Era 30 de setembro de 2014, e São Paulo acordou, naquele dia, com um caso que intrigaria o jornalista catarinense Vitor Hugo Brandalise: “Idoso mata a mulher em asilo e tenta se suicidar na Zona Leste de SP.” Em um canto de página, a notícia nada trazia além do factual, deixando, em aberto, perguntas que só viriam a ser respondidas tempos depois, quando aquele curioso leitor se debruçasse na apuração dos fatos para escrever “O último abraço” (Record, 138 páginas), livro-reportagem que ganhou lançamento nacional agora em março.
Nelson Irineu Golla, de 74 anos, e sua mulher, Neusa, de 72, é quem protagonizam este drama. A quem se decidir por ler, somente, a pequena matéria publicada em 2014, vale o aviso de que é preciso se entregar a “O último abraço” para entender as reais motivações do homem que, de assassino cruel e louco, nada tinha. Nelson e Neusa ficaram casados por mais de 50 anos e, agora, só queriam aproveitar a velhice juntos.
Depois de dois AVCs, contudo, Neusa definhava em uma clínica para idosos. Inválido de um braço, Nelson não suportava vê-la implorando com os olhos para que a matem. Atendendo à súplica da esposa, ele se abraça a ela com uma bomba de fabricação caseira junto ao peito e acende o pavio, deixando cartas que justificavam aquele ato. Hoje ele responde por homicídio qualificado por uso de meio cruel, e o caso é conhecido na justiça como “Um Romeu e Julieta da terceira idade”.
‘À medida que a apuração foi se desenrolando, fui percebendo questões importantíssimas de fundo que são, de fato, a velhice solitária, a vida nos asilos, que, nas palavras de Nelson, eram depósitos para os velhos. Estive nos dois asilos pelos quais a dona Neusa passou e vi que eles não eram de más condições. Mas, ainda assim, vi que, talvez, fosse necessário discutir a velhice nas casas de repousos e nos asilos como uma questão social’, comenta Brandalise, vencedor de oito prêmios nacionais e internacionais de reportagem, entre eles o Vladimir Herzog 2016. O Sala de Leitura, a partir de hoje, também pode ser conferido no impresso da Tribuna, às terças-feiras, e as entrevistas podem ser ouvidas nas sextas-feiras, às 10h05 e às 15h05, na Rádio CBN (1010).
Marisa Loures – Nelson não aguentava ver a mulher deitada em uma cama de hospital e, certa vez, ele quase foi operado do joelho errado. Fatos como esse fizeram dele um homem descrente com o ambiente hospitalar?
Vitor Hugo Brandalise – Vi que havia na história do Nelson diversos momentos em que ele estava descrente com a medicina, como, por exemplo, quando ele, já sedado numa cama de hospital, precisou lembrar o médico qual era a perna certa que deveria ser operada. Durante uma entrevista dura, ele estava mexendo em um dente, e eu perguntei se estava tudo bem. Ele me contou que era dentadura. Disse que, aos quarenta e poucos anos, precisou resolver um problema em um dente e falou para o dentista: “ah , doutor, o senhor pode me dar uma anestesia geral e tirar todos os meus dentes, porque nunca mais quero votar a um consultório.” Isso mostra um pouco da aversão dele ao ambiente hospitalar. Então imagine a dor que é para ele visitar a mulher em uma casa de repouso durante quatro anos.
– Nelson era extremamente machista. Depois da doença de Neusa, ele se torna um grande companheiro. A enfermidade da mulher fez dele uma pessoa melhor?
– Tentei fazer um retrato da vida desse casal, mostrando diferentes etapas. Ele tinha um pensamento retrógrado, começou como um marido que não queria que a mulher trabalhasse. Com os filhos já criados, ela começa a puxá-lo para poder aproveitar a terceira idade. Em determinado momento, a saúde dela começa a decair, e ele teve que aprender a cozinhar. Nelson passa a fazer todas as vontades dela. Acho que ele se arrependia disso: “Como é que pude deixar minha esposa fazer tudo por mim ao longo da vida, e eu aqui só trabalhando, sem passarmos um tempo juntos?” É uma reflexão de como a vida pode ser bastante rica, mas, ao mesmo tempo, bastante curta.
– O Nelson que você encontrou era resiliente ou revoltado?
– Falei com psicólogos especializados em luto porque estava preocupado em como seria entrevistar esse senhor, sem que esses encontros fossem tão duros para ele. A ideia era que eu perguntasse pouco, deixasse que ele falasse. Ele sempre chorava, e eu também me emocionava. Mas, logo no primeiro encontro, ele começou a me resumir toda a história de vida dele, a decisão da morte e mesmo os momentos feliz, e aí notei que ele queria contar tudo. Por isso, acho que, depois de tantas conversas, ele tinha uma noção da função social da história dele. Muitas famílias, que vivem o período da velhice e os desafios que essa fase da vida traz, passam por situação parecida, de ter de procurar uma casa de repouso. Por conta disso, acho que ele aceitava esses momentos de muita emoção.
– Nós jornalistas precisamos ser imparciais durante a apuração. Você conseguiu manter esse distanciamento?
– Ele foi acusado por homicídio. Para responder em liberdade, teve de correr atrás de amigos que conheciam o relacionamento do casal, para que eles fizessem o que os advogados chamavam de atestado de amor. Falei com essas pessoas, tentei entender melhor por que eles achavam que o que o Nelson fez tinha sido um homicídio piedoso. Ele deixou claro na carta que era para cremar os dois corpos. Depois de muito apurar, criei a convicção de que era um ato de amor. Analisando o quadro clínico dela, os médicos viram que ela não tinha como se recuperar. De fato tentei manter um distanciamento, e a aproximação que criei foi tentando compreender as razões de Nelson sem julgá-lo.
– O título da matéria de 2014 passa a impressão de que aquele homem era um assassino louco e cruel. Já ao ler “O último abraço”, a sensação é de que se trata de uma história de amor. Esse é o mérito da grande reportagem?
– O jornal tem que ser rápido. Tinha pouco espaço naquele momento, tinha que contar que um homem entrou com uma bomba num asilo, colocou em cima da mulher, explodiu, e disse que queria ir junto. Era o que dava para contar. Dizia, na notícia, que eles eram casados há mais de 50 anos. “Poxa, não dá para resumir 50 anos de relacionamento em uma tripinha de canto de página de jornal”.
– O livro também põe o dedo em um assunto ainda tabu no país, a eutanásia…
– Ao deixar a carta de suicida, Nelson dizia que tudo não passava de uma eutanásia. Aquele senhor de 74 anos acreditou que o que fez foi a busca por uma morte consentida. Um dos médicos que entrevistei me disse: “se o senhor tem a impressão de que esse ato dele foi eutanásia, talvez seja o momento de o Brasil discutir essa questão, porque ela acontece no dia a dia nos hospitais, ainda que de uma forma absolutamente não regulamentada.” Não é um livro a favor da eutanásia, mas é um pacote de entrada para discutir esse assunto ainda pouco abordado aqui no país.
– E os especialistas que você entrevistou apontam números de eutanásia no país?
– Não há números de casos de eutanásia no Brasil ainda, exatamente por essa prática não ser regulamentada. Um especialista em bioética que entrevistei me disse que, no dia a dia nos hospitais, já escutava relatos crescentes de relacionamento entre médico e paciente em que, eventualmente, o profissional tomava uma decisão de que aquilo ali não estava bom e de que era melhor mesmo haver um fim. Naturalmente, por não ser regulamentada, a eutanásia vira tabu. Talvez seja a hora de falar sobre esse assunto para que a autonomia do indivíduo perante a morte seja debatida.
Trechos do livro
‘‘No domingo em que decidiu morrer, Nelson Irineu Golla acordou de súbito às 6h e não pôde mais dormir (…) Repassou mentalmente seus planos. Se tudo desse certo e a coragem viesse, dentro de algumas horas ele e a esposa, dona Neusa, estariam mortos. Finalmente.’
‘Deitou-se em cima da esposa. Abraçou-a como pôde com o braço bom. Escutou o fogo consumindo o rastilho. Disse suas últimas palavras à mulher: “Pronto! Agora vamos embora.” Fechou os olhos e esperou.
‘Sei que para alguns vai ser considerado um ato de loucura. Mas cansado e preocupado com o meu futuro e de minha esposa, dei um fim ao sofrimento de ambos. Que meus filhos me perdoem, mas será um descanso para todos. Desculpem o trabalho que vou dar, mas isso é necessário. Sabedor de que nem eu nem ela temos recuperação, que Deus receba de braços abertos a companheira querida e que me perdoe.’
O Último Abraço
Autor: Vitor Hugo Brandalise
Editora: Record (138 páginas)