Conceição Evaristo nos apresentou Maria. Ela é aquela mulher pobre e negra que precisava lutar sozinha para alimentar seus três filhos. É aquela mulher que fora linchada dentro de um ônibus depois de ter sido apontada como cúmplice de um assalto. É aquela mulher inocente que queria “tanto dizer ao filho que o pai havia mandado um abraço, um beijo, um carinho.”
Milton Nascimento também nos apresentou Maria. Nas palavras do músico, ela “é a dose mais forte e lenta/ de uma gente que ri quando deve chorar/ E não vive, apenas aguenta.” É também “uma mulher que merece viver e amar como outra qualquer do planeta.” São muitas as Marias, e as que protagonizam a escrita da autora e do compositor mineiro inspiraram o projeto “Jovens escritores”, realizado com estudantes da Unidade Prisional de Santos Dumont. O resultado é o novíssimo livro “Como outra qualquer” (52 páginas), lançado pelo selo da Autoria Casa de Cultura.
A iniciativa foi idealizada e conduzida por Graci Apolinário. Ela é professora designada na Escola Estadual Cornélia Ferreira Ladeira, instituição que atende os alunos da Unidade Prisional. Nas páginas da obra, há criações de 13 estudantes. Uns escreveram em prosa. Outros, em verso. No total, são sete narrativas sobre uma mulher chamada Maria, e, entre essas histórias, estão dispostos os poemas, os quais refletem os sentimentos e as vivências de seus autores: “para quem está mentalmente privado de liberdade/ a educação traz tranquilidade/ e faz imaginar/ ser livre/ e ter felicidade.”
Graci é formada em Letras pela UFJF, pós-graduada em Alfabetização e Letramento e em Mídias na Educação. “‘Como outra qualquer’ eterniza, principalmente, vivência, sonhos e esperança de pessoas, alunos, que já viram o pior e o melhor da vida e hoje estão dispostos a mudar, construir um futuro melhor, mesmo diante de tantas marcas do presente e do passado”, comenta a docente.
Como o projeto “Jovens escritores” nasceu e foi desenvolvido? Conte-nos essa história.
Esse projeto nasceu a partir da minha vontade de ministrar oficinas de criação literária. Eu criei uma oficina que traz em seus segmentos uma parte teórica e inicial (que considero importante como base mínima para quando se pretende produzir um texto); uma parte intermediária, que consiste na leitura de textos de base para conhecer estilos literários diferentes e autores; e uma parte final, que consiste na produção literária efetiva. Apliquei essa oficina como parte do currículo escolar e conversei com os alunos sobre a produção, pois eles me diziam que não eram autores e, na verdade, a intenção era mesmo só cumprir o cronograma. A ideia inicial não era escrever um livro, era conhecer mais a literatura e a língua portuguesa de um modo mais interessante. O que veio após a produção deles foi construído aos poucos. Os alunos adoraram o resultado da oficina de prosa e encerramos com um café literário. Esse movimento abriu portas para a realização da segunda oficina, a de poemas. Ambas as oficinas ocorreram no ano de 2022 e encerramos o ano letivo com um livro adaptado para os moldes da Unidade Prisional, impresso pela Escola. Neste ano, 2023, eu retornei para o cargo que ocupei em 2022, e os alunos que começaram a frequentar a escola perguntaram sobre o projeto. Então eu adaptei a oficina e a reapliquei. Também, neste ano, tive conhecimento sobre o fundo social da Cooperativa Sicredi, da qual sou associada, e pedi um benefício em meu nome para a publicação do livro dos meus alunos. Fui beneficiada com um valor, informei à escola responsável pela minha contratação, à Unidade Prisional, procurei a Autoria Casa de Cultura e fui estudar sobre como esse projeto poderia se tornar uma realidade, pois nesse contexto há muita burocracia envolvida. Assim, nasceu o projeto Jovens Escritores. Ele está todo documentado e registrado por mim e pelas partes envolvidas.
A leitura que fiz é que a personagem Maria é o fio condutor do livro. Os poemas estão dispostos entre narrativas que trazem uma história sobre essa mulher. Ou essas mulheres, já que há várias Marias. Quem são essas Marias?
São várias Marias. E você está certa quando pensa em um fio condutor em torno dessa personagem. Elas foram inspiradas no conto de Conceição Evaristo, “Maria”, do livro “Olhos d’água”. A partir daí, tracei um perfil de Maria como um estereótipo social tal como aparece no conto. Outra análise também foi realizada na canção “Maria, Maria”, de Milton Nascimento. Repare que nos textos em prosa há a formação de identidade que diz muito sobre raça, classe social e entretenimento. Nada disso foi imposto a eles, a única exigência era que construíssem uma personagem que se chamasse Maria, e o resultado foi esse. Infere-se, portanto, que a presença das características supracitadas são próximas da realidade dos alunos. Já os poemas não foram pensados especificamente em Maria, mas na proximidade de contexto que se tem com ela. Pensei que, se eles foram tocados pelo conto, porque aquela realidade é palpável para eles, criar poemas a partir do ponto de vista deles, que possuem em comum a relação de um contexto com Maria, seria mais fácil, e foi assim que as poesias foram produzidas, porque, de certa forma, a Maria que está no texto acaba tendo como inspiração uma mãe, uma avó, uma esposa, filha, amiga, entre outros papéis que uma pessoa pode representar no contexto de vida desses alunos.
Os alunos beberam na fonte de grandes nomes da literatura, como Conceição Evaristo, Paulo Leminski e Bráulio Bessa. Como foi a relação que eles desenvolveram com a produção literária contemporânea?
Eles adoraram. Eles viam o Bráulio Bessa na TV e achavam os poemas dele lindos. Então, fiz questão de incluir esse povo todo da contemporaneidade, que está mais próximo da vivência deles, na oficina, como Mel Duarte, Criolo, Pedro Salomão, Ryane Leão, entre outros. Fiz isso para que pudessem conhecer as produções de agora e plantar o interesse pelo cânone ou pela origem.
O projeto “Jovens escritores” foi desenvolvido enquanto você tinha que dar conta de um cronograma escolar. Gostaria que falasse sobre a importância da literatura para o desenvolvimento dos estudantes.
Eu tenho aluno que mostra melhor desempenho nas aulas de criação literária do que nas aulas teóricas com regras gramaticais. E pude perceber com esse projeto que a literatura auxilia na aprendizagem, porque mostra para o estudante a função de conhecer as regras da nossa língua. Assim ele mesmo vai se interessando em aprender. Hoje, eles mesmos se autoavaliam e me pedem para voltar e explicar sobre algo que não entenderam e sabem que têm dificuldade. Agora, eles assistem à TV e me contam sobre quando veem a Djamila Ribeiro e a Conceição Evaristo. Outro dia, eles assistiram a “Quem quer ser um milionário” e souberam responder uma pergunta sobre Tarsila do Amaral e vieram me contar na aula. Outro ponto positivo é que eles sempre falam sobre o quanto a escola ajuda a mudar a mentalidade que tinham. Eles reconhecem que, hoje em dia, pensam de outra maneira.
Você e todos os envolvidos nesse projeto não sabem a história real dos alunos nem o motivo que os levaram ao cárcere. No entanto, a história de vida desses alunos está refletida nos textos que eles produziram. Para eles, era muito importante escrever sobre suas vivências?
Em relação ao livro, eu os observo como autores agora. Quando estou na sala de aula, são alunos, mas eu acredito que o contexto em que eles vivem reflete na escrita deles. Isso é natural. Podemos perceber isso nos textos, principalmente nos poemas. A escola lá é como se fosse um espaço à parte, não pelo ambiente físico, mas porque a educação realmente tem o poder de levá-los a outro lugar. Esses alunos que chegam lá estão em processo de ressocialização e não sabemos o motivo que os levaram ali, por uma questão de segurança, mas acredito que, principalmente, para preservar o espaço educacional. Na sala de aula, nós temos alunos e só. O que consigo dizer sobre as vivências deles é que sei mais sobre histórias deles no mundo aqui fora do que relacionadas à prisão. É sempre uma lembrança da comida da mãe, do cachorro, das festas em família, de uma pessoa querida, entre outras coisas comuns, o que foi exatamente o que o projeto visou alcançar. Por isso, na orelha, colocamos alunos como quaisquer outros. A flor venceu literalmente o asfalto.
Certamente, o projeto “Jovens escritores” não mudou a vida só dos estudantes. A sua também deve ter sido transformada. O que você aprendeu com eles?
Depois que o livro se concretizou, um aluno me perguntou o que eu estava fazendo dando aula lá porque salário de professor era muito ruim. Ele viu isso na TV. Eu disse que era o meu trabalho e gostava de dar aula. E ele perguntou se eu não conseguia alguma coisa melhor, porque sou muito inteligente, e nas oficinas eles até escreveram um livro. Foi aí que comecei a me tocar do quão grandioso é esse projeto para eles e, principalmente, para mim. Acho que a ficha ainda não caiu totalmente. Com esse projeto, tive a oportunidade de aprender novas habilidades e de tirar meus
modelos de oficinas do papel. Fui além disso porque tive que ser a organizadora do livro, função nada fácil. Mas o maior presente que eles me deram foi a coragem de desengavetar meus textos. A coragem que eles tiveram em se deixar publicar, mesmo em uma situação de vida delicada, que é a privação de liberdade, me mostrou mais uma vez o poder da literatura e me mostrou que existem muitas pessoas no mundo que, talvez, precisem nos ler, pois escrevo desde os 12 anos e nunca tive essa coragem. Eu sou formada em Letras e já publiquei diversos textos acadêmicos, mas, até este momento, não me arrisquei pelas vertentes literárias, e esse projeto foi o empurrãozinho que faltava.
“Como outra qualquer”
Organização: Graci Apolinário
Autores: Alunos da Unidade Prisional de Santos Dumont
Editora: Autoria (52 páginas)
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