“Sempre tive interesse especial por ritos que se dão quase de forma imperceptível sob a capa do cotidiano”, conta Marcelo Moutinho

Por Marisa Loures

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Em novo livro – “A lua na caixa d’água” – o escritor carioca Marcelo Moutinho homenageia o gênero crônica, o cronista e compositor Aldir Blanc e a filha Lia – Foto: Leo Aversa

Depois de um dia até então nublado, surge um rasgo de luz, que marca o piso de pedras portuguesas da Cinelândia. Com exceção do cronista, ninguém parece notá-lo. Para muitos, as miudezas nada tem a dizer. Uma mulher, inclusive, tira os óculos escuros da bolsa e protege os olhos não só da luz, mas do que acontece ao redor. Para o cronista, ao contrário. A claridade parece desnudar os detalhes, e ele, como um observador atento, nada deixa passar.

Os eventos daquele instante foram narrados em “Tarde no centro”, um dos 49 textos que integram “A lua na caixa d’água” (Malê, 160 páginas), do jornalista, contista e cronista Marcelo Moutinho. Não foi por acaso que decidi recorrer a essa narrativa para abrir a coluna de hoje, mas, sim, porque a nova obra do escritor carioca é gestada como uma homenagem à crônica, gênero que consagrou grandes nomes – também reverenciados no livro -, e “Tarde no centro” parece-me um perfeito exemplar do que é a crônica e do que é o ofício do cronista.

“No livro em que trata da Berlim onde nasceu, o filósofo Walter Benjamin afirma que o cronista deve caminhar pela cidade como se estivesse numa selva. Ele se refere à capacidade de aguçarmos os sentidos, já que a própria sobrevivência dentro da mata fechada depende de uma atenção permanente àquilo que nos cerca, seja o movimento de um animal ou a direção de uma trilha. Sua pergunta me lembra a tese de Benjamin porque é a partir do apuro dos sentidos que o escritor pode, na algaravia do espaço urbano, perceber as miudezas. Olhar para o que está fora da luz intensa do holofote ou da esfera do óbvio. Acredito que o trabalho do escritor, pelo menos aquele que busca nas ruas a sua matéria-prima, está intimamente ligado a esse exercício. No meu caso, sempre tive um interesse especial pelas pequenezas, por cenas, situações, ritos que se dão quase de forma imperceptível sob a capa do cotidiano”, afirma o autor, que dedica a nova obra a Aldir Blanc, homenageando o cronista e compositor no título que escolheu para o volume e no texto que o abre.

“A lua na caixa d’água” ainda é dedicado à Lia, filha de Moutinho, e traz várias histórias emocionantes de pai e filha.  O livro fecha-se com “Uma carta para 2065”, escrita em 31 de agosto de 2015, quando a pequena tinha apenas 40 dias. O texto traz projeções para quando a menina terá 50 anos e o Rio de Janeiro, berço da crônica, cinco séculos. “Não peço tanto mais. Se no Rio de janeiro, em 2065, jovens negros e pobres puderem ir à praia num dia de sol sem que pese sobre suas costas a sombra da desconfiança, essa já será uma cidade melhor. Com amor, seu pai.”

Marisa Loures – Considerando muitos dos textos que estão em “A lua na caixa d’água” sinto uma presença forte de suas memórias. É como se o que está lá guardado fosse indispensável para o cronista falar, de maneira tão singular, sobre as demandas do contemporâneo…

Marcelo Moutinho – O crítico e escritor Eduardo Portella disse certa vez que o cronista tem um apego quase provinciano à metrópole. Tendo a concordar com ele, e penso que esse apego se vincula aos nossos afetos. A cidade que se esboça geograficamente guarda dentro dela uma outra cidade, cuja cartografia foi desenhada pela nossa experiência. Ao fazer o registro de paisagens, costumes, pessoas, o cronista joga contra o caráter perecível da vida, permite criar, como escrevo num dos textos do livro, pequenas ilusões de eternidade. E a memória tem um papel fundamental nesse processo. Seja quando possibilita a transcendência para além da finitude, seja quando evidencia que somos, todos, partes de um novelo. Porque a lembrança é a imortalidade efetiva. Quem é lembrado não morreu.

– Na orelha do livro, Luiz Antonio Simas escreve que desconfia que “A lua na caixa d’água” seja um inventário de infância. E aí o leitor depara-se com a primeira crônica, em que você nos leva ao menino Aldir Blanc, a você menino. Em “Primeiras impressões”, você vai acompanhando o crescimento de Lia dentro da barriga da mãe e há outros textos em que divide conosco sua relação com sua filha. Tendo a concordar com Simas. Esse percurso à infância era sua intenção ao escrever esse livro?

Esse percurso se conecta diretamente à experiência da paternidade. Quando Lia nasceu, em 2015, minha vida deu um cavalo de pau. E acompanhar seu crescimento tem significado, para mim, uma espécie de redescoberta do mundo. A convivência com minha filha renovou a possibilidade de espanto com as menores coisas. O movimento de uma lagarta, a formação de uma palavra, a relação das cores primárias e secundárias. Em paralelo, essa experiência me colocou diante de um espelho com duas faces. A primeira delas aponta para o passado, para a lembrança do menino que fui, da casa dos meus pais e dos meus bisavós em Madureira, dos meus próprios sustos inaugurais. A segunda face reflete o futuro. O que será dessa menina de cabelos cacheados tão cheia de curiosidades? Em que cidade, em que país, ela viverá daqui a algumas décadas? Nesse fio que me liga a ela por um lado e a meus antepassados por outro, são duas crianças que se encontram.

Em “Conversa fiada”, você diz que “a crônica está umbilicalmente ligada à cidade e, mais do que qualquer outra, ao Rio de janeiro”. Escreve ainda que, “dos 455 anos que a cidade soma, ao menos 150 foram relatados por seus cronistas”. Apesar de ser um gênero que vive à margem das grandes narrativas, como você mesmo relata, e que acaba sendo visto por muitos como inferior, vejo nessa sua colocação a necessidade de reafirmar a importância da crônica. Ela se consolida como indispensável para o registro de uma História. Um registro que é feito por meio de um olhar atento para as singularidades do cotidiano…

Quando falo do baixo prestígio da crônica, estou me referindo sobretudo à imprensa atual e ao meio literário. O que, aliás, é curioso, já que se trata de um gênero cuja essência é um híbrido entre jornalismo e ficção. No campo da História – e aqui meu testemunho é também como mestrando da área -, a crônica continua sendo considerada fundamental para a compreensão de uma sociedade. Em seus textos, o cronista possibilita um relato complementar ao da grande narrativa, muitas vezes iluminando facetas que passariam despercebidas e cujo valor simbólico é imenso. Lembro de João do Rio a observar as jovens que, em 1907, sentam-se à mesa da confeitaria e pedem chope e uísque ao garçom. “Há dez anos, tomariam sorvete, de olhos baixos e acanhados”, observa ele, antes de chamá-las de “modern girls”. Na cena aparentemente prosaica, há um retrato da progressiva autonomia feminina. Que pode ser estudada por intermédio da História ou das Ciências Sociais, mas também por meio da crônica.

– A crônica é um gênero ligado ao tempo, à circunstância. Por isso, ela acabam nascendo, primeiro, nas páginas dos jornais e, agora, na internet. Ao selecionar os textos que estão em “A lua na caixa d’água” era importante escolher aqueles que resistem à passagem do tempo e ainda têm muito a dizer no futuro?

Quando seleciono as crônicas que entrarão num livro publicado logo após a escritura dos textos, busco essa resistência à passagem do tempo. A opção é por aquelas que não são datadas demais, que continuam a fazer sentido mesmo que deslocadas do momento em que nasceram. Seria diferente no caso de uma coletânea mais tardia. Isso porque, passadas algumas décadas, a crônica ganha um interesse complementar, que é justamente essa capacidade de oferecer um testemunho da história, de que falamos na pergunta anterior.

“E só piorou de 2015, quando a carta foi escrita, para cá. O retrocesso que o Brasil tem vivido nos últimos anos é algo assustador. O país parece atualizar diariamente a frase de Nelson Rodrigues, que dizia que ‘os idiotas perderam a modéstia’. Perderam a modéstia e chegaram ao poder, eu acrescentaria.”

– Em “Uma carta para 2065”, na qual você escreve para sua filha Lia para quando ela tiver 50 anos, você cita que jovens negros e pobres foram revistados grosseiramente no ônibus quando se dirigiram para a praia de Copacabana e finaliza vislumbrando que, no futuro, se jovens negros e pobres puderem ir à praia sem desconfiança, o Rio de Janeiro será melhor. Essa é uma forma de você mostrar seu descontentamento com o momento atual de nossa sociedade e a necessidade urgente de mudança para o bem das novas gerações? 

Certamente. E só piorou de 2015, quando a carta foi escrita, para cá. O retrocesso que o Brasil tem vivido nos últimos anos é algo assustador. O país parece atualizar diariamente a frase de Nelson Rodrigues, que dizia que “os idiotas perderam a modéstia”. Perderam a modéstia e chegaram ao poder, eu acrescentaria. Mas a carta é, para além disso, um inventário de expectativas. Em 2015, o Rio de Janeiro completava 450 anos e fiz o exercício de imaginar que cidade minha filha encontraria no aniversário de cinco séculos. O Rio, com 500 anos; Lia, com 50. Conto, entre outras coisas, que gostaria que as livrarias ainda existissem e as pipas continuassem a cruzar o céu do subúrbio, desenhando linhas coloridas. A carta funciona como um epílogo do livro, ao unir as duas unidades anteriores: a experiência individual e a aventura da coletividade. É também uma declaração de amor à minha cidade – e, claro, à minha filha.

– Você está prestes a lançar “Contos de axé”. Nele, o foco é o recrudescimento da intolerância religiosa no país. É notório que é uma questão que precisa ser amplamente debatida e que algo deve ser feito urgentemente para acabar com a discriminação por credo. Pode-se dizer que houve um estopim, um fato específico que o fez lançar-se nesse projeto? Quando o livro sai?

Desde que passou a receber denúncias de intolerância religiosa, em 2011, o serviço “Disque 100” do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos tem registrado números crescentes. Nos últimos dois anos, a situação se agravou. Só no primeiro semestre de 2020, houve um aumento de 41,2% nos relatos em comparação ao mesmo período de 2019. Quando o cotejo é feito com os seis meses iniciais de 2018, o crescimento é de 136% — e essa estatística desconsidera os muitos ataques que não chegam a ter declaração formal. A ampla maioria das violações atinge os terreiros de candomblé e umbanda. Podemos falar, portanto, de racismo religioso. Minha ideia inicial era escrever um livro reunindo contos inspirados nos arquétipos dos orixás. Mas havia acabado de lançar “Rua de dentro” e ainda estava trabalhando na seleta de crônicas. Certamente demoraria até publicar a nova obra. O recrudescimento brutal da violência contra os terreiros – que é também simbólica – trouxe um senso de urgência ao projeto. Então decidi transformar o que seria livro solo numa antologia com autores diversos. São ao todo 18, de diferentes gerações, estilos e gêneros, vindos de vários cantos do país. A editora Malê abraçou a proposta e “Contos de axé” chegará às livrarias em setembro, com belíssimas ilustrações de Toín Gonzaga e orelha assinada pelo professor Muniz Sodré. Com o livro, pretendemos ajudar a iluminar, a partir da ficção e sem pretensões didáticas, essa mitologia de admirável força alegórica, mística e literária, que infelizmente costuma ser ignorada no Brasil, embora seja tão definidora de nossa gênese.

capa do livro a lua na caixa dagua 2“A lua na caixa d’água”

Autor: Marcelo Moutinho

Editora: Malê 160 páginas

 

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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