Conheça Liliane Gonzaga: porta-bandeiras de um carnaval do ano inteiro

Na coluna 'Sem lenço, sem documento' desta semana, saiba mais sobre a história da técnica de enfermagem Liliane Gonzaga, que trabalha o ano inteiro com samba no pé para fazer o carnaval ser possível

Por Elisabetta Mazocoli

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“A porta-bandeira carrega o que há de mais sagrado, porque aquele pavilhão e aquela bandeira trazem toda a ancestralidade daquela escola”, ressalta Liliane (Foto: Arquivo Pessoal)

A história de Liliane Gonzaga com o carnaval começa quando ela ainda era bem pequena, com noites viradas para assistir aos desfiles de carnaval do Rio de Janeiro. Filha de um trabalhador da construção civil e de uma lavadeira, apesar de não ter vínculos diretos com essa festa, foi por meio da paixão dos pais que teve esse primeiro contato. “Meu pai sempre trouxe pra gente essa cultura de carnaval. Comprava os vinis de escola de samba do Rio, lia a sinopse de todas as escolas, explicava pra gente o que a escola ia trazer e qual seria a proposta dentro disso. Fazia questão de explicar isso pra gente e de ensinar a sambar, também”, conta. Foram anos em que acompanhava os desfiles com ele, dando notas por conta própria, e também de ida com a mãe e a irmã para a corda da Banda Daki. Nesse percurso, a habilidade e a emoção que as portas-bandeiras traziam sempre chamou a sua atenção. Mas durante boa parte da vida não imaginava que ocupar esse lugar pudesse ser algo que iria de fato fazer. Por destino e um amor que até hoje ela não consegue bem explicar, isso aconteceu. E veio acompanhado de um trabalho que ocorre o ano inteiro, como conta,  para tornar o carnaval de Juiz de Fora possível, com diversas aulas, realização de rifas, ações sociais e muita luta.

“Dia de desfile de escola de samba no Rio era sagrado. Todo mundo na sala, deitado no colchão, com a televisão ligada, pra gente assistir o desfile. Era obrigatório assistir a noite inteira”, relembra. Essa primeira lembrança do carnaval, que marcou boa parte da sua infância, guiou seu interesse durante muitos anos por esse evento anual. Já na juventude, ia todos os anos ao desfile da Banda Daki, fantasiada junto com a sua irmã. Até que um dia, foi em um desfile da Juventude Imperial e se apaixonou, começando a desfilar como destaque e chefe da ala da Juventude, tendo começado a fazer parte da diretoria também. Mas foi por acaso que essa relação com o carnaval mudou: ela estava dançando samba no Cardápio Mineiro, quando Régis da Vila, presidente do Instituto Cultura do Samba (ICS), a avistou. “Ele se aproximou  de mim e falou: ‘Você é porta-bandeira, você tem talento’. Eu disse: ‘Você tá louco, eu não tenho talento pra isso’”, conta. Foi assim que ela foi chamada pela primeira vez para uma aula no Instituto, e nunca mais parou.

Como o Instituto funciona como um braço da escola Manoel Dionísio, do Rio, ela logo começou a fazer aulas por lá também. “Eu pego um ônibus aqui e faço as aulas todos os sábados, das 14 às 18h. Terminando a aula, pego meu ônibus e volto pra JF”, conta. Por lá, aprende mais sobre noção corporal, tem aulas práticas com porta-bandeira e tem a oportunidade de receber visitas ilustres para mais aprendizado. E isso tudo, ela concilia com o trabalho de técnica de enfermagem, tendo muitas vezes que já iniciar o plantão no dia seguinte às 6h. Desde então, também passou a ser porta-bandeira do bloco ‘Eu e Você’ e do Bloco do Batom, de Juiz de Fora, freelancer da Mocidade Independente da Vila Isabel de Três Rios e Rainha da Banda Daki. Com tanta ligação com o samba, também foi se envolvendo cada vez mais com o bloco Irmãos Metralha, em que hoje atua como diretora e secretária, e que traz uma relação especial com o bairro em que vive, o Bandeirantes.

Um dos seus grandes orgulhos dentro do universo carnavalesco, e que uniu seu papel como profissional da saúde e esse amor pelo samba, foi ter sido uma das fundadoras do bloco Locomotiva. “Eu trabalhava no Caps Liberdade, do Hospital Universitário, e víamos a vulnerabilidade social e a exclusão com os usuários da saúde mental. E o que melhor integra e alegra todo mundo? O carnaval. Fica todo mundo junto, você vê que todos se animam”, conta. Foi assim que ela e outros trabalhadores pensaram em criar o bloco, que inicialmente funcionaria só nos arredores, até que se tornou um projeto maior. “Desfilamos no calçadão. Foi lindo, trouxemos os nossos pacientes, reivindicamos o nosso lugar e pedimos por manicômio nunca mais. Realmente contra esse retrocesso”, diz.

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(Foto: Arquivo Pessoal)

Movimento cultural

O carnaval, como ela destaca, é um movimento cultural que traz reflexos para todos os dias. Aliás, é um estilo de vida: “Quando meus pacientes estão mais tristes, eu estou sempre lá pra animar e trazer meus mantras do samba. Sempre repito os lemas: ‘Erga sua cabeça, mexe o pé e vai na fé’ e ‘A vida é pra quem sabe viver'”. Por isso, é o ano inteiro de preparação para que tudo ocorra da melhor maneira, e uma formação que não tem fim para tornar possível que as mensagens mais importantes dessa cultura consigam ser devidamente passadas através do evento. “Eu acredito que o carnaval atinge todas as pessoas e de todas as classes. É o momento que você tem para falar sobre temas importantes, mostrar pra população problemas sociais do seu jeito. É com brilho e leveza, mas com muita força”, diz. Exemplo disso, como ela mesma cita, foi o desfile da Portela, com ‘Um defeito de cor’, de Ana Maria Gonçalves, um livro que Liliane também leu e que destaca por sua importância para a cultura brasileira.

O carnaval, para ela, é uma forma de integrar as pessoas e também de valorizar as comunidades. Com o ‘Irmãos Metralha’, sempre são escolhidas figuras importantes para a cultura juiz-forana, e que são homenageadas com enredos e com a alegria das pessoas. Como as escolas de samba, em sua visão, servem como pontos de reforço para a comunidade, também são realizadas diversas ações sociais por esse bloco, que buscam justamente melhorar a qualidade de vida das pessoas. Apesar de toda essa importância, como ela explica, o carnaval da cidade já passou por momentos difíceis. Se fosse um paciente seu, o quadro seria o seguinte: “Nosso carnaval aqui vinha de um momento agonizante. Teve um período muito grave na UTI”. Esse momento a que ela se refere foi justamente desde 2017, quando Juiz de Fora ficou sem o desfile das escolas de samba – o que voltou a acontecer em 2023. Com essa volta, foi possível, aos poucos, ir recuperando o interesse das pessoas e das gerações mais jovens.

Para ela, apesar desse retorno do interesse estar acontecendo de forma lenta, é possível ver o empenho de muitas pessoas em fazer dar certo. “A gente tem ótimos carnavalescos, pessoas que trabalham pra fazer isso ser possível e com vontade. Então tem que fortalecer”, ressalta. Ela destaca a importância de ação do poder público e incentivos para isso, já que não é possível fazer carnaval sem dinheiro para arcar com todos os custos. Uma das coisas de que mais gosta, por isso mesmo, é ver como essa festa demanda trabalho conjunto e atenção a tudo, que deixam o resultado ainda mais prazeroso. “Quando comecei a trabalhar em barracão, ajudando com todos os detalhes, fui conhecer as dinâmicas desse trabalho por trás do carnaval e tudo que precisa para colocar na rua.”

Entre o céu e a terra

Hoje, Liliane vê bem que não é por acaso que se interessou pelo trabalho de porta-bandeiras, que parece sintetizar muito do que gosta e da responsabilidade que enxerga em ocupar espaços como esse. Apesar de todo o trabalho que essa função exige, com fortalecimento muscular, desenvolvimento de resistência física, ensaios pra aprender os passos e aulas, além de estudos para compreender toda a parte cultural e história do carnaval, para ela, vale a pena. É algo que a faz sempre pensar, e que considera que tem um papel essencial na cultura brasileira.

Além de carregar a responsabilidade de algo tão importante para o seu país e também trazer força para o carnaval de sua cidade, enxerga que ser quem ela é também é algo que espera honrar a história da sua família. Seu pai, hoje falecido, saberia que sua filha leva esse legado. E é isso que as porta-bandeiras fazem: “A porta-bandeira carrega o que há de mais sagrado, porque aquele pavilhão e aquela bandeira trazem toda a ancestralidade daquela escola. Ela carrega o respeito e essa nobreza. Faz a conexão de céu e terra através de seu mastro, e é por isso que a porta-bandeira não tira os pés do chão”, diz.

Elisabetta Mazocoli

Elisabetta Mazocoli

Elisabetta Mazocoli é uma repórter formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pós-graduanda em Escrita e Criação pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Escreve a coluna "Sem lenço, sem documento", que conta a história de artistas, artesãos e pessoas que trabalham com cultura em Juiz de Fora, mas que nem sempre são conhecidos pelo grande público. Também escreve matérias de cidade, educação, saúde, cultura e diversos outros temas. É autora do livro-reportagem "Do lado de fora: dez perfis de mulheres anônimas", escrito como Trabalho de Conclusão de Curso, e se interessa por jornalismo literário. No tempo livre, escreve e lê literatura, se interessa por produções audiovisuais, viaja, cuida de gatos e aprende línguas. [email protected] LinkedIn: https://www.linkedin.com/in/elisabetta-mazocoli/

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