Li, certa vez, que cada livro de poemas tem um mundo dentro dele. Táscia Souza, jornalista, escritora e atriz, está estreando nesse universo com “Minha língua procura palavras que tenham gosto de bala de maçã” (Patuá), e o mundo que foi sensivelmente construído por ela é “doce e ácido ao mesmo tempo”, conforme ela mesma diz. “Se eu enfiasse a mão no bolso/ de uma calça jeans velha e/ encontrasse lá/ amassado e vazio/ o papel da última bala que meu avô me deu/ eu teria escrito um verso nele/ com letrinhas bem miúdas/ O verso no verso/ Um só/ A calça jeans porém já não serve/ O papel ficou em alguma lixeira/ E este livro sou eu/ procurando/ aquela acidez/ aquela doçura”, escreve a poeta.
Diante dessa confissão, prepare-se, leitor, pois, na obra, tem “palavra-bala: às vezes doce, às vezes tiro”, anuncia Táscia. “Não sei se chega a ser um mundo, mas uma casa talvez, um quarto. Um espaço íntimo. É como se eu estivesse deixando alguém entrar na minha casa e ela não estivesse tão arrumada assim”, confidencia Táscia, que lança a obra nesta segunda-feira (29), das 18h às 21h, no Forum da Cultura, local em que já deu vida a inúmeros personagens.
Todos que a conhecem sabem que ela sempre fez poesia produzindo em prosa. O mundo dela é o da palavra. Escreveu conto, romance, peça teatral. Dessa vez, suas inquietações ganharam forma em versos. Versos livres e brancos. “De repente eu me vi com um turbilhão de pensamentos, que não caberiam necessariamente num conto ou numa narrativa mais longa, e resolvi experimentar o verso de novo”, comenta, adiantando que “Minha língua procura palavras que tenham gosto de bala de maçã” “é um tatear a esmo, com o braço enfiado até o cotovelo, dentro de um saco de palavras.”
Táscia Souza também é doutora em Letras pela UFJF, com estágio sanduíche financiado pela Capes na Université Paris Diderot/Paris 7. Entre suas produções está o espetáculo “Canção de ninar (ou faça o que tem que fazer)”, montado pelo grupo T.O. C e vencedor, em 2018, na categoria melhor espetáculo de drama do Festival Nacional de Teatro de São João Nepomuceno. Ela também é cofundadora e integrante do projeto narrativo Hupokhondría e coautora das coletâneas de contos “99 receitas” (Funalfa) e “Pôquer a seis” (La petote fereme).
Marisa Loures – Já na sinopse, o leitor encontra que seu livro é “um tatear a esmo, com o braço enfiado até o cotovelo, dentro de um saco de palavras.” No entanto, acredito que você tenha tido um fio condutor. O que te conduziu no seu processo de escrita?
Táscia Souza – Para escrever, a princípio, não. Ou, ingenuamente, eu achava que não. Todos os poemas do livro, com exceção do último, foram escritos entre meados de 2019 e início de 2021, de forma aleatória, no bloco de notas do meu celular, muitas vezes quando eu ainda estava deitada na cama de manhã, sem a perspectiva de que fossem reunidos num livro. Mas esse fio condutor acabou aparecendo na organização dos textos, na escolha da ordem em que eles estão colocados. Outro dia eu disse numa entrevista que o que me motivava a abrir o celular e digitar a ideia que me vinha à cabeça na hora eram fagulhas do cotidiano. Um lampejo, uma faísca. Coisas bem comezinhas mesmo, bem banais, mas que eu usei para dar vazão a angústias mais profundas. Mas só relendo eu mesma esses textos e a ordem em que eu os coloquei é que eu me dei conta de que há metalinguagem em quase todos eles, que a minha relação com a palavra e com a escrita está praticamente em todos eles. Talvez seja esse o fio conduto. E isso realmente é algo que conduz meu processo de escrita ao longo da vida, sabe? Mesmo fora da poesia. Meus amigos dizem que eu sempre fui poética, até escrevendo texto jornalístico. E isso tem a ver com a paixão que eu tenho pela palavra em si. Uma vez eu te disse — não sei se você lembra, mas foi numa entrevista sobre o livro “99 receitas”, de microcontos meus, do Gustavo Burla e do José Eduardo Brum, escritos para o Hupokhondría — que eu me identifico muito com o que o Derrida coloca no ensaio “A farmácia de Platão”, da escrita como phármakon, meio remédio, meio veneno. Para mim ela é o tempo todo as duas coisas juntas.
– Imaginei que os poemas tivessem sido escritos nos últimos tempos. Tempos de pandemia. Tempos de Tito. Tempos que trouxeram dor e perdas, mas também amor, alegria e esperança. Foi um período inspirador para você?
– Tempos de pandemia, sobretudo. Alguns poucos foram escritos antes dela, em 2019, mas a grande maioria nasceu em 2020, no ano de mais isolamento, medo, saudade, solidão. Tempos de Tito… nem tanto. Eu cheguei a olhar a data de cada um e o último deles (que não é o último do livro) é de janeiro de 2021, mês em que eu fiquei grávida do Tito. Mas acho que, de algum modo, como ele foi muito desejado antes, mesmo no meio de todo aquele caos, acho que há um pouco, se não da espera do Tito, da “espera pela espera” do Tito. De todo modo, esse primeiro ano de pandemia me fez escrever mais. A agonia é produtiva de alguma forma.
– “Minha língua procura palavras que tenham gosto de bala de maçã” é um título curioso. Por que ele foi escolhido para dar nome a essa coletânea?
– Um dos poemas do livro se chama “Bala de maçã” e é sobre meu avô. A memória do meu avô é incômoda na minha vida. Ele era militar (embora já reformado quando eu nasci), era alcoólatra (embora já abstêmio quando eu nasci). Tudo que sei da história dele é o que ele tinha sido (e que eu soube pelos outros), mas que não era mais. Eu tinha 15 anos quando ele morreu e a sensação que eu tenho é que a gente nunca conversou de verdade. Muito pouco. Eu queria ter conversado mais. Queria, por exemplo, que ele dissesse que saiu do Exército porque não concordava com o golpe de 1964, mas eu não sei. Nunca vou saber. E esse não dito me corrói. Nem sei se a memória de ele andar com balas no bolso é real ou se é algo que eu inventei. O título do livro remete a esse poema, mas também a esse interdito, a esse não dito. A língua como órgão e a língua como linguagem. Sinto que estou sempre experimentando palavras e construções como quem busca um sabor de infância que não está mais lá. Ou que nunca esteve.
– E você já escreveu conto, teatro, romance. Agora, poemas. Já dá para dizer que se sente à vontade no universo dos versos?
– Nem um pouco! É desconfortável, como um corpo estranho. Eu costumava escrever poesia na adolescência, mas de um jeito bem pueril, cheio de rimas infantis. Depois parei, porque não era realmente um coisa para o que eu tinha talento. Fazia mais de 20 anos que eu não arriscava escrever nem um verso sequer.
– Por falar nisso, por que decidiu escrever em versos?
– De repente eu me vi com um turbilhão de pensamentos, que não caberiam necessariamente num conto ou numa narrativa mais longa, e resolvi experimentar o verso de novo. Livre, branco. Só um poema, que faz vezes de epígrafe, é que tem métrica e rima e foi um exercício racional, árduo, para ver mesmo se eu conseguiria. Me senti muito inspirada também pela Ana Martins Marques, que eu considero a melhor poeta brasileira contemporânea. Lia poemas dela e pensava: “nossa, gostaria de ter escrito isso!”. Estou longe de tê-lo feito, mas ela certamente foi uma inspiração.
– No último poema, os versos derradeiros anunciam que “este livro sou eu procurando aquela acidez aquela doçura”. O livro te ajudou a encontrar o que procurava?
– Esse último poema foi o único escrito recentemente, já com o livro em processo de produção. Foi uma provocação da editora, na verdade. O colofão é aquela nota final de um livro impresso. E na Patuá, essa editora incrível que me acolheu e que apoia tanto os autores iniciantes e a literatura brasileira contemporânea, eles pedem que os autores e autoras escrevam um texto, de preferência literário, que relacione seu livro com a ideia de um amuleto. Um espaço também em que quem escreve reflita sobre sua escrita, sobre seu livro, seu processo criativo, suas memórias literárias, afetivas etc. Esse último poema foi minha resposta a essa provocação. Relendo o livro nesse processo de edição, eu encontrei sim parte do que eu procurava. Porque eu me encontrei. Depois que o Tito nasceu, mudou tanta coisa… ganhei tanto e perdi tanto… Um tanto de mim se perdeu, do que eu era. Mas eu me reconheci nesses poemas. Percebi que ainda os teria escrito, mesmo agora, depois de tudo. E foi um alívio constatar que ainda estou aqui.
“Minha língua procura palavras que tenham gosto de bala de maçã”
Autora: Táscia Souza
Editora: Patuá
Laçamento: dia 29 de maio, das 18h às 21h, no Forum da Cultura (Rua Santo Antônio 1.112 – Centro).