as parcerias com Renato da Lapa e Laura Januzzi, entre muitos outros artistas, e até o seu trabalho solo. Foi também com muito estudo que essa seriedade foi vindo. E, é claro, com várias inspirações e vivências diferentes no palco. “Eu gosto de ser truqueira. A vida está horrível, aquele dia você não tá afim, mas quando sobe no palco é o melhor show. Isso eu gosto muito. (…) Eu não preciso ser eu, sabe? Posso ser quem eu quiser. Acho essa possibilidade ótima.” Seja no palco ou no estúdio, hoje ela entende que o maior risco está longe de ser quebrar a cara – uma coisa que, afinal, acontece com todo mundo. E ela quer expressar todas essas possibilidades com liberdade.
Quando Alice era criança, ainda em Piúma, sua mãe trabalhava na parte burocrática do projeto Praça das Artes Promoção Artística. Um dos envolvidos, na época, escutou Alice, por volta dos 9 anos, cantando, e disse para ela se envolver com essa parte do projeto. Ela começou na bateria e depois foi para o violão, instrumento com o qual ainda conseguia usar a voz – mas ainda não se enxergava artista mesmo. Quando chegou a Juiz de Fora, para fazer bacharelado em Ciências Humanas, Alice encontrou muitos músicos. Ela começou a participar da banda Xagusta e, em seguida, organizou a Tata Chama e as Inflamáveis, banda de mulheres artistas que também estavam (e estão constantemente) descobrindo seus caminhos. “Fui encontrando muito potencial artístico aqui, e aquilo me inspirou muito.”
Foram as influências do entorno que fizeram com que ela entendesse quem queria ser. Além disso, o próprio palco e o que cada show pedia dela também foram guiando esse caminho. “A arte tem uma certa redoma, como se fosse Deus apontando e dando um talento. Eu acho uma bobagem. Para mim, tudo é um grande exercício, inclusive cantar. É claro que eu nasci com esse timbre, não tem muito o que fazer, e que bom. Mas cantar como eu canto é porque eu cantei demais, porque eu estudei, é um processo.” E, para ela, também foi um processo de abraçar todas essas possibilidades, palavra de que tanto gosta, para saber até onde queria ir. “Quando eu arrumo meu cabelo, passo uma maquiagem e visto um figurino, estou assumindo uma coisa, é outra parada. Não sou eu como estou agora, de óculos escuro e roupa de academia. Aquilo me traz coragem, uma outra força. É um lugar de personagem para mim.”
Mesmo constantemente nos palcos, ela sabe que viver de música é uma realidade difícil em Juiz de Fora. E, por isso, financeiramente não vive — apesar de, como explica, essa ser sua principal forma de se expressar no mundo. Desde a pandemia, Alice se acostumou a trabalhar na noite, e foi gostando mesmo dos desafios impostos pelo tratamento do público e na cozinha, nos restaurantes e bares onde trabalhou. “Tem algumas coisas que, com a música, não quero fazer. Eu me recuso mesmo, é até uma vaidade (…). Em alguns vários momentos, prefiro fazer outras coisas e não prostituir a minha música. É outra persona que assume. Eu amo muito fazer várias coisas. Possibilidades! Adoro explorar essas possibilidades, não quero ser só uma coisa.” Além disso, ela também borda e faz crochê como hobbies, sem pensar em comercializar.
A magia do compor
Uma das grandes viradas de chave em sua carreira aconteceu justamente com a banda Tata Chama, quando foi vendo também como era o processo criativo das outras mulheres. “Como mulher, nunca me senti incentivada a escrever, nunca tive esse universo perto de mim. Com elas, eu, que nunca tinha pensado em ser compositora, comecei a vislumbrar essa possibilidade. E comecei a olhar para música com um comprometimento, mas um comprometimento por necessidade, se tornou inerente ao meu viver.” A parceria entre elas, que estavam dando cara a banda e podendo experimentar também, funcionou, como define, como um grande despertar – nome, inclusive, do primeiro trabalho lançado por elas.
É uma chama acesa que, de fato, nunca se apagou. “Foi um mundo, uma magia. Foi uma nova forma de dividir a música. Mesmo de forma prática e pé no chão, acho que o lugar do criar ainda é bem intocável para mim. Bem mágico. Artisticamente mudou muito a minha cabeça, foram várias possibilidades.” Para ela, isso também ajudou a formar sua identidade enquanto artista, criando um universo de palavras, melodias e campos familiares que, na sua visão, são guiados pelo amor — seja o amor romântico ou aquele inspirado pelas parcerias da vida.

Coragem que atravessa o rio
Para tudo isso, é preciso muita coragem. E também pra encarar novas etapas, como começar um projeto solo, que é justamente o que ela está fazendo agora. Para Alice, foi essencial ter tido tantas vivências em grupo para, então, também se “assumir” sozinha. Eu lembro do exemplo de Ney Matogrosso, inspirada pelo filme “Homem com H”, e ela concorda, se lembrando do show que ele fez no Cine-Theatro Central e da oportunidade que teve de encontrá-lo, depois, no camarim. “No show, ele estava com aquele figurino do ‘Bloco na rua’, um macacão maravilhoso. Quando chegamos para tirar foto com ele, ele estava igual a um senhor, com pullover. Isso é maravilhoso. É uma ferramenta que me encoraja muito. Quando dissecamos essa magia, vemos que é um truque, é uma forma de inebriar o público.”
É justamente essa coragem que também está guiando Alice, agora, para o seu primeiro projeto solo, o EP “Coragem que atravessa o rio”, que terá seis faixas. “Com esse EP, quero abordar outros lugares da composição, outras linguagens. Quero experimentar coisas novas, sintéticas, e contar uma história. Esse é outro ponto muito legal de ser artista, que é vestir algumas roupas e personagens.” E, desde que começou essa caminhada, entende que não tem mais como recuar — com medo ou sem medo, sejam quais forem os desafios. “Eu acho a esperança e a revolta igualmente importantes, são sentimentos que tento manter acesos na minha vida. São coisas que me fazem não parar por nada”, finaliza.